terça-feira, 24 de abril de 2012

|ESTUDO| Um Ano Sem Sathya Sai Baba: Saudade ou Alívio?


Octavio da Cunha Botelho

(Obs: este estudo está disponível em uma versão mais atualizada em:

Este artigo foi programado para ser postado justamente na data de 24/04/2012, aniversário de um ano da morte de Bhagavan Sri Sathya Sai Baba. Ele foi o mais conhecido líder religioso de nacionalidade indiana das últimas décadas. Considerado por seus devotos e admiradores como um avatar (encarnação divina), conseguiu popularidade com muita rapidez no século XX, devido principalmente ao ímpeto fanático e propagandista de seus seguidores. Sua reputação se espalhou tanto que ele chegou a ser matéria em uma das revistas mais prestigiadas do mundo, a Harvard International Review (vol. 22, nr. 02, 2000, p. 14). Ele talvez tenha sido o guru mais bem sucedido, nas últimas décadas, em restabelecer a fé na religiosidade e resgatar muitos desacreditados para o caminho espiritual, sobretudo em virtude das suas exibições de materializações de objetos sagrados. Por outro lado, os céticos o acusam de charlatanismo e que “a Índia e o mundo teriam sido muito melhores sem Sai Baba”. Para seus seguidores, a sua morte foi uma grande perda para a religiosidade mundial, enquanto que para os céticos, a sua morte foi um alívio para a doença da credulidade.

