Octavio da Cunha Botelho
(Obs: este estudo está disponível em versão mais atualizada em:
http://observadorcriticodasreligioes.wordpress.com/2014/01/02/a-comicidade-dos-milagres-na-infancia-de-jesus-2/)
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Pintura do menino Jesus e seu pai José |
Muitos desconhecem e, por isso, se
surpreenderão ao saber da existência de evangelhos sobre a infância de Jesus.
Obviamente, não são textos canonizados, portanto foram abandonados ao
esquecimento pelas correntes cristãs predominantes. Mesmo entre os textos
apócrifos, não são os mais conhecidos e publicados, de modo que, o artigo
abaixo será para muitos leitores uma surpreendente novidade. Ao mesmo tempo que
surpreendem, estes textos nos divertem também, uma vez que estão repletos de
relatos sobre milagres cômicos de Jesus na sua infância, muitos deles em
momentos de travessuras. Enfim, os cristãos se surpreenderão, ou talvez os
abominarão, enquanto que os laicos se divertirão com a comicidade. Sendo assim,
este estudo é apropriado para o Dia das Crianças, já que a infância é a fase
das travessuras.
A composição e a preservação de
narrativas sobre a infância de líderes religiosos não são frequentes na cultura
religiosa. Exceto nos apócrifos de Jesus, só iremos encontrar mais narrativas
extensas sobre a infância de Sri Krishna
no livro 10 do Bhagavata Purana. A
diferença é que os textos sobre a infância de Jesus nunca foram canonizados,
enquanto que os relatos sobre a infância de Sri
Krishna, não foram apenas amplamente reconhecidos pelos hindus, como também
foram reproduzidos em muitas artes e compostas muitas canções em louvor aos
episódios desta fase da sua vida. Ou seja, a infância de Sri Krishna é
reverentemente cultuada.
Os Evangelhos da
Infância de Jesus
O número de evangelhos, nos primeiros
anos do Cristianismo, era tão grande que os mesmos podiam até mesmo ser classificados
em gêneros. Os historiadores não apresentam números coincidentes, mas estima-se
que, pelo menos, cinquenta evangelhos eram existentes na época do Concílio de
Nicéia (325 e.c.). Dentre os tantos gêneros, um deles é o gênero dos Evangelhos da Infância de Jesus. Estes
nunca foram canonizados, por isso, com o tempo, caíram no esquecimento, bem
como foram queimados pela Igreja na Idade Média. De modo que muitos hoje,
cristãos ou ateus, nem sequer sabem que estes textos apócrifos existem. Em
vista do número de manuscritos sobreviventes, estes textos devem ter gozado de certa
popularidade nas regiões onde a perseguição ortodoxa era menor.
Parece que a principal intenção com
a composição dos Evangelhos da Infância
foi mostrar o conhecimento precoce de Jesus de sua origem sobrenatural e de seu
poder sobre a vida e a morte. Bem como, outro objetivo pode ter sido preencher
a omissão sentida nos textos ortodoxos quanto às informações sobre a infância
de Jesus. Exceto a passagem em Lucas 2:41-50, os Evangelhos Canônicos são quase
que omissos sobre os primeiros anos da sua vida (Elliott, 1996: 19).
Página interna do Evangelho Árabe da Infância |
O leitor cristão dos dias de hoje
ficará chocado com estes relatos, enquanto que o cético se deleitará com a
comicidade dos eventos, no entanto, deve-se levar em conta que os textos
cristãos e o Cristianismo dos primeiros séculos eram muito diferentes do que
temos atualmente, após muitos séculos de exclusiva leitura habitual dos textos
canônicos. Assim, é preciso lembrar que, nos primeiros séculos, não existia uma
uniformidade textual nos relatos evangélicos, diferentes igrejas utilizavam
distintos textos, até que gradativamente se consolidou uma corrente
predominante, vitoriosa nos primeiros concílios, que unificou os textos e
homologou o cânone. Portanto a diversidade de relatos orais e de textos era
enorme, daí que os cristãos daquela época não deviam se chocar com estas
narrativas, que para nós hoje parecem cômicas.
De fato, dentre os gêneros de
evangelhos, os da infância são os mais risíveis. Algumas passagens até parecem
episódios de filmes de comédia. Confesso que, quando li estes textos pela
primeira vez, no início dos anos 1980, não consegui conter o riso, sobretudo no
episódio do milagre do alongamento da tábua durante a confecção de uma cama,
para socorrer José, pai de Jesus, um carpinteiro imprevidente.
