Octavio da Cunha
Botelho
(Obs: este estudo está disponível em versão mais atualizada em:
http://observadorcriticodasreligioes.wordpress.com/2014/01/07/o-jejum-do-ramada-e-seus-efeitos-colaterais/)
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Iniciado a partir do dia 20 de Julho, o
mês do Ramadã é o período mais sagrado para os muçulmanos, quando é praticado o
jejum (sawm) durante o período diurno
nos 29 ou 30 dias do mês, com isso as refeições são consumidas durante a noite.
A sacralidade reside no fato de ser neste mês que Maomé recebeu a primeira
revelação do anjo Gabriel, numa noite denominada pelos muçulmanos de Noite do
Destino (al-Qadr).
O breve estudo abaixo pretende, num
primeiro momento, informar resumidamente o que é o Ramadã, com sua celebração
principal, o jejum; bem como sua origem, sua menção nos textos sagrados, suas
interpretações controversas e suas transformações desde o objetivo original;
para em seguida relatar alguns resultados de pesquisas que apontam os efeitos
prejudiciais, tanto fisiológicos como psicológicos, deste jejum nos praticantes.
Os
cinco pilares do Islamismo
A identidade mulçumana é reconhecida
pela prática dos cinco princípios estabelecidos pela tradição islâmica: a
profissão de fé ou testemunho (shahadah),
a oração (salat), a doação (zalat), o jejum (sawm) e a peregrinação (hajj).
O Alcorão menciona estes cinco princípios do Islã em passagens dispersas, mas
nunca a menção dos cinco coletivamente como um mandamento numa só passagem. Portanto,
a fonte canônica para a homologação destes princípios se encontra nos Hadiths (ditos de Maomé), os textos
islâmicos de maior autoridade após o Alcorão, sobretudo numa passagem do Hadith de Muslim, Sahih 1.06.20: “É
narrado, na autoridade de Abdulah Ibn
Omar, que o Mensageiro de Deus (Maomé), que a paz esteja com ele, disse: a
superestrutura do Islã está erguida em cinco pilares: o testemunho que não há
nenhum deus além de Deus, que Maomé é seu servo e mensageiro, e o
estabelecimento da oração, do pagamento da taxa de doação, da peregrinação a
Casa (de Deus em Meca) e o jejum do mês do Ramadã (Muslim, Sahih 1.06.20 –
Peters, 1994: 152).
A grande mesquita de Meca |
1)-
A Profissão de Fé ou Testemunho (Shahadah):
É o pré-requisito para o ingresso na religião islâmica, quando o novato faz a
declaração formal de sua fé que Alá é o único deus: “Declaro que não há outro
deus além de Alá, e que Maomé é o mensageiro de Deus”. O novato é admitido a
partir do momento que faz esta declaração na presença do imã (líder islâmico) e
de outras testemunhas.
2)-
A Oração (Salat): Existem as orações
obrigatórias e as complementares, bem como as individuais (no lar) e as
coletivas (na mesquita). As imprescindíveis são as cinco orações diárias: do
amanhecer, do meio dia, da tarde, do anoitecer e da noite. Também, muito
importante é a oração coletiva das Sextas Feiras, ao meio dia, na mesquita. Com
a expansão do Islamismo para outras regiões distantes, surgiu a dúvida se o
horário a ser seguido deveria ser o horário local ou o horário de Meca, devido
às diferenças no fuso horário, predominou a interpretação da prática no horário
local. A exigência é de que as orações sejam realizadas com o orador voltado
para Meca, mas existem exceções entre alguns grupos mulçumanos espalhados pelo
mundo (Rippin, 1997: 130-1).
3)-
A Doação (Zakat): É uma parte da
riqueza do mulçumano que é doada para os necessitados, difere da caridade que é
espontânea. Uma Zakat (doação) especial
é a Fitra, que é oferecida pelo
mulçumano no fim do mês sagrado do Ramadã.
4)-
O Jejum (Sawm): O mais importante é o
jejum do mês do Ramadã, quando é proibido comer, beber, fumar ou ter relação
sexual, no período do dia, durante um mês. Nos casos de impossibilidades,
existem opções alternativas para aqueles impossibilitados de praticá-lo. Outro
jejum de menor importância, mas ainda praticado por algumas comunidades
mulçumanas, é o jejum Ashura, o qual
antecedeu ao jejum do Ramadã, para depois ser substituído por este último ainda
nos tempos de Maomé (Robinson, 2003: 121-2).