Santo ou vigarista

Sathya Sai Baba nasceu em 1926, no vilarejo de Puttaparthi (hoje uma cidade muito movimentada) no estado de Andhra Paradesh, sul da Índia. Seu nome de batismo foi Sathyanarayana Raju. A partir de certa idade, adotou o nome religioso de Bhagavan Sri Sathya Sai Baba, quando passou a alegar que era a reencarnação de Sai Baba de Shirdi (um lugarejo perto de Mumbai), conhecido pela prática da suposta materialização da Vibhuti (cinza sagrada), um santo que combinava ensinamentos hindus e mulçumanos. Sua missão hoje reúne cerca de cinco ou seis milhões de seguidores no mundo - o número exato é difícil de calcular em virtude da falta de laços formais de filiação - famoso internacionalmente por seus fenômenos de materialização de objetos sagrados (anéis, medalhões, colares, lingas, etc.) e especialmente da vibhuti (cinza sagrada), é proclamado por seus devotos entusiasmados como uma grande encarnação divina. Mais fácil de precisar o tamanho é a Sai Baba Organisation, a qual está presente em 114 países com cerca de 1.200 centros.
Entretanto, paralelamente, circula um número de acusações contra ele e contra sua organização de práticas de pedofilia, do assassinato de seis internos, o seu assistente pessoal Radha Krishna Menon estava entre os assassinados, ocorrido em 06 de Junho de 1993, dentro do seu próprio quarto de dormir no ashram em Puttaparthi, o qual não foi até hoje esclarecido pela justiça indiana; bem como as demonstrações públicas de milagres de materialização da vibhuti e de outros objetos são acusadas de serem truques de mágicas. Em 1963, ele sofreu quatro fortes ataques cardíacos. Em 2006, ele fraturou o quadril num acidente com um garoto que estava em cima de um banco de ferro que escorregou e caiu com o banco em cima de Sai Baba, a partir daí ele passou a utilizar uma cadeira de rodas, que mais parecia uma “luxuosa poltrona de rodas”, com isso diminuiu muito suas aparições públicas. Ele passou a dar darshans (bênçãos) do automóvel ou da cadeira (luxuosa poltrona) de rodas. Agora, o mais decepcionante para seus devotos com a sua morte em 24 de Abril de 2011, aos 84 anos, foi a declarada previsão, feita pelo próprio Sai Baba, de que ele só morreria aos 96 anos e que seu corpo permaneceria jovem até tal idade.
O canal de TV por assinatura National Geographic já exibiu documentários mostrando especialistas em mágica reproduzindo, com exatidão, os mesmos supostos “milagres” executados por Sai Baba, imitando até mesmo o seu habitual movimento circular da mão, antes de materializar a vibhuhi (cinza sagrada). Para conhecer um relato resumido e assistir a uma reportagem em vídeo sobre Sai Baba, do ponto de vista jornalístico, produzidos pelo canal de TV indiano NDTV, acesse: http://www.ndtv.com/article/india/who-is-sri-sathya-sai-baba-101102. Para os casos de abuso sexual, ver a matéria Secret Swami no site da BBC News: http://news.bbc.co.uk/2/hi/programmes/this_world/3791921.stm e o artigo A God Accused na Indian Today Magazine de 04/12/2000 em: http://www.india-today.com/itoday/20001204/cover4.shtml. Para os assassinatos de 06/06/1993, ver a coletânea de notícias em jornais indianos que noticiaram o evento em: http://www.saisathyasai.com/baba/Ex-Baba.com/copyright-priddy-stealer2.html. E sobre seus fraudulentos milagres, ver o artigo Sai Baba: god-man or con-man? (Sai Baba: homem-deus ou charlatão?) no site da BBC News: http://www.saisathyasai.com/baba/Ex-Baba.com/copyright-priddy-stealer2.html. Agora, para conhecer os truques por trás das materializações, consultar: http://www.youtube.com/watch?v=Yblhsr1O4IQ&feature=related e
Ele nunca concordou em submeter suas habilidades a um exame em condições de observação controlada por um investigador, portanto tudo o que foi investigado sobre suas façanhas até agora foi feito à distância e com o absoluto controle dele, bem como conforme depoimentos de testemunhas, na maioria por seus devotos deslumbrados e crédulos. Portanto, desde as investigações relatadas no livro do psicólogo Erlendur Haraldsson, Modern Miracles: An Investigative Report on Psychic Phenomena Associated with Sathya Sai Baba (Milagres Modernos: Um Relatório Investigativo sobre os Fenômenos Psíquicos Associados com Sathya Sai Baba - Hasting House Book Publishers, 1997.), o qual em grande parte endossa seus milagres; até as contestações do seu principal oponente, Basava Premanand (1930-2009), fundador do ramo indiano do CSICP (Committee for Scientific Investigation of Claims of the Paranormal - Comitê para a Investigação Científica das Alegações do Paranormal) e do periódico Indian Skeptic, http://www.indiansceptic.in/, foram realizadas sob mínimas condições de observação científica.
Sai Baba exegeta
            Apesar da sua precária formação escolar, este carismático líder religioso aventurou-se em escrever sobre temas religiosos em geral, bem como escreveu comentários sobre alguns livros sagrados (Bíblia, Upanixades, Bhagavad Gita, etc.), originalmente escritos em Telugu, sua língua nativa, mas quase todos traduzidos para o inglês. Seu comentário sobre o Bhagavad Gita, denominado Geeta Vahini, chama a atenção pela banalidade exegética. Repleto de frases truísticas, até parece mais um livro de catecismo para novatos, o comentário despe o Gita de seu encanto artístico e poético em favor de a uma redação coloquial e popular, capaz de decepcionar qualquer admirador da literatura clássica do Oriente. O clássico diálogo (Gitopadesha) entre Krishna e Arjuna é transformado numa conversa informal entre dois compadres. A coloquialidade e a vulgaridade da tradução a fazem tão distante da tradução poética de Sir Edwin Arnold, The Song Celestial, e da tradução filológica de Franklin Edgerton, publicada na Harvard Oriental Series em 1944, que só pode ser o trabalho de um tradutor que desconhece a cultura e a literatura clássicas. Enfim, se as mensagens dos livros religiosos não têm mais validade científica e moral para a cultural atual, o único proveito remanescente de alguns destes textos clássicos é a sua propriedade artística e poética, mas mesmo esta última virtude restante Sai Baba apagou do texto na sua tradução.
Sua liberdade na tradução, bem como na atribuição do significado que deseja para a mensagem do Gita, é tão grande que ele chega a colocar nas bocas de Krishna e de Arjuna idéias absurdas e anacrônicas, e até certo ponto cômicas, inexistentes no Textus Receptus (texto aceito) do Gita. Veja a seguinte afirmação absurda de Krishna atribuída por ele: “Arjuna, preste atenção a apenas um fato. Qual a temperatura do seu corpo agora? Deve estar próxima dos 98 graus; como isto aconteceu? Porque o sol suporta muito milhões de vezes este calor naquela distância, não é? Agora, se o sol sente que ele não suportará aquele fogo e torna-se frio, o que acontecerá à humanidade?...” (Baba, 1983: 48). O Bhagavad Gita é um trecho do épico Mahabharata, quando acontece um diálogo entre o discípulo Arjuna e seu mestre Krishna no momento antes da batalha entre as famílias dos Pandavas e dos Kauravas, cada família com seus aliados. A historicidade desta batalha ainda é dúvida entre os historiadores, bem como a precisa data da composição do texto do Mahabharata também ainda é objeto de discussão entre filólogos e pesquisadores. Contudo, sabe-se com certeza que os relatos foram compostos aproximadamente no período da Antiguidade, portanto numa época quando ainda não tinha sido inventado o termômetro para medição de temperatura do corpo, de modo que esta afirmação, colocada na boca de Krishna por Sai Baba, é um anacronismo absurdo.  O exemplo seguinte sobre o esfriamento do sol é infantilmente cômico.
Outra passagem anacrônica e cômica é a seguinte pergunta de Arjuna inventada por Sai Baba: “Krishna (...) agora, no fim disto tudo, se você lançar esta bala de canhão, como eu poderei jamais captar seu significado?” (Baba, 1983: 128).  Sabemos pela história que o canhão foi inventado no século XIII e.c., durante a invasão de Genghis Kahn (1162-1227 e.c.) à China, como adaptação dos dispositivos de arremesso de fogos de artifício, utilizados por séculos pelos chineses. Sua primeira utilização militar foi nas campanhas deste conquistador mongol, portanto muitos séculos depois da composição do Mahabharata. De modo que não existia canhão, nem sequer qualquer outra arma de fogo, no tempo deste épico indiano.
Como afirmado acima, o seu comentário está repleto de truísmos, os quais podem chegar ao seguinte grau de obviedade: “Antes do nascimento, as pessoas não tem relacionamento com este mundo e com seus objetos materiais. Após a morte, elas e todos os amigos e parentes desaparecem...” (Baba, 1983: 222).
Dos escritos e discursos de Sai Baba é possível perceber a sua precária formação escolar, sendo que, por outro lado, ele dirigiu as verbas milionárias das doações de seus devotos e admiradores para a construção de escolas e de universidades. Esta foi uma decisão sem dúvida louvável, no entanto, quando uma pessoa instruída, que não é deslumbrada pelos seus fenômenos (ou truques) de materialização, percebe a sua precariedade cultural, não deixará de pensar que o que Sai Baba deveria necessariamente ter feito, de preferência no início, é ter se matriculado em uma das escolas que ele mesmo fundou para estudar junto com as crianças e os adolescentes, a fim de aprender algumas lições de história, e com isso não afirmar a existência de canhão e de termômetro na Antiguidade.