Os Evangelhos
da Infância de Jesus
sobreviventes são:
-
Evangelho da Infância por Tomé o Israelita (Platt Jr., 1926:
60s; Elliott, 1993: 68s; 1996: 20s e Ehrman, 2003; 57s)
-
Evangelho Árabe da Infância (Donaldson,
1885: 405s; Platt Jr., 1926: 38s; Elliott, 1993: 100s e 1996: 28s)
-
Livro da Infância do Salvador (Elliott,
1993: 108)
- Evangelho Armênio da
Infância (Elliott, 1993: 118)
- Histórias Coptas da
Infância (Elliott, 1993: 121)
Muitos episódios se repetem nos
evangelhos da infância, o Evangelho da
Infância por Tomé parece ser o mais antigo, e os outros podem ter sido
compostos a partir dele. O Evangelho
Árabe da Infância é o mais extenso. Todos eles tratam da vida de Jesus dos
cinco aos doze anos, terminando com o episódio de Jesus no templo, narrado em
Lucas 2:41-50. O Evangelho da Infância
por Tomé inicia a narrativa onde
termina o Protoevangelho de Tiago,
portanto pode ser considerado uma continuação.
Os milagres cruéis de
Jesus
Nos relatos destes evangelhos
apócrifos da infância, Jesus também realiza alguns milagres cruéis, causando
lesões corporais e assassinando crianças e adultos, por motivos fúteis. Veja em
seguida alguns deles. No Evangelho da
Infância de Jesus por Tomé o Israelita III 1-3, é relatado que Jesus,
enquanto brincava, represou uma água. Um rapaz, vendo aquilo, desfez o que
Jesus tinha feito. Jesus ficou irritado quando viu o que tinha acontecido e
disse ao rapaz: “malvado, idiota irreverente, esta água represada lhe incomoda?
Veja, agora você ficará seco como uma árvore, e você nunca terá folhas, ou
raiz, ou frutos”. Imediatamente o rapaz ficou completamente seco (Elliott,
1993: 76; 1996: 20-1 e Ehrman, 2003: 58).
Em seguida, neste mesmo evangelho,
um episódio que é repetido no Evangelho
Árabe da Infância, cap. XLVII, Jesus comete um assassinato por vingança, a
partir de um motivo fútil, quando caminhava por uma aldeia e uma criança que
corria lhe esbarrou no ombro. Jesus ficou irritado e disse a ela: “Você não prosseguirá
em seu caminho”, e imediatamente a criança caiu e morreu (Donaldson, 1885: 414,
Platt Jr. 1926: 57, Elliott, 1993: 76; 1996: 21 e Ehrman, 2003: 58). E a
crueldade não acaba aqui, logo adiante, no capitulo V, depois desta ocorrência,
os pais do rapaz assassinado foram reclamar para José, pai de Jesus. Este
último advertiu Jesus, o qual lhe respondeu: “Bem sei que estas palavras não
vêm de ti. Mas calarei em respeito a sua pessoa. Esses outros, ao contrário,
receberão seu castigo”. E no mesmo instante, aqueles que o acusaram, ficaram
cegos (Elliott, 1993: 76 e Ehrman, 2003: 58-9).
Gravura reproduzindo o milagre da infusão de vida nos pássaros de barro |
E ainda mais, noutra passagem do Evangelho Árabe da Infância, cap. XLVI,
Jesus estava brincando, num dia de Sabbath,
com outras crianças na beira de um rio, onde tinham feito passarinhos de barro.
Ao ver aquilo, o filho de um judeu, pois é proibido fazer tais coisas neste dia
sagrado dos judeus, os advertiu e começou a destruir o que tinha sido feito.
Quando Jesus estendeu as mãos em direção aos passarinhos de barro que tinha
feito, estes saíram voando e cantando. Quando o filho do judeu se aproximou da
poça, que Jesus tinha cavado, para destruí-la, ela secou e Jesus disse-lhe: “Vê
como esta água secou, assim será com a sua vida”. E a criança secou (Donaldson,
1885: 414 e Platt Jr., 1926: 56-7). Este milagre é narrado no Evangelho da Infância por Tomé o
Israelita, capítulo II, mas com a omissão do assassinato da criança que secou
(Elliott, 1993: 75-6; 1996: 20 e Ehrman, 2003: 58).
Estes milagres cruéis relatados
acima, que não são todos nos Evangelhos da Infância, são muito diferentes dos
milagres piedosos dos Evangelhos Canônicos. Porém, nem estes últimos textos ficaram
absolutamente livres de um milagre cruel. Veja a maldição e o crime ecológico
em Mateus 21:18-20 (também, Marcos 11:12-14 e 20-26), “De manhã, voltando à
cidade, (Jesus) teve fome. Vendo uma figueira à beira do caminho, aproximou-se
dela, mas não achou nada senão folhas, e disse-lhe: ‘Jamais nasça fruto de ti’.
E imediatamente a figueira secou”.
