sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

|RELIGIÃO & CINEMA| Flores do Oriente: Quando os Laicos São Heróis Solidários

por Octavio da Cunha Botelho

O ator Christian Bale vive o papel de um coveiro que finge ser um padre
 para ajudar um grupo de adolescentes de um convento em
Flores do Oriente (The Flowers of War, 2011), do diretor Zhang Yimou
            Este período do ano, em virtude da diminuição das ocupações profissionais, é favorável para assistir aqueles filmes que não puderam ser assistidos durante o ano. Então, na minha lista de pendências estava a obra Flores do Oriente (The Flowers of War, 2011), do talentoso cineasta chinês Zhang Yimou, autor dos consagrados Lanternas Vermelhas, Herói e Clã das Adagas Voadoras, quem considero ser um dos melhores diretores de filmes de arte da atualidade. O filme é baseado no livro 13 Flowers of Nanking (As 13 Flores de Nanquim) do autor Geling Yan, história passada durante a guerra Sino-japonesa, mais especificadamente, em um episódio historicamente conhecido como O Massacre de Nanquim, em 1937.
            Embora esta seja a produção de Zhang Yimou que mais se aproxima ao estilo hollywoodiano, os admiradores do seu trabalho não devem deixar de assisti-la. Com um orçamento abastado de US$ 94 milhões, o maior da história do cinema chinês, o resultado nas bilheterias foi lucrativo, uma vez que apenas no território chinês rendeu US$ 95 milhões. O filme estreou na China apenas poucos dias após o 74º aniversário do Massacre de Nanquim e nos primeiros quatro dias de exibição já tinha alcançado US$ 24 milhões em bilheteria.
            Tal como será visto abaixo, esta é uma história nem tão agradável para o público cristão, pois mesmo acontecendo no interior de um convento católico, os heróis não são personagens cristãos. Diferente do que o espectador cristão espera, são as adolescentes religiosas que são ajudadas e salvas por descrentes mundanos e irreverentes à religião no final do filme, após uma reviravolta no relacionamento entre eles. Daí a explicação para a grande arrecadação de bilheteria nos cinemas da China e uma bem menor arrecadação nos cinemas do Ocidente.
Estrelado pelo ator Christian Bale, que vive o papel do coveiro John Miller, um beberrão esperto e bon-vivant, encarregado de providenciar o sepultamento do padre Engelmann, antes de falecer ele era o líder de um convento de adolescentes na cidade de Nanquim, na China. Em meio a um intenso tiroteio entre as tropas japonesas e chinesas, com muita dificuldade, Miller consegue chegar até o seu destino para executar sua tarefa. Ao chegar lá, ele percebe a segurança do local, em virtude da neutralidade da Igreja Católica e dos ocidentais no conflito sino-japonês, então decide estender sua permanência. Sua decisão de partir é adiada ainda mais quando um grupo de prostitutas, em fuga de um bordel por conta da onda de violência e de estupros praticada pelos soldados japoneses, consegue pular o portão do convento e se refugiar no seu interior. Em vista do contraste no estilo de vida, elas logo entram em desentendimento com as adolescentes do convento, estas últimas não permitem que as prostitutas sequer utilizem o banheiro, dando início a um relacionamento hostil. Então, as prostitutas se escondem no porão. 
Um grupo de prostitutas se refugia em um convento a fim de fugir da
violência dos soldados japoneses, a diferença no estilo de vida
resulta imediatamente em conflitos com as internas.
           Comovido pelas situações das adolescentes e das prostitutas, o coveiro John Miller (Christian Bale) decide ajudar. Então, aproveitando-se da imunidade da igreja e o fato de ser um ocidental neutro no conflito, disfarça-se de padre, tornando-se o Father John, a fim de proteger ambos os grupos. O hostil relacionamento entre as adolescentes e as prostitutas começa a mudar quando um grupo de soldados japoneses consegue entrar no convento, então violenta e estupra algumas adolescentes, chegando a matar uma delas, o qual é ainda mais alterado com a tentativa de suicídio de algumas adolescentes em seguida. A partir de então, um novo relacionamento de afeto e de piedade entre o falso padre John, as prostitutas e as adolescente começa a se desenvolver, cuja culminação é um piedoso ato de solidariedade das prostitutas para ajudar as adolescentes temerosas de serem violentadas e estupradas pelos soldados japoneses. O final do filme é comovente e transmite uma interessante lição de humanismo e de solidariedade, sem invocar ideias e práticas cristãs.
            Agora, o leitor poderá estar perguntando em que este filme interessará ao cético e ao ateu para merecer um comentário em um espaço sobre crítica religiosa. Bem, o interessante desta história é que, embora aconteça em um ambiente cristão, ou seja, um convento, os heróis da solidariedade na história não são pessoas religiosas, senão um coveiro esperto e bon-vivant, que finge ser um padre para ajudar outras pessoas, e um grupo de prostitutas vaidosas que passa a se preocupar com o futuro das adolescentes, a fim de que as mesmas não tenham o mesmo destino abominável que cada uma teve, ou seja, de serem estuprada ainda na adolescência e daí serem levadas ao caminho da prostituição. Em suma, a lição que o filme deixa é a de que não é preciso ser religioso para sentir piedade e se entregar ao sacrifício pelo próximo em um ato de solidariedade, pois a experiência mundana é suficiente para levar alguém à sensatez de perceber a necessidade da piedade e da solidariedade em circunstâncias dolorosas. Em nenhum momento do filme alguém foi levado à sensatez de se ajudarem, em meio a uma angustiante guerra, em função de crenças cristãs ou de fé, ao contrário, o coveiro espertalhão usou da sua esperteza e as prostitutas das suas experiências de vida e da coragem, para auxiliarem o grupo cristão de adolescentes inocentes e ingênuas. Deus e a religião não são invocados nos momentos mais angustiantes de apuro e de sofrimento, mesmo estando todos eles no interior de um convento com uma enorme catedral, rodeados por uma violenta e aterrorizante guerra, diferentemente, tudo é resolvido a partir da sensibilização e da sensatez. A mensagem laica que o filme deixa é a de que deus e a religião são desnecessários até mesmo nos momentos de maior angustia no meio de uma guerra, ninguém rezou ou pediu a ajuda de deus, nem mesmo as adolescentes religiosas.
O ator Christian Bale ao lado do diretor Zhang Yimou
Em outras palavras, não é preciso ser cristão, acreditar em deus, ser batizado, ter recebido a primeira comunhão, frequentar igreja ou acreditar em um livro religioso para ser levado à pratica da piedade e da solidariedade; basta, ao contrário, apenas entender que elas são resultados da sensatez que qualquer laico pode descobrir quando percebe que a família, a sociedade, a humanidade ou mesmo qualquer grupo, sobretudo, em circunstâncias de dificuldade e de apuro, sobrevivem com mais paz e com mais justiça quando a solidariedade é praticada.  Enfim, a solidariedade não é uma virtude religiosa que fará o praticante ganhar o céu ou a benção de deus, mas sim uma solução sensata para a sobrevivência humana.  