Bibliografia

ARNOLD, Sir Edwin. The Celestial Song: Bhagavad Gita. London: Routledge & Kegan Paul Ltd, 1972.
BABA, B. S. Sathya Sai. Geeta Vahini. Anantapur: Sri Sathya Sai Books & Publications, 1983.
EDGERTON, Franklin. The Bhagavad Gita. Delhi: Harvard University Press/Motilal Banarsidass, 1996.
SINGER, Margaret T. Cults in Our Midst. San Francisco: Jossey-Bass, 2003.
SRINIVAS, Tulasi. Global Godman: Inclusion, Salvation, Syncretism em Many Globalizations: Cultural Diversity in the Contemporary World. Peter L. Berger (ed.). New York/Oxford: Oxford University Press, 2002, p. 100-16.
STALLINGS, Stephanie. Avatar of Stability. Harvard International Review, vol. 22, nr. 02, 2000, p. 14.
TWEED, Thomas A. and Stephen A. Prothero (eds.). Asian Religions in America: A Documentary History. New York/Oxford: Oxford University Press, 1999, p. 257-60.
WOODHEAD, Linda (ed.). Religions in the Modern World: Traditions and Transformations. London/New York: Routledge, 2002.


terça-feira, 10 de abril de 2012

|ESTUDO| Cristianismo sem Semana Santa

 Octavio da Cunha Botelho

Obs: este estudo está disponível em versão mais atualizada em:
http://observadorcriticodasreligioes.wordpress.com/2014/01/08/cristianismo-sem-semana-santa/)

            O artigo abaixo é um complemento do estudo “A Historicidade dos Episódios da Crucificação e da Ressurreição: Um Breve Estudo Crítico-histórico”, postado em 03/04/2012, em razão da Semana Santa, o qual não foi incluído para evitar a longa extensão do mesmo. O assunto foi apenas mencionado no final deste último, de modo que este novo artigo foi postado agora como uma complementar reflexão conjectural e descontraída sobre a hipotética vitória dos gnósticos cristãos nos primeiros concílios ecumênicos e sua conseqüente consolidação como corrente dominante do Cristianismo, bem como o seu possível efeito nas comemorações da Semana Santa.  Poderá ser interessante para aqueles que gostariam de imaginar a possibilidade de que qualquer uma das correntes rivais poderia ter triunfado nos primeiros concílios, e com isso o caráter do Cristianismo dominante ter sido muito diferente nos séculos seguintes.

O Gnosticismo como um hipotético Cristianismo dominante       

Agora que dispomos de mais dados, é possível saber, com mais precisão, como foi a batalha entre as primeiras correntes exegéticas para o logro da hegemonia teológica nos primeiros séculos do Cristianismo (Ehrman, 2008). Então, com base neste conhecimento histórico, independente da versão tradicional, seria interessante conjecturar sobre o destino da igreja dominante, no caso do triunfo dos gnósticos cristãos nos primeiros concílios ecumênicos, e a sua posterior consolidação como a corrente predominante no Cristianismo, ao invés do triunfo da então incipiente corrente ortodoxa. Pois, pelo que é possível encontrar nos escritos dos primeiros heresiologistas (autores de críticas contras os hereges) cristãos, os gnósticos foram, segundo Irineu de Lyon, que escreveu por volta de 180 e.c., “os mais perigosos à ortodoxia cristã” (Ehrman, 2006: 82). Bem como, nenhum outro herege, nos primeiros séculos, foi mais criticado do que o gnóstico cristão Valentino, cujos ataques vieram de nada menos do que de seis heresiologistas: Irineu de Lyon, Hipólito, Clemente de Alexandria, Orígenes, Tertuliano e Epifânio (Tripolitis, 2002: 133). Enfim, os gnósticos deviam ser muito temidos.
A gradual consolidação de uma corrente dominante começou a se oficializar a partir do concílio de Nicéia, convocado pelo imperador Constantino, em 325 e.c., a qual se firmou nos concílios ecumênicos subseqüentes: Constantinopla I (381 e.c.), Éfeso (431 e.c.), Calcedônia (451 e.c.), Constantinopla II (533 e.c.) e outros. Só os concílios ecumênicos foram doze, desde o concílio de Jerusalém, ainda no tempo dos apóstolos, para discutir a conversão dos não-judeus, até o concílio Vaticano II, em 1962. Se forem somados os sínodos e as demais reuniões regionais, o número talvez seja incontável. O Cristianismo é a religião que mais realizou concílios, sínodos e reuniões para consolidar a fé e para combater as heresias, quando comparamos com a história das outras religiões, este exagero até parece uma paranóia.
Se o triunfo dos gnósticos cristãos tivesse acontecido, uma forte possibilidade é a de que não teríamos as tão tradicionais comemorações da Semana Santa. A razão para tal inexistência é que os gnósticos cristãos não davam tanta importância para os significados literais e físicos dos eventos da paixão, da crucificação, do sepultamento e da ressurreição de Jesus. Nas palavras de Bart D. Ehrman: para os gnósticos “... a salvação não veio por meio da morte e da ressurreição de Jesus, mas por meio da revelação do conhecimento secreto que ele apresenta” (Ehrman 2006: 103).  Por exemplo, o Evangelho de Judas omite estes episódios e termina na entrega de Jesus às autoridades judias (Wurst, 2006: 45). Ademais, existe até uma tradição que afirma que Jesus não morreu na cruz, mencionada num verso do Alcorão (IV: 157): “E por terem dito: ‘Matamos o Messias, Jesus, o filho de Maria, o Mensageiro de Deus’, quando, na realidade, não o mataram nem o crucificaram: imaginaram apenas tê-lo feito. E aqueles que disputam sobre ele estão na dúvida acerca da sua morte, pois não possuem conhecimento certo, mas apenas conjeturas. Certamente não o mataram” (Challita, 2002: 53). Outra tradição afirma que Simão de Cirene foi crucificado no lugar de Jesus.
Com a morte de Jesus na cruz, dois seguimentos tentaram compensar este fracasso, o primeiro inventou o episódio da ressurreição, para atribuir um caráter extraordinário à vida de Jesus e fazer do espetacular milagre da ressurreição o centro do seu dogma. Este foi o seguimento que, com o tempo, se transformou na corrente ortodoxa que triunfaria no concílio de Nicéia, o Cristianismo predominante até hoje. O outro seguimento foi o dos gnósticos cristãos (existiram, ou talvez ainda existam, gnósticos não-cristãos; se a remanescente comunidade dos mandeístas do Iraque é gnóstica ou não, ainda é assunto de debate entre os pesquisadores) que deram pouca ou nenhuma importância à ressurreição, então para compensar o fracasso da morte de Jesus, os gnósticos colocaram em sua boca uma sabedoria esotérica e fantástica, reproduzida em seus textos que foram considerados, pela então igreja dominante, como heréticos. Para os gnósticos, Jesus era mais um sábio e um mestre do que um salvador que sacrificou a sua vida para salvar os pecados dos outros, por isso sua ênfase na gnose (conhecimento).
Os textos já encontrados dos gnósticos cristãos expressam idéias, em parte, divergentes, pois não nos foram legados através da tradição interrupta, mas sim encontrados através de descobertas arqueológicas e de manuscritos achados em locais esquecidos, por isso não temos um compêndio sistemático de suas doutrinas. Antes da descoberta de Nag Hammadi e de outros manuscritos gnósticos recentemente descobertos, as principais fontes eram as obras dos heresiologistas (Irineu de Lyon, Orígenes, Tertuliano, etc.). Porém, não é possível extrair um sistema destas obras, pois às vezes elas contradizem entre si.  Assim, temos textos gnósticos que mencionam a crucificação de Jesus e outros que não (o Evangelho de Judas, por exemplo). Os que mencionam, atribuem pouca importância ao evento e não se detêm em extensas narrativas, tal como nos evangelhos canônicos. O Evangelho de Pedro, o qual não está entre os textos achados em Nag Hammadi, apresenta um extenso relato da crucificação, da paixão, do sepultamento e da ressurreição de Jesus, mas ainda é dúvida entre os pesquisadores se é um texto gnóstico ou não. Alguns autores o consideram gnóstico por transmitir uma cristologia docética. Agora, quanto à ressurreição, os textos gnósticos que a reconhecem atribuem um significado diferente da interpretação canônica. Na visão dos gnósticos, a ressurreição era um evento espiritual, daí a afirmação no Evangelho de Felipe: “Aqueles que dizem que o Mestre (Jesus) primeiro morreu e (em seguida) se levantou estão equivocados, pois ele se elevou primeiro e (então) morreu. Se alguém não alcançar primeiro a ressurreição, ele não morrerá” (Isenberg, 2007: 131).
Entres os manuscritos gnósticos de Nag Hammadi está uma carta didática intitulada “Tratado da Ressurreição” (Peel, 2007, 59-63), cuja concepção de ressurreição difere daquela dos evangelhos canônicos. Nesta visão, a ressurreição é um ato espiritual: a ressurreição “é sempre a revelação daqueles que se elevaram. [...] não penses então que a ressurreição é uma ilusão. Não é uma ilusão, mas sim a Verdade. De fato é mais apropriado dizer que o mundo é uma ilusão, em vez da ressurreição, que veio à existência por meio do nosso Senhor o Salvador Jesus Cristo. [...] a ressurreição é a verdade que se mantém firme. É a revelação do que é, e a transformação das coisas, e a transição para o novo. Assim como a imortalidade [desceu] sobre a mortalidade, a luz flui sobre a escuridão, engolindo-a; e o pleroma preenche a deficiência. Esses são os símbolos e as imagens da ressurreição” (Peel, 2007: 63; veja também Ehrman, 2008: 197-8).