5)-
A Peregrinação (Hajj): O muçulmano
deve realizar pelo menos uma peregrinação a Meca na vida. Chegando lá, o fiel
deve efetuar sete voltas ao redor da Caaba
(Pedra Negra), no interior da Grande Mesquita. Em seguida bebe água do poço de Zenzem, para então dirigir-se ao monte Arafat (Ali, 1944: 16-30, 119-87,
208-21, 222-31 e 332-51; Rippin, 1997: 127-41; Chittick, 1994: 8-20; Peters,
1994: 150-2 e passim e Robinson,
2003: 96-116).
Ramadã, o mês sagrado
Muçulmanos orando durante o Ramadã |
Os muçulmanos seguem o calendário lunar,
cuja diferença com o nosso calendário solar faz com que a cada ano o mês do
Ramadã se antecipe aproximadamente onze dias. Assim, em 1998 o Ramadã começou
em 20 de Dezembro, em 1999, em 09 de Dezembro, em 2000, no dia 28 de Novembro
(Robinson, 2003: 119) e continuou se antecipando até que, no ano de 2012,
iniciou recentemente no dia 20 de Julho. O mês do Ramadã começa quando a nova
lua crescente faz sua primeira aparição no céu, daí então, o amanhecer do dia
seguinte é o primeiro dia do mês do Ramadã. Porém, este critério é problema na
época de noites nubladas, quando não é possível avistar a lua. Nestes últimos
casos, o critério é o cálculo (Chittick, 1994: 17). O horário preciso de
iniciar o jejum é problema também para os muçulmanos que vivem nas regiões
polares. O momento exato na manhã para o início do jejum do Ramadã é
determinado curiosamente assim no Alcorão: “... E comei e bebei até que comecei
a distinguir, na aurora, a linha branda da linha preta. Depois, jejuai até a
noite...” (sura 2, aya 187 – Challita, 2002: 16). O jejum
acontece apenas durante o dia, sendo assim, termina no crepúsculo de cada dia. No
período da noite é permitido comer e beber. Apesar da prescrição da moderação,
levantamentos constataram um assustador aumento do consumo de alimentos no
período noturno: “Em alguns países mulçumanos, contudo, não é agora incomum bem
mais carnes e verduras serem consumidas no Ramadã, que em todos os outros meses
juntos. Existe assim uma grande e séria distância entre o ideal e a realidade”
(Robinson, 2003: 126). Em outras palavras, o que alguns jejuadores abstêm
durante o dia é extravasado durante a noite, de modo que, a rigor, o jejum não
tem efeito religioso, o que acontece na prática é apenas a inversão no turno
das refeições.
Agora, o intrigante na primeira revelação
corânica é o fato de Maomé ser analfabeto, mas, milagrosamente, conseguir ler o
texto apresentado a ele durante uma visão, já que, segundo os registros
preservados nos Hadiths (ditos e atos
de Maomé) e nas biografias, Maomé era iletrado. Segundo o relato de uma de suas
biografias, esta primeira revelação aconteceu quando ele estava dormindo numa
caverna no monte Hira, quando lhe
surgiu, numa visão, o anjo Gabriel com uma colcha de brocado, na qual havia
algum escrito e disse: recite, no que Maomé perguntou: o que eu devo recitar?
Ele não conseguia ler o que estava escrito, pois era analfabeto. Pela sua
pergunta “o que devo recitar?”, percebe-se que o seu analfabetismo era tão
completo que nem sequer foi capaz de identificar que o que estava sobre a
colcha era um texto. O anjo insistiu por mais três vezes e Maomé deu as mesmas
respostas indagando o que deveria recitar, até que ele finalmente leu o texto e
depois acordou do sono conseguindo conservar na memória tudo que estava escrito
no texto daquela colcha (Williams, 1961: 61 e Peters, 1993: 51). Este evento é
para os crentes mulçumanos um exemplo do poder do que deus é capaz, já para os
céticos, mais uma lenda inventada pela imaginação humana. A primeira revelação
nesta Noite do Destino está registrada nos cinco primeiros versos (ayas) da sura 96, denominada Alaq
(Coágulo), no Alcorão: “Leia (iqraa)
em nome de teu Senhor, que criou, criou o homem de um coágulo. Leia (iqraa). E teu Senhor é o mais generoso,
que ensinou (o uso da) pena...” (Ali, 1934: 1761 e Palmer, 1994, vol. 09: 336).
