Octavio da Cunha Botelho
(Obs: este estudo está disponível em versão mais atualizada em:
http://observadorcriticodasreligioes.wordpress.com/2014/01/01/o-polemico-beijo-de-jesus-na-de-maria-madalena/)
Considerações iniciais
Vitral de uma igreja reproduzindo um contato afetuoso entre Jesus e Maria Madalena |
Tão intrigante quanto a hipótese de
um Jesus casado e com descendentes é a passagem, neste texto apócrifo, onde é
mencionado um “beijo de Jesus na [...] de Maria Madalena”, bem como a menção
desta como a “companheira” de Jesus. O trecho entre colchetes da frase
representa a parte danificada do manuscrito, e por ser este o único existente,
não é possível consultar outro para saber onde é dado este beijo de Jesus em
Maria Madalena, se é na “boca”, tal como a maioria dos tradutores e intérpretes
sugere, ou em outra parte do corpo, tal como interpretam outros.
Polêmicas religiosas são sempre
carregadas de emotividade, quando cada parte na discussão, quer a favor ou
contra, projeta seus sentimentos e ideologias em seus argumentos. De modo que,
conspiradores contra o Cristianismo se deleitam em citar esta passagem, interpretando
o beijo como que na boca, portanto tendo um sentido erótico, para denunciar o
caráter estritamente humano e sucumbente à tentação de Jesus. Enquanto que, por
outro lado, os cristãos procuram encontrar sentidos que levem ao entendimento
de que este beijo não é um beijo puramente carnal, mas sim espiritual e
metafórico, conforme o significado esotérico atribuído pelos gnósticos
valentinianos, esta última interpretação é bem recebida e alimentada,
sobretudo, pelos esoteristas. Sendo assim, o breve estudo abaixo tentará
mostrar ao leitor a situação da discussão sobre este assunto na atualidade.
O Evangelho de Felipe
Enquanto alguns textos gnósticos já eram
conhecidos através de manuscritos em Grego e em Latim, quer na íntegra ou em
fragmentos, o texto do Evangelho de
Felipe, por sua vez, não era do nosso conhecimento antes da descoberta da
coleção de códices de Nag Hammadi, em
1945, no Egito, portanto é o único manuscrito existente, constante do Códice
II, fólios 51-86, da coleção acima (Ehrman, 2003: 38). Existem duas traduções
inglesas mais conhecidas, a de Wesley W. Isenberg (2007: 126-43) e a de David
Cartlidge (Ehrman, 2003: 38-44). Alguns autores atribuem o texto à corrente
valentiniana do Gnosticismo (Tripolitis, 2002: 133n; Schaberg, 2004: 151 e Isenberg,
2007: 126), uma vertente gnóstica fundada pelo mestre gnóstico Valentino
(séculos II e III e.c.). Pouco se sabe sobre sua vida, a partir dos
heresiólogos cristãos, apenas que ele nasceu e foi educado em Alexandria, por
volta de 140 e.c. foi para Roma como um mestre cristão e chegou a ser bem
sucedido. Valentino foi nomeado para o bispado, mas foi preterido em favor de
Pio, o Mártir. Logo em seguida, ele rompeu com a comunidade cristã e foi
considerado um herege. Então criou sua própria linha de interpretação
cristã a partir do pensamento gnóstico (Tripolitis, 2002: 132-3).
Página do manuscrito do Evangelho de Felipe mostrando os trechos danificados |
Trata-se de um texto extremamente
enigmático e carregado de simbolismos gnósticos, cujo entendimento só é
possível à luz de uma exegese esotérica. Somado a uma redação desconexa e
desencadeada, através de proclamações resumidas, bem como aos trechos
danificados do manuscrito, o resultado é um texto de difícil compreensão
(Ehrman, 2003: 38 e Isenberg, 2007: 126-7). Quanto à data da compilação, Bart
D. Ehrman sugere: “É difícil determinar a data desta obra, mas foi
provavelmente compilada durante o terceiro século, embora ela utilize de fontes
mais antigas” (Ehrman, 2003: 38). O manuscrito é certamente uma tradução de um
original grego (Isenberg, 2007: 128). O título, Evangelho de Felipe, pode derivar meramente do fato de que Felipe é
o nome do único apóstolo mencionado nele (Isenberg, 2007: 128 e 138).