Algumas reflexões conjecturais e descontraídas sobre o Cristianismo sem a Semana Santa

            Do exposto é possível vislumbrar o que seria da Semana Santa se o Gnosticismo Cristão tivesse triunfado nos primeiros concílios e se transformado na corrente dominante.  Tal como já foi mencionado, certamente não existiriam as comemorações da Semana Santa.  A Sexta Feira da Paixão, o Sábado de Aleluia e o Domingo de Páscoa não representariam, para os cristãos, o que passaram a representar no decorrer dos anos.  Apesar do grande número de textos já encontrados sobre o Gnosticismo Cristão, nenhum trata dos costumes, das cerimônias e do modo de vida do gnóstico, portanto não é possível saber quais seriam os seus dias santos e suas datas comemorativas. Podemos apenas conjeturar, a partir da sua cristologia docética, que a experiência da transfiguração de Jesus (Mateus 17: 1-13; Marcos 9: 2-13 e Lucas 9: 28-36), no monte Tabor, poderia ser um evento comemorado pelos gnósticos.
Aqueles que apreciam os dias santos, não por causa da santidade, mas em razão do feriado, poderiam estar se perguntando como ficariam os demais dias santos: o feriado do Natal, de Carnaval (originalmente uma festa religiosa às avessas), de Corpus Christi, de Nossa Senhora Aparecida, etc. Bem, se o caráter introspectivo do Evangelho de Tomé e de outros textos gnósticos se tornar uma doutrina predominante, poderíamos ter poucos ou nenhum feriado, pois os gnósticos poderiam não ser muito ligados às comemorações externas. Então, conseqüentemente, os oportunismos dos produtores de bacalhau e de carne branca para a Sexta Feira Santa, bem como os dos fabricantes de chocolates para os ovos de Páscoa, não existiriam. Certamente, a lenda do Coelhinho da Páscoa não seria inventada. Diferente também seria com a inexistência da comemoração do Natal, a festa mais entusiasmada dos cristãos. Também, a lenda do Papai Noel não existiria. A indústria e o comercio não teriam aquele monstruoso faturamento nos países, ou nas famílias, onde a festa natalina é acompanhada da doação de presentes.
Agora, será curioso observar que nas pautas de reivindicações por uma sociedade laica, pelo fim das religiões, pela retirada da religião da vida pública, pela não interferência da religião na política e na educação, pela remoção de símbolos sagrados dos recintos públicos, pelo fim das orações nas reuniões parlamentares, etc., a reivindicação pelo fim dos feriados nos dias santos, no entanto, não é incluída. Nos países onde a religiosidade da população está diminuindo, o interesse religioso caiu, mas os feriados em alguns dias santos continuam, porém sem muitas comemorações. Nos países de regime social rigoroso (China, Cuba e Coréia do Norte) não existem feriados religiosos, porém nestes casos foi uma imposição de cima para baixo. Bem, se for possível diminuir o interesse religioso da população, ou até mesmo extingui-lo, mas conservar os feriados nos dias santos, este poderá ser o resultado ideal que alguns aqui sonham.  