A água de banho e as
fraudas milagrosas de Jesus
A água do banho de Jesus, enquanto
bebê, segundo o Evangelho Árabe da
Infância, era milagrosa e realizava curas, ela curou uma jovem leprosa
(Platt Jr., 1926:43-4), um menino leproso filho da esposa de um príncipe (Platt
Jr., 1926: 44-5), o feitiço de um jovem que foi transformado num mulo (Platt
Jr., 1926: 45-6), duas crianças atacadas por uma peste em Belém (Platt Jr.,
1925: 48) e outros milagres de cura (Platt Jr., 1926: 48s).
Também, as fraudas de Jesus realizavam
milagres e a morte de rivais. Numa passagem do Evangelho Árabe da Infância, a mãe de uma criança doente, que tinha
uma mulher rival, pois seu marido era casado com duas esposas, recebe de
presente as fraudas de Jesus, com as quais ela confecciona uma túnica para seu
filho doente. Ao vesti-lo com esta nova roupa, ele foi curado e sua rival
morreu no mesmo dia (Platt Jr., 1925: 48).
Numa passagem mais adiante, uma
jovem era atormentada por Satã, que lhe aparecia na forma de um dragão. A
família vivia uma profunda tristeza. Sua mãe, ao saber das curas do menino
Jesus, foi até Belém encontrar com Maria, a qual lhe deu um pouco de água do
banho de Jesus, para derramá-la sobre o corpo da possuída. Em seguida,
entregou-lhe as fraudas do menino Jesus. Então sua mãe retornou a sua cidade, e
quando veio o tempo no qual Satã costuma atormentá-la na forma de um dragão, a
jovem colocou sobre sua cabeça as fraudas e desdobrou-a, e de repente, delas
saíram chamas que se dirigiam à cabeça e aos olhos do dragão. Com isso, Satã
fugiu apavorado, abandonando a jovem e nunca mais apareceu (Platt Jr., 1926: 51-2).
Os milagres mais cômicos
Em seguida, é apresentada uma
seleção dos milagres mais hilários na infância de Jesus, extraída
principalmente do Evangelho Árabe da
Infância e do Evangelho da Infância por
Tomé o Israelita.
-
Jesus fala no berço ainda bebê: Em
ordem cronológica, o primeiro milagre de Jesus aconteceu quando tinha acabado
de nascer, ainda bebê no berço, quando falou a sua mãe; “Eu, que nasci de ti,
sou Jesus, o Filho de Deus, o Verbo, como te anunciou o anjo Gabriel, e meu Pai
me enviou para a salvação do mundo” (Evangelho
Árabe da Infância, cap. I; Donaldson, 1885: 405 e Platt Jr., 1926: 38).
Este milagre é mencionado no Alcorão (XIX, 30-1), mas com uma fala diferente
(Challita , 2002: 158).
Desenho do episódio do alongamento da tábua por Jesus e seu pai José na carpintaria |
-
Medida de tábua não era problema: O
pai de Jesus era carpinteiro e costumava fazer arados e cangas. Ele recebeu um
pedido de um homem rico para fazer uma cama. Mas, quando a medida de uma das
vigas transversais ficou pequena demais, ele não soube o que fazer. O menino
Jesus disse ao seu pai, “coloque as duas peças de madeira sobre o chão e as
alinhe do meio para a extremidade”. José fez assim tal como a criança disse.
Então, Jesus se colocou na outra extremidade, pegou a tábua mais curta e a
esticou até alcançar o mesmo comprimento da outra (Evangelho da Infância por
Tomé, cap. 13; Elliott, 1993: 78 e Ehrman, 2003: 60-1).
-
As estátuas de barro: Quando Jesus
completou sete anos de idade, ele brincava um dia com outras crianças de sua
idade. Para divertirem-se eles faziam com o barro imagens de animais, tais como
lobos, asnos, pássaros, e cada um elogiava o seu próprio trabalho,
esforçando-se para que fosse melhor do que os dos seus companheiros. Então
Jesus disse para as outras crianças: ordenarei às estatuas de barro que fiz que
andem e elas andarão. E então Jesus ordenou às imagens que andassem e elas imediatamente
andaram. Quando ele mandava voltar, elas voltavam. Ele havia feito estátuas de
pássaros que voavam quando ele ordenava que voassem e paravam quando ele dizia
para parar, e quando ele lhes dava bebida e comida, eles bebiam e comiam (Evangelho Árabe da Infância; Platt Jr.,
1926: 52-3).