Outros tradutores traduziram a palavra iqraa
como ‘recita’ (Arberry, 1955: 344, Peters, 1994: 51 e Challita, 2002: 347). Esta
diferença na tradução pode ser explicada pelo fato que na Antiguidade era comum
a leitura em voz alta, uma vez que a maioria da população era analfabeta, então
quem sabia ler, lia, quando solicitado, de maneira para os outros ouvirem.
Logo, ler poderia ser sinônimo de recitar. Agora, a menção da criação do homem
a partir de um coágulo, mencionada logo acima, é exegeticamente desafiadora, e
para a mentalidade científica, até cômica.
Preparação da comida para a refeição noturna no Ramadã |
Com o tempo, sobretudo mais
recentemente, as celebrações do Ramadã se transformaram na mais importante
comemoração e na grande manifestação da unidade do Islamismo, o mês quando os
muçulmanos tornam-se conscientes de seu passado e afirmam seus laços com os
seus ancestrais. Dentre as comemorações, a mais importante no mês do Ramadã é o
jejum (sawm), o quarto pilar da fé
mulçumana, na qual é proibido comer, beber, fumar e ter relação sexual durante
o período do dia. Orações (salat) e
doações (zakat) também são efetuadas
em casa e nas mesquitas, bem como recitações do Alcorão são feitas à noite,
costuma-se dividir o texto em trinta partes, sendo que cada uma é lida numa
noite até que a leitura completa termine na trigésima, ou seja, na última noite
do Ramadã. Estações de TV e de radio transmitem ao vivo estas recitações
durante todo o mês. A prática do jejum já era conhecida por Maomé e seus
companheiros, pelo que é possível extrair da sua biografia e da seguinte
passagem do Alcorão: “Ó vós que credes, foi-vos prescrito o jejum, como foi aos
que vos precederam...” (sura 2, aya 183 – Ali, 1934: 72; Palmer, 1994,
vol. 06: 25 e Challita, 2002: 16). Maomé conviveu com judeus e com cristãos, os
quais já praticavam o jejum. A primeira prática de jejum estabelecida por Maomé
para os seus seguidores foi no Ashura,
o Dia do Perdão dos Judeus, depois com o rompimento com os judeus, ele
transferiu o jejum para o mês do Ramadã e o jejum do Ashura se tornou opcional (Robinson, 2003: 121).
O propósito do jejum do Ramadã é
proporcionar ao jejuador a experiência de privação, de modo que ele ou ela
sinta o sofrimento do necessitado. Daí o hábito de, no fim do jejum, doar
alimento a um carente. Assim, para o praticante, o mês do Ramadã é o da
solidariedade e do auxílio mútuo. Quando praticado seriamente, representa uma
experiência válida e socialmente útil, pois poderá ser uma maneira de inibir o
egoísmo e de diminuir a indiferença com os necessitados. No entanto, sua
prática se tornou um problema para a complexa e dinâmica vida contemporânea,
sobretudo nas metrópoles, onde o ritmo de vida é mais acelerado e muitos
serviços públicos não podem ser paralisados. Pois, durante o Ramadã, em algumas
cidades o comércio reduz o horário de funcionamento, ou até mesmo não abre durante
o dia, muitos profissionais não trabalham e assim por diante. O problema é
ainda maior para mulçumanos que residem em cidades de países onde o Islamismo
não é a religião majoritária, visto que é difícil praticar o jejum, com as
atividades complementares, orações, visita à mesquita, etc., num ambiente
socialmente estranho e com uma rotina desfavorável. No caso de pessoas
impossibilitadas de praticarem o jejum durante o Ramadã, são prescritas tarefas
alternativas tais como caridade, assistência social, etc. Os desobrigados são:
as crianças, os enfermos, os viajantes, as gestantes, as mulheres em período de
amamentação ou de menstruação, bem como os profissionais de atendimentos
imprescindíveis e urgentes: médicos, enfermeiras, bombeiros, policiais, etc.