Do modo que se apresenta, o Evangelho de Felipe parece ser mais uma
compilação do que uma composição original e uniforme. Wesley W. Isenberg
analisa na introdução da sua tradução: “O Evangelho
de Felipe é uma compilação de declarações (...)”. As “poucas palavras e
histórias sobre Jesus, entretanto, não estão organizadas em um tipo de quadro
narrativo algum, como aqueles encontrados nos evangelhos do Novo Testamento. De
fato, o Evangelho de Felipe não está
organizado na forma que poderia ser convenientemente esboçado. Apesar de
conseguir manter alguma continuidade através da associação de ideias, a linha
de pensamento se apresenta com divagações e desconexões. Mudanças radicais de
assunto são comuns”. Sobre a coerência ele aponta que: “a coerência é provável
que seja mais coincidente do que planejada”. E continua: “É possível que o
compilador desta coleção tenha desmembrado propositadamente o que antes eram
parágrafos completos de pensamento e distribuído as partes fragmentadas em
vários lugares da obra” (Isenberg, 2007, 126-7). Enfim, a sua leitura nos deixa
a impressão de que o texto do Evangelho
de Felipe está mais para uma ‘colcha de retalhos’ do que uma composição
uniforme e concatenada.
A companheira de Jesus
O grau de relacionamento e de
intimidade entre Jesus e Maria Madalena vem sendo objeto de ardentes discussões
desde a publicação do evangelho acima. Um trecho corrompido do manuscrito é
cercado de polêmica e de discussão. Com a destruição pelo tempo, algumas frases
estão mutiladas, deixando um mistério intrigante. O trecho é o seguinte (as
lacunas entre colchetes são as partes danificadas do manuscrito): “E a
companheira de [...] Maria Madalena [...] ela mais que aos discípulos, beijá-la
na sua [...]”. Para tornar este trecho mais claro, as duas traduções inglesas
mais utilizadas preencheram as lacunas da seguinte maneira: “E a companheira de
[...] Maria Madalena [... amava] ela mais que a [todos] os discípulos, [e
costumava] beijá-la [frequentemente] na sua [... boca]” (Isenberg, 2007, 134). E
na tradução de David Cartlidge e David Dungan, utilizada por Bart D. Ehrman: “e
a consorte de Cristo é Maria Madalena. O [senhor amava Maria] mais que todos os
discípulos, e ele a beijava na [boca muitas vezes]” (Ehrman, 2003: 42).
Cena de um filme na qual Jesus e Maria Madalena trocam olhares amorosos |
Assim, a natureza precisa do relacionamento
de Jesus com Maria Madalena não é possível de ser identificada com clareza,
em vista da linguagem ambígua e enigmática deste evangelho gnóstico. Por toda a
análise de Jane Schaberg sobre esta passagem (p. 151-5), somente são
apresentadas hipóteses para o que o autor (que está mais para um compilador)
tentou mencionar com a palavra ‘companheira’.
O beijo de Jesus na [...] de
Maria Madalena
Alguns autores procuram preencher
esta lacuna a partir de dados de outros trechos do mesmo Evangelho de Felipe, texto que só existe em uma única cópia
manuscrita, ou seja, no Códice II da Coleção de Nag Hammadi, portanto não é possível recorrer a outro manuscrito para
suprir as lacunas. Ademais, além de muito multilado, trata-se de uma compilação
desconexa, onde nem sempre é possível se ter certeza de que outro trecho seria
a interpretação apropriada para explicar determinada passagem corrompida ou
enigmática. Sendo assim, tudo que já foi sugerido até agora não passa de
conjectura para tentar encontrar o sentido das passagens obscuras.
Os códices dos manuscritos de Nag Hammadi foram encontrados encapados por couro |
Mesmo que não exista esta relação
entre estas duas passagens, não implica que a passagem do Evangelho de Felipe não tenha um significado metafórico. Karen L.