Bibliografia

CHALLITA, Mansour (tr.). O Alcorão. Rio de Janeiro: ACIGI, 2002.
EHRMAN, Bart D. Lost Scriptures: Books that did not make it into the New Testament. New York: Oxford University Press, 2003a.
_______________ Lost Christianities: The Battle for Scripture and the Faiths We Never Knew. New York/Oxford: Oxford University Press, 2003b. Versão brasileira: Evangelhos Perdidos: As Batalhas pela Escritura e os Cristianismos que Não Chegamos a Conhecer. Rio de Janeiro/São Paulo: Editora Record, 2008.
_______________ O Cristianismo de Ponta-Cabeça: a Visão Alternativa do Evangelho de Judas em O Evangelho de Judas do Códice Tchacos. Rodolphe Kasser, Marvin Meyer e Gregor Wurst (eds.). São Paulo: National Geographic/Prestígio Editorial, 2006, p. 77-120.
ELLIOTT, J. K. The Apocryphal New Testament: A Collection of Apocryphal Christian Literature in an English Translation. Oxford: Clarendon Press, 1993.
ISENBERG, Wesley W. O Evangelho de Felipe em A Biblioteca de Nag Hammadi, James M. Robinson (Ed.). São Paulo: Madras Editora, 2007, p. 126-43.
KING, Karen L. What is Gnosticism? Cambridge/London: The Belknap Press of Harvard University Press, 2005.
PEEL, Malcolm L. O Tratado da Ressurreição em A Biblioteca de Nag Hammadi. James M. Robinson (ed.). São Paulo: Madras Editora, 2007, p. 59-63. 
ROBINSON, James M. (ed.).  The Nag Hammadi Library in English. Leiden: E. J. Brill, 1988. Edição brasileira: A Biblioteca de Nag Hammadi. São Paulo: Madras Editora, 2007.
TRIPOLITIS, Antonía. Religions of the Hellenistic-Roman Age. Grand Rapids: W. B. Eerdmans, 2002.
WURST, Gregor, Rodolphe Kasser e Marvin Meyer (trs.). O Evangelho de Judas do Códice Tchacos. São Paulo: National Geographic/ Prestígio Editorial, 2006.



terça-feira, 3 de abril de 2012

|ESTUDO| A Historicidade dos Episódios da Crucificação e da Ressurreição: Um Breve Estudo Crítico-histórico

Por: Octavio da Cunha Botelho







Considerações iniciais

            Apesar de o assunto deste estudo ser considerado matéria de fé para muitos, com isso se pensar que o que existe disponível são apenas textos de pregação cristã, na realidade existe uma enorme quantidade de estudos e de discussões já publicada sobre o tema. A literatura é tão numerosa que até parece incontável, porém escrita, em sua grande maioria, por religiosos e teólogos. De modo que, ao conhecer esta imensidão literária, o pesquisador novato é levado a pensar que a historicidade dos episódios da vida de Jesus, mencionados no título deste estudo, está fundamentada em concretas e seguras provas materiais, bem como em abundante documentação imparcial e de autores de fora da tradição cristã. Também, os resultados das discussões são rigorosamente conclusivos. Nada disto, a realidade é o contrário. Ao se estudar estas publicações, o que mais se encontra são palavras e expressões tais como: pode ser, talvez, presume-se, quiçá, penso que, possivelmente, é verossímil que, fulano sugere, segundo a opinião de, é consenso que, etc. A razão para tantas incertezas é que este imenso edifício de discussões está construído sobre um frágil alicerce de escassez de provas materiais e de ausência de documentação imparcial, tal como será visto adiante. Daí que as conclusões dos estudos são resultados, na quase totalidade, do consenso dos pesquisadores. De maneira que, para os teólogos mais crédulos, o consensual é o verdadeiro, daí constroem suas reflexões com base em opiniões consensuais. Sendo assim, estas conclusões consensuais têm significado, importância e credibilidade apenas dentro do ambiente dos cristãos e dos teólogos, e não entre historiadores com os pés no chão, por não serem conclusões confirmáveis. Em suma, quando se lê estes estudos sobre o Novo Testamento, muito é produto apenas de consenso entre acadêmicos, pouco é proveniente de provas históricas e nada é extraído de documentos imparciais e contemporâneos aos eventos.

Consenso não é certeza

            Pela história sabemos que, por alguns poucos milênios, a idéia de que a Terra era o centro do universo vigorou até os tempos de Copérnico e de Galileu. Durante todo este tempo a teoria geocêntrica era consenso, de modo que falar da possibilidade da Terra girar em torno do Sol era um contra-senso. O consenso e a convicção eram tão consolidados que a Astrologia, que foi muito influente na Antiguidade e na Idade Média, surgiu e se desenvolveu a partir desta concepção, tanto para a formulação de teorias como para os cálculos astrológicos, de maneira que muitas pessoas acreditavam e seguiam as suas orientações. Um rigoroso cálculo, com base no preciso uso da matemática, era utilizado para os cálculos dos movimentos dos astros e das estrelas. Para ser astrólogo era necessário um profundo conhecimento de matemática. Em outras palavras, muitos cálculos matemáticos rigorosos para um conhecimento tão precário do céu. Um exemplo que nos faz lembrar o trabalho dos teólogos: muita discussão com rigorosa precisão de raciocínio filosófico sobre dados tão precários e incertos. No caso da Astrologia, foi assim até sofrer um forte golpe com a descoberta do fato de que era a Terra que girava em torno do Sol, a partir de então a Astrologia nunca mais teve a mesma credibilidade (Stuckrad, 2007: 259-94, sobretudo: 283s). Pois, o fenômeno heliocêntrico, a descoberta do movimento das estrelas e da Via Lacta, bem como a descoberta de um número infinito de estrelas além das integrantes nas doze constelações do zodíaco, através dos telescópios modernos, desmoronou o edifício teórico e prático da Astrologia, construído durante séculos sobre o alicerce do geocentrismo. Este é um exemplo, entre tantos outros, da força que a concepção, com base no consenso, exerce sobre as pessoas, nas condições pré-científicas, pois, consenso não é certeza. O máximo que o consenso pode nos assegurar é de que uma hipótese é mais aceita que outra. 

