quinta-feira, 24 de outubro de 2013

|ESTUDO| O Polêmico Beijo de Jesus na [...] de Maria Madalena

Octavio da Cunha Botelho


(Obs: este estudo está disponível em versão mais atualizada em:
http://observadorcriticodasreligioes.wordpress.com/2014/01/01/o-polemico-beijo-de-jesus-na-de-maria-madalena/)

          
Considerações iniciais

  
Vitral de uma igreja reproduzindo um contato
afetuoso entre Jesus e Maria Madalena
          A ideia de um Jesus casado era um assunto adormecido, para quase todos os cristãos, até o lançamento do livro de ficção O Código Da Vinci (Da Vinci Code - 2003) de Dan Brown, bem como do filme homônimo (2006), do diretor Ron Howard, estrelado por Tom Hanks, os quais introduziram na discussão popular uma polêmica que antes só circulava entre os acadêmicos e os pesquisadores. Mesmo não sendo um livro de história, a publicação desencadeou discussões entre cristãos e ateus, e uma vez que a fonte literária do tema, o Evangelho de Felipe, um texto gnóstico descoberto em Nag Hammadi, no Egito, em 1945, não é popularmente conhecida, os curiosos ficaram desorientados sobre o que era de fonte evangélica e o que era produto da imaginação de Dan Brown em seu livro. A hipótese de um Jesus casado, tal como imaginada na obra, extraída de apenas uma das vertentes interpretativas deste controvertido evangelho gnóstico, tornou-se intrigante para o público mais curioso, quer cristão ou cético, levando muitas pessoas à curiosidade sobre o que se falava de Jesus fora dos evangelhos canônicos nos primeiros anos do Cristianismo.
            Tão intrigante quanto a hipótese de um Jesus casado e com descendentes é a passagem, neste texto apócrifo, onde é mencionado um “beijo de Jesus na [...] de Maria Madalena”, bem como a menção desta como a “companheira” de Jesus. O trecho entre colchetes da frase representa a parte danificada do manuscrito, e por ser este o único existente, não é possível consultar outro para saber onde é dado este beijo de Jesus em Maria Madalena, se é na “boca”, tal como a maioria dos tradutores e intérpretes sugere, ou em outra parte do corpo, tal como interpretam outros.
            Polêmicas religiosas são sempre carregadas de emotividade, quando cada parte na discussão, quer a favor ou contra, projeta seus sentimentos e ideologias em seus argumentos. De modo que, conspiradores contra o Cristianismo se deleitam em citar esta passagem, interpretando o beijo como que na boca, portanto tendo um sentido erótico, para denunciar o caráter estritamente humano e sucumbente à tentação de Jesus. Enquanto que, por outro lado, os cristãos procuram encontrar sentidos que levem ao entendimento de que este beijo não é um beijo puramente carnal, mas sim espiritual e metafórico, conforme o significado esotérico atribuído pelos gnósticos valentinianos, esta última interpretação é bem recebida e alimentada, sobretudo, pelos esoteristas. Sendo assim, o breve estudo abaixo tentará mostrar ao leitor a situação da discussão sobre este assunto na atualidade.    