Família muçulmana durante refeição |
No entanto, em linhas gerais, a
prática do jejum do Ramadã tem perdido muito do seu objetivo original, Andrew
Rippin observa este processo de decadência: “Muçulmanos contemporâneos que
participam do jejum, contudo, exibem sutis mudanças na interpretação de suas
ações. Enquanto que no passado um sentido de valor penitente de jejuar estava
certamente presente, isto tem sido menosprezado nas interpretações das décadas
recentes. O jejum é praticado porque ele foi ordenado por deus, não por
qualquer benefício individual que possa acontecer ao indivíduo em termos de seu
destino na vida após a morte. Benefício moral no aqui e agora, contudo, é
enfatizado. O jejum é um meio de nivelamento social e de reforçar noções de
responsabilidade social. (...) Ainda mais, há um total sentido de unidade muçulmana
celebrada durante o jejum, especialmente, nos aspectos festivos da vida noturna
durante o mês” (Rippin, 1997: 132-3).
De modo que, comparativamente, o
jejum islâmico do Ramadã contrasta flagrantemente em motivo e em objetivo com
outras tradições ascéticas que praticam o jejum, tal como as asceses ióguica e
budista. Nestas últimas, o jejum é praticado com o fim de controlar a gula, de
desapegar a mente, de desenvolver a capacidade de autocontrole e, sobretudo, de
preparar o corpo e a mente para a prática da meditação prolongada (quem pratica
meditação sabe que o jejum e a alimentação moderada auxiliam no desempenho
meditativo, enquanto que o funcionamento digestivo perturba o relaxamento e a
concentração, de modo que nunca se pratica meditação após uma refeição). Portanto,
é uma prática com objetivos físico-psicológicos de preparação para uma tarefa
ainda maior, a meditação, isto é, interna; enquanto que o jejum do Ramadã é uma
prática externa e formal, a fim de atender aos mandamentos de submissão e de
obediência, cercada de pompa e exibicionismo religioso.
Os efeitos colaterais
Existem publicações que apontam os
efeitos fisiológicos e psicológicos do jejum do Ramadã nos praticantes. Um
resumo de pesquisas foi publicado no Journal of Social Bahavior and
Personality, em 2004, por Masahiro Tida e Kanehisa Morimoto, com o título de Ramadan Fasting: Effect on Healthy Muslims
(O Jejum do Ramadã: Efeito Sobre os Mulçumanos Saudáveis). O estudo começa
observando que a mudança dramática nos hábitos alimentares causa efeitos fisiológicos
e psicológicos (Morimoto, 2004: 13). Algumas pesquisas apontam para uma perda
de peso, desidratação; diminuição da gordura corporal, do batimento cardíaco,
do consumo de oxigênio e do metabolismo, enquanto outras pesquisas não apontam
a perda de peso. As diferenças podem ser atribuídas ao costume local e a
qualidade da comida.
Os principais efeitos fisiológicos do
jejum são: hemoconcentração (diminuição do conteúdo líquido que resulta no
aumento de células vermelhas no sangue) e desidratação. A diminuição no consumo
de líquidos é a causa destas condições de desequilíbrio líquido. No estágio
inicial da desidratação, os sinais clínicos são: taquicardia, cansaço e
indisposição, dores de cabeça e náusea (Morimoto, 2004: 13). O aumento de ácido
úrico no sangue é também notável, porque a hiperuricemia (alta presença de
ácido úrico no sangue) é uma das conhecidas sequelas do jejum prolongado. Ademais,
resultados indicam que há um impressionante aumento no risco de aterosclerose
(formação de placas no interior de artérias e veias), em virtude do aumento do
colesterol que favorece esta doença, pelo consumo de alimentos durante uma
única e longa refeição noturna (Morimoto, 2004: 13).
Efeitos psicológicos
Alguns estudos têm mostrado os
seguintes sintomas durante o período do dia: falta de concentração, cansaço,
irritabilidade, sonolência e outros sintomas indesejáveis, que podem ter
efeitos negativos na vida profissional e escolar dos indivíduos. Um aumento nos
acidentes de trânsito tem sido registrado. Estes efeitos podem acontecer em
razão da diminuição das horas de sono durante o Ramadã e a hipoglicemia
(diminuição da glicose no sangue) causada pelo jejum. Também, fumantes ficam
mais irritados devido à abstinência do hábito de fumar. Geralmente, os homens
tendem a ficar mais irritados que as mulheres durante o Ramadã. Estes efeitos
pioram ainda mais quando o mês do Ramadã cai na estação do verão, época na qual
os dias são mais longos e a temperatura mais quente (Morimoto, 2004: 13).
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