A dubiedade dos dados

            O que torna a historicidade dos relatos do Novo Testamento impossível de ser inteiramente confiável é a inexistência de relatos contemporâneos ao ministério e aos atos de Jesus e dos apóstolos por autores de fora da tradição cristã, ou seja, tudo que se tem, ou seja, restou, é de autoria confessional. O relato cronologicamente mais próximo que poderia confirmar a historicidade de Jesus e dos primeiros cristãos, independente de fontes tradicionais, é do historiador judeu Flávio Josefo (37-100 e.c.), o qual se refere ao pregador nazareno em sua obra Antiguidade dos Judeus (93 e.c.), numa passagem conhecida no mundo cristão como Testimonium Flavianum (o Testemunho de Flávio Josefo sobre Jesus): “Por volta desta época, um homem sábio, se na verdade é certo chamá-lo um homem. Pois ele foi o realizador de atos impressionantes e foi um mestre das pessoas que aceitam a verdade com prazer. Ele converteu muitos judeus e muitos gregos. Ele foi o messias. Pilatos, quando ouviu falar dele, acusado pelos líderes entre nós, condenou-o à cruz, mas aqueles que, desde o início o amavam, não pararam de amá-lo. Pois, no terceiro dia, ele apareceu a eles novamente, porque os divinos profetas tinham profetizado esta e outras coisas sobre ele. Até os dias de hoje, a tribo dos cristãos, denominada segundo ele, não desapareceu” (Ant. dos Judeus: 18.03.03; Van Voorst, 2000: 85).
Contudo, sabe-se através de pesquisas grafotécnicas e da crítica textual que este texto sofreu alterações nas mãos dos copistas cristãos do século III. Mais suspeitas ainda são as passagens de uma versão eslava da obra Guerra dos Judeus (2.9.2; 5.5.4; 5.5.2 e 6.5.4) de Josefo, sendo o conjunto destas passagens conhecido pelos cristãos como Testimonium Slavianum (o Testemunho Eslavo) - esta versão eslava só veio a ser traduzida e publicada no início do século XX – cujo conteúdo não coincide com a tradução do original grego da Guerra dos Judeus, em razão dos elogios a Jesus acrescidos no texto eslavo (ver: Van Voorst, 2000: 85s). Certamente, estes acréscimos são interpolações posteriores de copistas cristãos.  Alguns anos depois, o historiador romano Tácito (talvez 56-120 e.c.) informou que “Jesus tinha sido executado no reinado de Tibério pelo procurador Pilatos” (Van Voorst, 2000: 47). Porém, estas são referências muito vagas para nos capacitar a discernir o que é fato histórico e o que é ficção nos evangelhos canônicos ou nos apócrifos (para conhecer mais: Rivkin, 1986, 103-18).
            Esta dubiedade histórica não é diferente nos relatos da vida de outros visionários e fundadores de religiões. Quanto à vida de Maomé, a situação é semelhante. Os relatos existentes são todos de fontes islâmicas: alguns poucos trechos do Alcorão, mais um pouco de informações nos Hadiths (Ditos de Maomé) e as biografias mais próximas são de pelo menos cento e cinqüenta anos depois da sua morte: a Sirat Rasul Alla (A Vida do Mensageiro de Deus) de autoria de Ibn Ishaq, morto em 768 e.c. e o Kibat al-Tarikh wa al-Maghizi (O Livro da História e das Campanhas) de Al Waqidi (748-822 e.c.), desta última biografia restaram apenas fragmentos.  Embora sejam as biografias mais próximas da época de Maomé, estão recheadas de lendas (Robinson, 2003: 90). O mesmo acontece com os relatos da vida de Buda, que só conhecemos de fontes literárias do Budismo (o Nidanakatha, o Mahavastu, o Lalitavistara, o Buddhacharita e os contos Jatakas). O vestígio arqueológico mais próximo da época foi a descoberta, no século XIX, de um pilar com inscrições erguido em 250 a.e.c. (portanto, mais de 200 anos após a morte de Siddharta), pelo imperador Ashoka, no bosque de Lumbini em Kapilasvastu, Nepal, local atribuído ao nascimento de Buda. Nas “biografias” mencionadas acima não é possível também diferenciar o que é historia do que é lenda. As diferenças dos sermões de Buda nos textos páli do Budismo Hinayana para os sermões nos textos sânscritos do Budismo Mahayana são tão antagônicas quanto os contrastes entre as mensagens de Jesus nos evangelhos canônicos e os ensinamentos de Jesus no Pistis Sophia dos gnósticos cristãos. Parece que a manipulação textual era uma prática comum no passado, pois cada seita procurava colocar na boca de seu mestre a mensagem conforme a sua interpretação ideológica. O Pistis Sophia, por exemplo, é um diálogo de Jesus com seus discípulos onde a cosmologia gnóstica é colocada na boca do nazareno (Mead, 1921). O acréscimo de lendas é comum também nos relatos das vidas de Pitágoras, de Krishna, de Lao Tzu, de Confúcio, de Bodhidharma, de Apolônio de Tyana, de Padmasambhava (introdutor do Budismo no Tibete), etc.