O Evangelho de Felipe

            Enquanto alguns textos gnósticos já eram conhecidos através de manuscritos em Grego e em Latim, quer na íntegra ou em fragmentos, o texto do Evangelho de Felipe, por sua vez, não era do nosso conhecimento antes da descoberta da coleção de códices de Nag Hammadi, em 1945, no Egito, portanto é o único manuscrito existente, constante do Códice II, fólios 51-86, da coleção acima (Ehrman, 2003: 38). Existem duas traduções inglesas mais conhecidas, a de Wesley W. Isenberg (2007: 126-43) e a de David Cartlidge (Ehrman, 2003: 38-44). Alguns autores atribuem o texto à corrente valentiniana do Gnosticismo (Tripolitis, 2002: 133n; Schaberg, 2004: 151 e Isenberg, 2007: 126), uma vertente gnóstica fundada pelo mestre gnóstico Valentino (séculos II e III e.c.). Pouco se sabe sobre sua vida, a partir dos heresiólogos cristãos, apenas que ele nasceu e foi educado em Alexandria, por volta de 140 e.c. foi para Roma como um mestre cristão e chegou a ser bem sucedido. Valentino foi nomeado para o bispado, mas foi preterido em favor de Pio, o Mártir. Logo em seguida, ele rompeu com a comunidade cristã e foi considerado um herege. Então criou sua própria linha de interpretação cristã a partir do pensamento gnóstico (Tripolitis, 2002: 132-3).
Página do manuscrito do Evangelho de 
Felipe mostrando os trechos danificados
            Trata-se de um texto extremamente enigmático e carregado de simbolismos gnósticos, cujo entendimento só é possível à luz de uma exegese esotérica. Somado a uma redação desconexa e desencadeada, através de proclamações resumidas, bem como aos trechos danificados do manuscrito, o resultado é um texto de difícil compreensão (Ehrman, 2003: 38 e Isenberg, 2007: 126-7). Quanto à data da compilação, Bart D. Ehrman sugere: “É difícil determinar a data desta obra, mas foi provavelmente compilada durante o terceiro século, embora ela utilize de fontes mais antigas” (Ehrman, 2003: 38). O manuscrito é certamente uma tradução de um original grego (Isenberg, 2007: 128). O título, Evangelho de Felipe, pode derivar meramente do fato de que Felipe é o nome do único apóstolo mencionado nele (Isenberg, 2007: 128 e 138).
Do modo que se apresenta, o Evangelho de Felipe parece ser mais uma compilação do que uma composição original e uniforme. Wesley W. Isenberg analisa na introdução da sua tradução: “O Evangelho de Felipe é uma compilação de declarações (...)”. As “poucas palavras e histórias sobre Jesus, entretanto, não estão organizadas em um tipo de quadro narrativo algum, como aqueles encontrados nos evangelhos do Novo Testamento. De fato, o Evangelho de Felipe não está organizado na forma que poderia ser convenientemente esboçado. Apesar de conseguir manter alguma continuidade através da associação de ideias, a linha de pensamento se apresenta com divagações e desconexões. Mudanças radicais de assunto são comuns”. Sobre a coerência ele aponta que: “a coerência é provável que seja mais coincidente do que planejada”. E continua: “É possível que o compilador desta coleção tenha desmembrado propositadamente o que antes eram parágrafos completos de pensamento e distribuído as partes fragmentadas em vários lugares da obra” (Isenberg, 2007, 126-7). Enfim, a sua leitura nos deixa a impressão de que o texto do Evangelho de Felipe está mais para uma ‘colcha de retalhos’ do que uma composição uniforme e concatenada.