King explica: “Embora o texto nunca negue que a discussão de beijar possa ter
um sentido literal, a passagem (acima) mostra que beijar claramente tem um
significado metafórico” (King, 1993; 631n). E continua; “Existem três possíveis
compreensões de beijar e elas não são mutuamente exclusivas: (1) referência a
ensinar através da palavra; (2) uma metáfora para uma íntima e pessoal recepção
da palavra de ensinamento; e (3) a prática cristã do beijo de companheirismo. Talvez
a menção de Maria e o Salvador se beijando refere-se a um ou a todos estes
sentidos do termo. Se este for o caso, isto poderia implicar que Maria tinha
aceito e compreendido o ensinamento do Salvador particularmente bem, e por esta
razão ele a amava. Os outros discípulos, sendo menos avançados espiritualmente,
confundiram a natureza desta afeição e são ciumentos” (King, 1993: 631n e
Schaberg, 2004: 154). De todas as tentativas de explicar esta passagem do beijo,
consultadas durante a preparação deste estudo, a de K. L. King acima parece ser
a menos conjectural.
A Câmara Nupcial
Até a descoberta do Evangelho de Felipe, as referências à
Câmara Nupcial, do Gnosticismo Valentiniano, eram conhecidas apenas através das
obras dos heresiólogos (autores de tratados de heresia: Tertuliano, Irineu de
Lyon, etc.). As menções, em muitas passagens, à Câmara Nupcial neste evangelho
gnóstico, foi o traço que levou os estudiosos a conectá-lo à corrente
valentiniana do Gnosticismo. Apesar das tantas menções, o preciso significado
desta Câmara Nupcial, neste texto gnóstico, não está absolutamente claro, daí
que pesquisadores continuam a vasculharem as obras dos antigos heresiólogos,
sobretudos os que defendem a opinião do beijo ritual. De modo que, ainda
persiste um acalorado debate sobre a questão de que se este beijo de Jesus é um
beijo erótico na boca, entre amantes, ou trata-se de um beijo físico que
simboliza o beijo espiritual durante o ritual da Câmara Nupcial.
A visão valentiniana da
concepção
O mestre gnóstico Valentino (séculos II e III e.c.) |
Assim, para os gnósticos
valentinianos, a maneira de se fazer sexo, ou seja, a concepção, era de suma
importância para o destino dos corpos que nasciam neste mundo inferior. Isto é,
os modos puros ou impuros de concepção carnal refletiam nos modos de concepção
celestial, consequentemente afetando o nascimento das almas, daí a razão para a
criação de tantos símbolos e tantas metáforas para representar a concepção
celestial, e a Câmara Nupcial foi um deles.
Considerações finais
Do breve estudo acima, é possível
perceber que uma solução consensual e definitiva sobre a polêmica deste beijo
de Jesus em Maria Madalena está longe de ser alcançada. O estado danificado do
manuscrito, bem como a redação desconexa, confusa e enigmática do texto do Evangelho de Felipe, somado ao tão pouco
que sabemos sobre a corrente valentiniana do Gnosticismo, tudo isto, de certa
maneira, contribui para adiar a solução da polêmica. Mesmo assim, algum certo
avanço no esclarecimento do assunto já foi alcançado, o que é melhor do que se
nada tivesse sido feito até agora. Com o prosseguimento dos estudos e, quem
sabe, a descoberta de mais manuscritos gnósticos, o enigma venha a ser
resolvido no futuro.
Apesar de toda a controvérsia, uma
ideia é possível ser extraída com certeza do estudo dos textos gnósticos e de outros
evangelhos apócrifos: de que o Cristianismo dos primeiros séculos estava
mergulhado em imenso mar de interpretações divergentes e rivais, quando cada
comunidade compunha seus próprios evangelhos e elaborava suas interpretações de
acordo com sua visão doutrinária e seu programa catequético, daí a razão para a
existência, segundo os historiadores, de mais de cinquenta evangelhos
diferentes, na ocasião do Concílio de Nicéia, convocado pelo imperador
Constantino, em 325 e.c., para tentar unificar o Cristianismo, tão fragmentado
na época.
Obras
consultadas
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