A projeção de admiração nos relatos

            Os autores de textos religiosos não são historiadores. Antes de qualquer coisa são admiradores e adeptos que, ao comporem seus relatos, projetam para os seus escritos o significado que a mensagem de um santo ou de um mestre religioso representa para ele, bem como a sua admiração. Por estas razões, os relatos das vidas e das mensagens dos santos e dos mestres mencionados acima estão repletos de fantasias e de embelezamentos, de maneira que não é possível, na maioria das vezes, discernirmos o que é fato e o que é ficção, bem como o que é mensagem original e o que é interpretação do adepto nos escritos religiosos. Esta prática é comum nos textos de todas as grandes religiões tradicionais, sobretudo nas mais antigas. E não é diferente no Novo Testamento. Por exemplo, os evangelhos canônicos foram compostos algumas décadas após a morte de Jesus e não se sabe quem foram os autores, por isso as denominações, Evangelho Segundo Mateus, Evangelho Segundo Marcos, etc. Reproduzo em seguida um curto trecho da obra de Bart D. Ehrman, onde ele aponta as possíveis datas destas composições, no qual aproveito para assinalar em itálico as palavras de incerteza e de imprecisão que tanto permeiam estes estudos, tal como mencionado acima. “Muitos estudiosos acham que Marcos é nosso relato remanescente mais antigo sobre a vida de Jesus, escrito em algum momento entre 65 e 70 d. C.; que Mateus e Lucas foram produzidos dez ou quinze anos mais tarde, possivelmente 80-85 d.C.; e que João foi o último dos relatos canônicos, escrito próximo do fim do primeiro século, por volta de 90 ou 95 d.C.” (Ehrman, 2008, 43; também Perkins, 2007: 241).  Ademais, os manuscritos autógrafos (escritos pelo próprio autor) não existem mais. Os manuscritos mais antigos que sobreviveram destes textos são cópias dos séculos II d.C. (Ehrman, 2006: 98-101). De maneira que é impossível saber o que foi alterado nos relatos desde o período da morte de Jesus até as primeiras composições escritas, bem como depois destas até a época dos mais antigos manuscritos sobreviventes do século II e.c. Assim sendo, o trabalho da Crítica Textual do Novo Testamento só pode começar a partir do estudo destes manuscritos e dos subseqüentes (Ehrman, 2006: passim; para mais aprofundamento: Metzger, 1992: 36s).

A historicidade dos episódios da crucificação e da ressurreição

            Não é possível tratar deste assunto sem antes falar da discussão sobre a historicidade de Jesus. A pergunta “Jesus realmente existiu?” preocupou a mente de muitos céticos por séculos. Esta preocupação levou a criação de um programa de pesquisa que ficou conhecido como “Busca pelo Jesus Histórico”, o qual se divide em três vertentes. Van Voorst resume assim: “Numa extremidade do espectro acadêmico, alguns têm concluído que os evangelhos canônicos são relatos históricos plenamente confiáveis de Jesus com pouca ou nenhuma alteração posterior, assim nós podemos conhecer muito sobre ele (Jesus). Aqueles que negam a historicidade de Jesus raramente se referem à obra dos tradicionalistas, exceto para rotulá-la de credulidade. No meio estão os acadêmicos que percebem os evangelhos como uma mistura de material histórico autêntico e de interpretação teológica de Jesus, tal como se desenvolveu entre sua época e aquela dos evangelistas. Estes acadêmicos, a vasta maioria dos pesquisadores, se esforçam para compreender a interação destes dois elementos, e eles distinguem “o Jesus histórico” com alguma segurança...” (Van Voorst, 2000: 07).  A posição predominante na atualidade é esta terceira vertente, ou seja, aquela que acredita que os evangelhos, bem como os outros textos do Novo Testamento (Atos, Epístolas e Apocalipses) são uma combinação de relatos históricos com ficções e interpretações teológicas acerca de Jesus, criadas pelos primeiros compositores dos textos. De modo que, a grande tarefa dos pesquisadores agora é identificar o que é fato histórico e o que é ficção no Novo Testamento.
            Apesar de não se ter uma prova absolutamente concreta acerca da vida de Jesus, o estudo minucioso dos primeiros documentos cristãos, quer canônicos ou apócrifos, leva a concluir que é mais provável que ele tenha existido do que não tenha existido.  Ou seja, é muito difícil que os compositores dos primeiros textos e, sobretudo, os autores das epístolas apostólicas, as quais são os primeiros escritos cristãos – “a primeira carta de Paulo aos Tessalonicenses é datada de 49 e.c., portanto, cerca de vinte anos após a morte de Jesus e vinte anos antes dos relatos evangélicos” (Ehrman, 2006: 32; também Dunn, 2007: 276-7) - tenham inventado tudo sobre a existência de Jesus. Enfim, as primeiras epístolas apostólicas são os documentos mais confirmatórios da historicidade de Jesus. Entretanto, existe uma enorme diferença em admitir a existência de Jesus e aceitar que todos os relatos dos textos canônicos ou apócrifos são relatos históricos. Agora, é disto que iremos tratar daqui para frente.