A companheira de Jesus

            O grau de relacionamento e de intimidade entre Jesus e Maria Madalena vem sendo objeto de ardentes discussões desde a publicação do evangelho acima. Um trecho corrompido do manuscrito é cercado de polêmica e de discussão. Com a destruição pelo tempo, algumas frases estão mutiladas, deixando um mistério intrigante. O trecho é o seguinte (as lacunas entre colchetes são as partes danificadas do manuscrito): “E a companheira de [...] Maria Madalena [...] ela mais que aos discípulos, beijá-la na sua [...]”. Para tornar este trecho mais claro, as duas traduções inglesas mais utilizadas preencheram as lacunas da seguinte maneira: “E a companheira de [...] Maria Madalena [... amava] ela mais que a [todos] os discípulos, [e costumava] beijá-la [frequentemente] na sua [... boca]” (Isenberg, 2007, 134). E na tradução de David Cartlidge e David Dungan, utilizada por Bart D. Ehrman: “e a consorte de Cristo é Maria Madalena. O [senhor amava Maria] mais que todos os discípulos, e ele a beijava na [boca muitas vezes]” (Ehrman, 2003: 42).
Cena de um filme na qual Jesus e Maria Madalena
trocam olhares amorosos
Antes de analisar a questão do beijo, a referência à Maria Madalena como ‘companheira’ ou como ‘consorte’ de Jesus merece consideração aqui. Uma vez que muitos manuscritos gnósticos de Nag Hammadi são traduções de textos gregos para a língua copta, os pesquisadores apontam que estas palavras são traduções da palavra copta hotre, e esta, por sua vez, também traduzida da palavra grega koinonos. Jane Schaberg explica: “O termo grego koinonos tem um amplo horizonte de significados na Bíblia e em outros textos: parceira de casamento, participante, cooperadora na evangelização, companheira de fé, parceira de negócio, camarada e amiga” (Schaberg, 2004: 152). Então, o significado da palavra koinosos é um tanto genérico, por isso os tradutores a traduziram pelos termos “companheira” ou “consorte”, os quais, por sua vez, podem ser uma companheira de fé, de matrimônio, de negócio, de viagem ou de amizade. Porém, J. Schaberg observa que, em outra passagem anterior, do mesmo evangelho, é mencionado que “havia três Marias que sempre andavam com o Mestre, Maria sua mãe, sua irmã e Madalena, aquela a quem era chamada de sua companheira” (Isenberg, 2007: 132). O curioso desta passagem é que as três Marias “andavam com o Mestre”, mas apenas Madalena é chamada de companheira (koinosos), sinalizando para o fato de que ela era uma companheira diferenciada (Schaberg, 2004, 152). Por isso, J. Schaberg assinala: “Ela não é chamada de a ‘companheira’ do Senhor em nenhum outro lugar na existente literatura gnóstica, e ninguém mais é chamada de sua ‘companheira’” (Schaberg, 2004: 152). Já no Evangelho de Maria Madalena, ela é mencionada como aquela “que o Salvador amava mais que a todas as mulheres” (Wilson, 2007: 442), e não como companheira (koinosos), pelo menos nos fragmentos restantes deste texto, o qual está muito mutilado.
Assim, a natureza precisa do relacionamento de Jesus com Maria Madalena não é possível de ser identificada com clareza, em vista da linguagem ambígua e enigmática deste evangelho gnóstico. Por toda a análise de Jane Schaberg sobre esta passagem (p. 151-5), somente são apresentadas hipóteses para o que o autor (que está mais para um compilador) tentou mencionar com a palavra ‘companheira’.

O beijo de Jesus na [...] de Maria Madalena

            Alguns autores procuram preencher esta lacuna a partir de dados de outros trechos do mesmo Evangelho de Felipe, texto que só existe em uma única cópia manuscrita, ou seja, no Códice II da Coleção de Nag Hammadi, portanto não é possível recorrer a outro manuscrito para suprir as lacunas. Ademais, além de muito multilado, trata-se de uma compilação desconexa, onde nem sempre é possível se ter certeza de que outro trecho seria a interpretação apropriada para explicar determinada passagem corrompida ou enigmática. Sendo assim, tudo que já foi sugerido até agora não passa de conjectura para tentar encontrar o sentido das passagens obscuras.
 