-
Jesus, tintureiro adivinho: Certo
dia, em que brincava e corria com outras crianças, Jesus passou em frente a uma
loja de um tintureiro que se chamava Salém. Havia nesta loja tecidos que
pertenciam a um grande número de habitantes da cidade, e que Salém se preparava
para tingir de várias cores. Tendo Jesus entrado na loja, pegou todas as
fazendas e jogou-as na caldeira. Salém ficou apavorado e disse: “Que fizeste
tu, ó filho do Maria? Prejudicaste a mim e aos meus clientes”. Então, Jesus
respondeu: “Qualquer fazenda que queira mudar a cor eu mudo”. E ele retirou as
fazendas da caldeira, e cada uma estava tingida da cor que desejava o
tintureiro (Evangelho Árabe da Infância;
Platt Jr., 1926: 53).
-
A explosão da cobra: José enviou seu
filho Tiago para recolher lenha e trazê-la para casa. Jesus o acompanhou.
Enquanto Tiago estava recolhendo a lenha, uma cobra mordeu sua mão. Quando ele
estava estirado no chão para morrer, Jesus apareceu e soprou o local da
mordida. A dor passou imediatamente, a cobra explodiu e Tiago recuperou a saúde
(Evangelho da Infância de Jesus por Tomé,
cap. 16; Elliott, 1993: 79 e Ehrman, 2003: 61).
-
Jesus ressuscita um menino para
inocentar-se: Jesus estava brincando num terraço de uma casa e uma das
crianças, com quem brincava, caiu do terraço e morreu. Quando as outras
crianças viram o que tinha acontecido, elas fugiram, de maneira que Jesus
permaneceu lá sozinho. Quando os pais do menino que caiu chegaram, eles
acusaram Jesus. Mas Jesus disse, “Eu não o empurrei”. Mas eles começaram a
acusá-lo publicamente. Então, Jesus foi até o local do menino acidentado e com
voz alta gritou, “Zenon (era o nome do menino) levanta-te e diga-me, eu
empurrei você?” O menino imediatamente levantou-se e disse, “não, você não me
empurrou, mas você me ressuscitou”. Quando os outros viram isto, eles ficaram
impressionados (Evangelho da Infância por
Tomé, cap. 09; Elliott, 1993: 78 e Ehrman, 2003: 60).
-
Milagre para compensar um descuido:
Quando Jesus tenha seis anjos, sua mãe lhe entregou um jarro para que buscasse
água para sua casa. Mas, ele tropeçou na multidão e o jarro quebrou. Então,
Jesus abriu o mando que usava e o encheu de água, carregando a água até sua mãe
(Evangelho da Infância por Tomé, cap.
11; Elliott, 1993: 78 e Ehrman, 2003: 60).
-
O imprevidente carpinteiro José é
socorrido mais uma vez por Jesus: Um dia, o rei de Jerusalém mandou
chamá-lo e disse; “Eu quero, José, que me faças um trono segundo as dimensões
do lugar onde costumo sentar-me”. José obedeceu, e pondo mãos a obra, passou
dois anos no palácio para construir o trono. E quando foi colocado no lugar,
perceberam que de cada lado faltavam dois palmos a menos da medida fixada.
Então o rei ficou bravo com José, que temendo a raiva do monarca, não conseguia
comer e deitou-se em jejum. Então, Jesus perguntou-lhe qual era a causa do seu
receio, e ele respondeu: “É que a obra que trabalhei durante dois anos está
perdida”. E Jesus respondeu-lhe: “Não tenha medo e não perca a coragem, pega
este lado do trono e eu do outro, para que possamos dar-lhe a medida exata”. E
José tendo feito o que lhe havia pedido Jesus, e cada um puxando para um lado,
o trono obedeceu e ficou exatamente com a dimensão desejada (Evangelho Árabe da Infância; Platt Jr.,
1926: 53-4).
Bibliografia
CHALLITA, Mansour. O Alcorão. Rio de Janeiro: ACIGI, 2002.
DONALDSON, James and
Alexander Roberts (eds.). The Arabic
Gospel of the Infancy of the Saviour em Early
Church Fathers – Ante-Nicene Fathers, vol. VIII. Edinburg: T&T Clark,
1885, reprint Grand Rapids: Wm. B. Eerdman Publishing Company, p. 405-15.
EHRMAN, Bart D. Lost Scriptures: Books that did not make it
into the New Testament. New York: Oxford University Press,
2003, 57-62.
ELLIOTT, J. K. The Apocryphal New Testament: A Collection
of Apocryphal Christian Literature in an English Translation. Oxford:
Clarendon Press, 1993, 46-122.
______________ The Apocryphal Jesus: Legends of the Early
Church. New York/Oxford: Oxford University Press, 1996, p. 19-30.
JAMES, M. R. The Apocryphal New Testament. Oxford:
Clarendon Press, 1924.
PLATT Jr., Rutherford H. The Lost Books of the Bible. New York:
Alpha House, 1926, p. 38-62.
Muito boa essa postagem, espero ler mais histórias interessantes no blog.
ResponderExcluirAbraços