A crucificação e a ressurreição nos evangelhos canônicos e apócrifos

            As fontes mais extensas e informativas sobre os eventos do julgamento, da paixão, da crucificação, do sepultamento e da ressurreição, disponíveis até o presente momento conforme as descobertas, são os quatro evangelhos canônicos: Mateus 26:57 a 28:15; Marcos 14:53 a 16:18; Lucas 22:66 a 24:12 e João 17:13 a 20:18, e dois evangelhos apócrifos: o Evangelho de Pedro (texto grego: Swete, 1892; traduções: Platt Jr., 1926: 282-86; Elliott, 1993: 150-8 e Ehrman, 2003: 31-4) e o Evangelho de Nicodemus, também conhecido como Atos de Pilatos, (traduções: Platt Jr. 1926: 64-91 e Elliott, 1993: 164-8). Na coleção de textos gnósticos encontrados em Nag Hammadi, existe um “O Tratado da Ressurreição” (Peel, 2007: 59-63), cuja concepção de ressurreição é diferente daquela dos evangelhos canônicos. Existem outros relatos destes eventos em pequenos fragmentos de manuscritos. O Evangelho de Pedro, encontrado na sepultura de um monge em 1886 no Egito, também é um fragmento, pois o manuscrito estava sem o início e o fim do texto, porém extenso o bastante para ser maior que o relato destes episódios no Evangelho de Marcos. Dentre estes seis evangelhos, o de Pedro é o que mais diverge dos outros. Destas divergências, uma deve ter sido a principal razão para este evangelho não ser reconhecido como canônico pelos seguidores da igreja, que estava começando a se consolidar como dominante, por transmitir uma cristologia docética, uma interpretação rival na época. Trata-se da frase dita por Jesus na cruz: “Meus Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Mateus 27:46 e Marcos 15:34), no Evangelho de Pedro esta frase aparece como: “Minha força, minha força, por que me abandonaste?” (v. 19 – Platt Jr., 1926: 284; Elliott, 1993: 155 e Ehrman, 2003: 33). Alguns evangelhos apócrifos, principalmente os gnóstico, relatam os atos de Jesus, mas não incluem os episódios acima mencionados, por exemplo, o Evangelho de Judas termina com a entrega de Jesus às autoridades judias após a traição de Judas (Wurst, 2006: 45).
            Até o século XVIII, o número de textos apócrifos do Novo Testamento conhecidos era muito pequeno, de modo que não se dava muita importância para o seu estudo. À medida que aumentaram as descobertas de mais textos, sobretudo após a descoberta da extensa coleção de textos gnósticos em Nag Hammadi no Egito, em 1945, o interesse pelo estudo destes textos outrora perdidos aumentou. O número de manuscritos já descobertos é tamanho, que hoje se tem mais Evangelhos, Atos, Epístolas e Apocalipses apócrifos do que canônicos do Novo Testamento. A coleção apócrifa do Novo Testamento mais completa é a de J. K. Elliot (1993), dentre as publicadas com critério filológico e prévio exame de Alta Crítica e de Crítica Textual. Diante disto, tornou-se uma imprudência entre os pesquisadores mais ponderados, a partir de certo momento, a desconsideração destes textos no estudo da história dos primeiros anos do Cristianismo.

A crucificação

            Tal como no caso da historicidade da vida de Jesus em geral, os eventos do julgamento, da paixão, da crucificação e do sepultamento seguem o mesmo traço, ou seja, a trama nuclear que permeia o relato dos evangelhos deve ser verídica, porém, os relatos individuais foram acrescidos de ficções, de embelezamentos e de dramatizações pelos compositores, para aumentar o impacto emotivo da narrativa. Quando se compara a grande quantidade de argumentos pró e contra a historicidade da crucificação, parece que os argumentos pró são mais convincentes, quando despimos os relatos de seus acréscimos fantasiosos e seguimos apenas o núcleo narrativo comum em todos os seis evangelhos (canônicos e apócrifos), bem como um compositor copiou os trechos da narrativa de outro, fazendo com que os evangelhos tenham trechos em comum e trechos diferentes. O Seminário de Jesus, um grupo de pesquisadores bíblicos (atualmente com cerca de 200 membros) que, através de votação, julga a historicidade dos ditos e dos atos de Jesus, reconhece que Jesus foi crucificado pelos romanos. Em suma, mesmo sem documentos que proporcionem certeza absoluta, o mais provável é que os relatos destes episódios sejam uma montagem de inúmeras peças fictícias de narrativa sobre uma história talvez verídica.

A ressurreição

            Ao contrário do episódio da crucificação, a ressurreição parece mais ser um produto de ficção inventada pelos primeiros cristãos, para atender objetivos teológicos. Se o episódio da ressurreição não tivesse sido acrescido à vida de Jesus, com sua morte na cruz, ele seria visto apenas como mais um profeta fracassado, juntamente com os tantos outros que o precederam. Então, a invenção da ressurreição foi necessária para fazer de Jesus um messias, através de um fenômeno excepcional. O Seminário de Jesus reconhece que o evento da tumba vazia é uma ficção, também, Jesus não ressuscitou dos mortos e a crença na ressurreição é baseada em experiências visionárias de Paulo, de Pedro e de Maria Madalena.
Com a morte de Jesus na cruz, dois seguimentos tentaram compensar este fracasso, o primeiro inventou o episódio da ressurreição, para atribuir um caráter extraordinário à vida de Jesus e fazer da ressurreição o centro da sua fé e doutrina. Este foi o seguimento que, com o tempo, se transformou na corrente ortodoxa que triunfaria no concílio de Nicéia, em 325 e.c. Este é o Cristianismo predominante até hoje. O outro seguimento foi o dos gnósticos, que deram pouca ou nenhuma importância à ressurreição, alguns de seus evangelhos até a omitem, então para compensar o fracasso da morte de Jesus, os gnósticos colocaram em sua boca uma sabedoria esotérica e fantástica, reproduzida em seus textos que foram considerados, pela então igreja dominante, como hereges. Para os gnósticos, Jesus era mais um sábio e um mestre do que um salvador, por isso sua ênfase na gnose (conhecimento). É curioso especular que, se os gnósticos tivessem triunfado no concílio de Nicéia e nos seguintes, e se consolidado como a corrente predominante, muito provavelmente não haveria as comemorações da Semana Santa, uma vez que atribuíam pouca importância aos episódios da paixão, da crucificação, do sepultamento e da ressurreição. Enfim, a tradição da Semana Santa é o resultado da vitória de uma corrente ideológica, que triunfou no concílio de Nicéia e nos concílios ecumênicos seguintes, a qual pregava a suma importância para os eventos da paixão, da crucificação e da ressurreição, alguns provavelmente fictícios, em oposição às outras correntes que não valorizavam tanto estes eventos, corrente vitoriosa esta que fez do significado da ressurreição o centro da sua fé. Poderia ser muito diferente se outra corrente tivesse se tornado dominante (para conhecer a história da batalha pela hegemonia teológica entre as primeiras correntes cristãs, veja: Ehrman, 2008). 

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