Os códices dos manuscritos de Nag Hammadi foram
encontrados encapados por couro
          No caso da passagem: “E a companheira de [...] Maria Madalena [...] ela mais que aos discípulos, beijá-la na sua [...]”, Wesley Isenberg, David Cartlidge e David Dungan sugeriram, em suas traduções, preencher a lacuna com a palavra “boca”, resultando em: “beijá-la na [boca frequentemente ou muitas vezes]” (Isenberg, 2007: 134 e Ehrman, 2003: 42). Esta é a palavra mais sugerida, porém outros autores afirmam que outras palavras da língua copta também se encaixam perfeitamente no espaço corrompido do manuscrito, tais como: “face”, “pés”, “testa”, “lábios” e “mão” (Schaberg, 2004: 154), portanto o beijo poderia acontecer em qualquer uma destas partes do corpo. Entretanto, Jane Schaberg acredita que “evidência interna indica que boca possa ser a melhor escolha” (Schaberg, 2004: 154), e se justifica com uma passagem anterior do mesmo Evangelho de Felipe (59: 1-6): “É por ser prometido ao lugar celestial que o homem [recebe] o alimento [...] dele pela boca. [E assim] veio a palavra daquele lugar (dizendo) que seriam alimentados pela boca e se tornariam perfeitos. Sendo ela através de um beijo que o Perfeito concebe e dá a luz. Por esse motivo, nós nos beijamos uns aos outros. Recebemos  a concepção da graça que está no meio de nós” (Isenberg, 2007: 132). A passagem não é absolutamente clara, mas transmite a ideia que os gnósticos concebiam uma forma de alimentação (transmissão) espiritual através da boca, por isso os discípulos se beijavam, de modo que o beijo poderia significar uma maneira de transmissão de espiritualidade. Esta autora associa este episódio a uma passagem do Evangelho de João (20: 22): “E tendo ele (Jesus ressuscitado) dito isto, ele soprou (gr: enefusesen kai; lat: insufflavit) sobre eles (discípulos) e disse-lhes: receba o Espírito Santo” (Schaberg, 2004: 154). A relação entre estas duas passagens não me parece procedente, uma vez que beijo na boca como transmissão espiritual poderia ser muito diferente do significado de sopro espiritual, este último é utilizado em outras tradições religiosas diferente do Cristianismo, sobretudo como transmissão de poder espiritual nas iniciações, enquanto beijo espiritual na boca é uma singularidade deste evangelho gnóstico.
            Mesmo que não exista esta relação entre estas duas passagens, não implica que a passagem do Evangelho de Felipe não tenha um significado metafórico. Karen L. King explica: “Embora o texto nunca negue que a discussão de beijar possa ter um sentido literal, a passagem (acima) mostra que beijar claramente tem um significado metafórico” (King, 1993; 631n). E continua; “Existem três possíveis compreensões de beijar e elas não são mutuamente exclusivas: (1) referência a ensinar através da palavra; (2) uma metáfora para uma íntima e pessoal recepção da palavra de ensinamento; e (3) a prática cristã do beijo de companheirismo. Talvez a menção de Maria e o Salvador se beijando refere-se a um ou a todos estes sentidos do termo. Se este for o caso, isto poderia implicar que Maria tinha aceito e compreendido o ensinamento do Salvador particularmente bem, e por esta razão ele a amava. Os outros discípulos, sendo menos avançados espiritualmente, confundiram a natureza desta afeição e são ciumentos” (King, 1993: 631n e Schaberg, 2004: 154). De todas as tentativas de explicar esta passagem do beijo, consultadas durante a preparação deste estudo, a de K. L. King acima parece ser a menos conjectural.

A Câmara Nupcial

            Até a descoberta do Evangelho de Felipe, as referências à Câmara Nupcial, do Gnosticismo Valentiniano, eram conhecidas apenas através das obras dos heresiólogos (autores de tratados de heresia: Tertuliano, Irineu de Lyon, etc.). As menções, em muitas passagens, à Câmara Nupcial neste evangelho gnóstico, foi o traço que levou os estudiosos a conectá-lo à corrente valentiniana do Gnosticismo. Apesar das tantas menções, o preciso significado desta Câmara Nupcial, neste texto gnóstico, não está absolutamente claro, daí que pesquisadores continuam a vasculharem as obras dos antigos heresiólogos, sobretudos os que defendem a opinião do beijo ritual. De modo que, ainda persiste um acalorado debate sobre a questão de que se este beijo de Jesus é um beijo erótico na boca, entre amantes, ou trata-se de um beijo físico que simboliza o beijo espiritual durante o ritual da Câmara Nupcial.
            A partir das referências no Evangelho de Felipe, bem como as citações reunidas por April D. Deconigk a partir dos heresiólogos cristãos, estas mostram que não se trata de uma câmara física ou material, senão de uma câmara celestial, “na qual todas as almas salvas seriam transformadas em corpos perfeitos” (Deconigk, 2011: 45-6), ou onde “assim como o marido e esposa se unem na câmara nupcial, também a reunião efetuada por Cristo acontecerá na Câmara Nupcial, a sacramentada, onde a pessoa recebe a antecipação e a garantia da derradeira união com um parceiro celestialmente angelical” (Isenberg, 2007: 127). Agora, o curioso é que, segundo o Evangelho de Felipe, a Câmara Nupcial não é para todos: “uma Câmara Nupcial não é para os animais, nem para os escravos, nem para as mulheres corrompidas, mas para os homens livres e as imaculadas” (Isenberg, 2007: 136). A discriminação entre escravos e homens livres acima é intrigante, pois sinaliza para o sentido de que os valentinianos aprovavam o regime de escravatura. Mais adiante: “A redenção é o ‘sagrado do sagrado’. ‘O sagrado dos mais sagrados’ é a câmara nupcial” (Idem: 136). E “de fato, aqueles que foram unidos na câmara nupcial jamais serão separados. Consequentemente, Eva se separou de Adão porque não foi unida na câmara nupcial, que a unia com ele” (idem, 137). Também: “Aquele que foi ungido possui tudo. Possui a ressurreição, a luz, a cruz e o Espírito Santo. O Pai o ofereceu isto na câmara nupcial” (Idem: 138). E no último parágrafo deste evangelho: “Se alguém se tornar um filho da câmara nupcial, ele receberá a luz. Se esta pessoa não a receber enquanto estiver aqui, não será capaz de recebê-la no outro lugar. Aquele que recebe esta luz não será visto, nem poderá ser detido. E ninguém será capaz de atormentar uma pessoa como esta, mesmo enquanto ela habitar no mundo” (Idem, 143).

A visão valentiniana da concepção

O mestre gnóstico Valentino
(séculos II e III e.c.)
            Conforme a maneira de ser lido e interpretado, o Evangelho de Felipe poderá ser chocante para o cristão convencional, uma vez que o texto trata abundantemente de casamento, de sexo, de procriação e até de adultério. Algumas passagens chegam a ser cômicas, tal como a seguinte explicação sobre a “hereditariedade do adultério”: “As crianças que uma mulher gera são semelhantes ao marido que ela ama. Se o marido a ama, então eles (os filhos) são semelhantes ao marido. Se for uma adúltera, então (os filhos) são semelhantes ao adúltero. Frequentemente, se uma mulher dorme com o seu marido sem necessidade, enquanto seu coração está com o adúltero, com quem ela geralmente mantém relações sexuais, a criança que ela gerar será semelhante ao adúltero” (Isenberg, 2007: 140 e Deconigk, 2011: 42). Isto porque, para os gnósticos valentinianos, a concepção era um fenômeno determinante nos destinos das almas que desciam até este mundo, daí que a procriação é um tema importante para esta vertente gnóstica. Recheado de simbolismos, estes gnósticos tentavam explicar o fenômeno da procriação em seu sentido carnal, celestial e soteriológico. Eles a explicavam assim: “a substância anímica e psíquica eram pré-existentes e, de fato, pré-cósmica. Após o Demiurgo ter criado os corpos psíquicos e físicos, Sofia (o Logos) implantava sementes anímicas neles, aparentemente com a ajuda de um anjo ou do espírito santo”. E mais: “a alma entra no útero, que foi preparado para a concepção pela purificação [menstruação] e é introduzida (no útero) por um daqueles anjos destinados a supervisionar o nascimento, os quais conhecem antecipadamente o momento da concepção para estimular a mulher para a relação sexual, e quando a semente foi depositada, de certa maneira, a Pneuma que está na semente é adaptada, e esta participa da formação (do embrião)” (Deconigk, 2011: 44). April Deconigk explica: “Os anjos, (...), incentivavam a mulher a ter relação sexual com seu marido quando o momento da concepção se aproximava. Após o sêmen ter sido expelido no útero, os anjos então depositavam a alma no momento da concepção. Na verdade, a esterilidade é devido à ausência de intervenção angélica, não ao problema com qualquer um dos pais” (Deconigk, 2011: 45).
            Assim, para os gnósticos valentinianos, a maneira de se fazer sexo, ou seja, a concepção, era de suma importância para o destino dos corpos que nasciam neste mundo inferior. Isto é, os modos puros ou impuros de concepção carnal refletiam nos modos de concepção celestial, consequentemente afetando o nascimento das almas, daí a razão para a criação de tantos símbolos e tantas metáforas para representar a concepção celestial, e a Câmara Nupcial foi um deles.

Considerações finais

            Do breve estudo acima, é possível perceber que uma solução consensual e definitiva sobre a polêmica deste beijo de Jesus em Maria Madalena está longe de ser alcançada. O estado danificado do manuscrito, bem como a redação desconexa, confusa e enigmática do texto do Evangelho de Felipe, somado ao tão pouco que sabemos sobre a corrente valentiniana do Gnosticismo, tudo isto, de certa maneira, contribui para adiar a solução da polêmica. Mesmo assim, algum certo avanço no esclarecimento do assunto já foi alcançado, o que é melhor do que se nada tivesse sido feito até agora. Com o prosseguimento dos estudos e, quem sabe, a descoberta de mais manuscritos gnósticos, o enigma venha a ser resolvido no futuro.
            Apesar de toda a controvérsia, uma ideia é possível ser extraída com certeza do estudo dos textos gnósticos e de outros evangelhos apócrifos: de que o Cristianismo dos primeiros séculos estava mergulhado em imenso mar de interpretações divergentes e rivais, quando cada comunidade compunha seus próprios evangelhos e elaborava suas interpretações de acordo com sua visão doutrinária e seu programa catequético, daí a razão para a existência, segundo os historiadores, de mais de cinquenta evangelhos diferentes, na ocasião do Concílio de Nicéia, convocado pelo imperador Constantino, em 325 e.c., para tentar unificar o Cristianismo, tão fragmentado na época.
           

Obras consultadas


DECONIGK, April D. Conceiving Spirits: The Mystery of Valentinian Sex em Hidden Intercourse: Eros and Sexuality in the History of Western Esoterism. Wouter J. Hanegraaff (ed.). New York: Fordham University Press, 2011, p. 23-48.
EHRMAN, Bart D. Lost Scriptures: Books that Did Not Make It into the New Testament. London/New York: Oxford University Press, 2003, p. 38-44.  
GARDNER, David. Is This the Proof Jesus Wed Mary Magdalene? London: Daily Mail, September 20, 2012, p. 21.
GOODRICK-CLARKE, Nicholas. The Western Esoteric Tradition: A Historical Introduction. London/New York: Oxford University Press, 2008.
GRANT, Robert M. Gnostic Spirituality em Christian Spirituality: Origins to the Twelfth Century. Bernard McGinn et al. (eds.).New York: Crossroad, 1985, p. 44-60. 
ISENBERG, Wesley W. (tr.) O Evangelho de Felipe em A Biblioteca de Nag Hammadi, James M. Robinson (ed.). São Paulo: Madras Editora, 2007, p. 126-43.
KING, Karen L. The Gospel of Mary Magdalene em Searching the Scriptures, Elisabeth S. Fiorenza (ed.). New York: Crossroad, 1993, p. 601-34.
_____________ What Is Gnosticism? Cambridge: The Belknap Press of Harvard University Press, 2005.
LOGAN, Alastair H. B. Gnosticism em The Early Christian World, vol. 2. Philip F. Esler (ed.). London: Routledge, 2000, p. 907-28. 
MATTHEWS, Christopher R. Philip: Apostle and Evangelist. Boston/Leiden: Brill, 2002, p. 135-40.
SCHABERG, Jane. The Resurrection of Mary Magdalene: Legends, Apocrypha and the Christian Testament. New York: Continuum International Publishing Group, 2004, p. 151s.
STANFORD, Peter. Was Jesus Married? London: Daily Mail, September 21, 2012, p. 28.
TRIPOLITIS, Antonía. Religions of the Hellenistic-Roman Age. Grand Rapids: W. B. Eerdmans, 2002, p. 119-42.  
WILSON, R. McL. and George W. MacRae (trs.). O Evangelho de Maria em A Biblioteca de Nag Hammadi, James M. Robinson (ed.). São Paulo: Madras Editora, 2007, p. 441-4.





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