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

|FATO QUE MERECE NOTA| Papa Francisco, a Personalidade do Ano (para o bem ou para o mal)

Octavio da Cunha Botelho

O papa Francisco escolhido como a
Personalidade do Ano, pelo critério de
escolha da revista, até Osama Bin Laden
mereceria a homenagem.
Ontem foi divulgada a notícia da escolha do papa Francisco como a Personalidade do Ano pela revista Time. Esta homenagem é concedida desde o ano de 1927 por esta prestigiada publicação norte americana. A justificativa para esta escolha foi que ele “mudou o tom, a percepção e o foco de uma das maiores instituições do mundo de forma extraordinária”, disse a revista.
Bem, para uma ideia do tanto que as escolhas dos candidatos para esta homenagem são polêmicas, veja em seguida quem foram os seus concorrentes. O segundo lugar ficou com Edward Snowden, aquele personagem controvertido que revelou o programa secreto de espionagem do governo norte americano. Outros candidatos na disputa foram Bashar Assad, o ditador da Síria que levou o seu país a um banho de sangue, Hassan Rouhani, o presidente do país que tem um regime religioso, a República Islâmica do Irã, e a cantora Miley Cyrus.
Agora, o mais curioso é o mérito desta homenagem, uma vez que, se for verdadeiro o critério utilizado para avaliar os candidatos, tal como noticiado pelo jornal O Globo Online, desta Quarta Feira, 11/12/13, “o papa foi escolhido pela prestigiada publicação americana como a pessoa que exerceu mais impacto sobre o mundo, para o bem ou para o mal, durante 2013”. Ora, se o critério de avaliação é o “impacto exercido no mundo, para o bem ou para o mal”, então o homenageado como a personalidade do ano de 2001, indubitavelmente, não poderia ser outra pessoa do que Osama Bin Laden. 
Afinal, qual o objetivo, bem como, mais significativamente, qual o mérito, desta homenagem, a qual pode ser concedida até para aqueles que fazem o mal?



segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

|SÁTIRA| Fé, a Preguiça do Intelecto

Octavio da Cunha Botelho


Caso a razão encontrasse a fé em uma livraria,  quais
recomendações de leitura aquela poderia sugerir para esta última?
            Estando um dia em uma livraria, a Razão casualmente se encontra com a Fé. Ao vê-la, se surpreende e lhe dirige a palavra: “olá senhora Fé, que surpresa vê-la em uma livraria, nunca nos encontramos aqui, é a sua primeira vez”? A Fé respondeu, “olá, que prazer em vê-la! Sim, senhora Razão, esta é a primeira vez que venho a uma livraria”. A Razão continuou: “que bom tê-la aqui, por ser a sua primeira vez, gostaria de lhe mostrar a livraria e, ao mesmo tempo, lhe sugerir algumas leituras”. A Fé respondeu: “Ó, senhora Razão, que gentileza sua, será um prazer”. Então, a Razão começou a caminhar e se deparou primeiramente com a seção de livros de Matemática e se dirigiu para a Fé e disse: “aqui senhora Fé, estes são os livros sobre Matemática, o que acha da ideia de adquirir alguns deles”? A Fé pegou alguns e começou a folheá-los. Depois de ler um tanto de suas páginas, reclamou: “hummm, senhora Razão, estes livros exigem muito esforço de raciocínio lógico e exato, não combinam com a minha natureza fantasiosa e imprecisa, estas leituras representam muito empenho intelectual para mim”. “Ok”, disse a razão, “então vamos para outra seção”.
            Em seguida, caminhando mais um pouco, encontram a seção de livros de Filosofia. Aí a Razão disse: “Aqui, senhora Fé, que tal estes livros”? A Fé então começou a folhear algumas páginas de certos livros e reagiu: “Êpa, estes livros exigem esforço de reflexão crítica, portanto não combinam com minha acomodada natureza condescendente”. “Tudo bem, senhora Fé”, disse a Razão, “vamos para outra seção”. Caminharam mais um pouco e encontraram a seção de livros de Ciências. Aí então a Razão perguntou: “que tal estes”? A Fé novamente leu trechos de alguns livros e reclamou: “Ahhh... estes livros exigem esforço investigativo com rigor metodológico, são muito cansativos para mim, pois contrariam minha natureza ingênua e comodista, ademais, não fui educada para tão grande esforço”.
            Daí, a Razão, já demonstrando sinais de impaciência, conduziu a Fé até a seção de Informática e dsse: “Olha, esta é uma das ciências mais importantes e utilizadas na atualidade, com certeza irá lhe agradar, que tal”? A Fé, mais uma vez, folheou alguns livros para logo desabafar: “Ah não! Estes livros exigem muito esforço racional e tecnológico, portanto incomodam minha preguiça congênita”. Então, pensando já estar sem opções de sugestões, a Razão não sabia mais o que indicar, até que, de repente, teve uma ideia. Daí, convidou a Fé para o outro lado da livraria e lhe disse: “olhe, esta é uma seção diferente de todas as outras, trata-se do setor de livros infantis, veja se lhe agrada”. Em seguida a Fé folheou algumas páginas dos livros e, diferente das outras vezes, se deteve mais na leitura até exclamar entusiasmada: “Maravilha, estes livros são formidáveis, me agradou muito, os temas me fazem lembrar os mitos e as lendas com os quais sempre estive envolvida e, ademais, é muito fácil de entender, por isso vou comprá-los”.
Com o aumento do secularismo no mundo, Deus
passou a ter cada vez menos o que fazer.
Então, começou a recolher muitos livros desta seção, porém, curiosamente, ela colocava dois exemplares do mesmo título na cesta de compras. Ao perceber isto a Razão observou: “Perdão, senhora Fé, mas você está selecionando dois exemplares do mesmo título, você não precisa fazer assim, basta um exemplar de cada”. Com isso a Fé respondeu: “Se fosse só para mim, sim, mas quero presentear o senhor Deus com alguns livros, quando retornar ao paraíso, por isso pretendo levar mais de um exemplar por título”. Surpreendida, a Razão perguntou: “Com todo respeito, senhora Fé, mas o senhor Deus irá ler estes livros infantis”? “Sim”, respondeu a Fé e continuou: “ele está muito ocioso nos últimos séculos, pois depois que aumentou o secularismo no mundo, com o crescimento do conhecimento científico e da tecnologia, bem como as mudanças na Moral e na Política, o senhor Deus não tem quase mais nada para fazer, de modo que preciso levar algo que ocupe o seu tempo, pois receio que ele entre em depressão com tanta ociosidade, por isso vou presenteá-lo com estes livros infantis”. “Mas”, interrompeu a Razão, “você acha que o senhor Deus vai gostar de livros infantis”? “Sim”, respondeu a Fé, “porque, além de ser um presente, será para ele um consolo também, uma vez que, lendo estas histórias infantis, ele poderá se recordar do período da infância da humanidade, quando ele era acreditado pela população em geral e tinha poder sobre todos. Ademais, ele precisa de algo para fazer, pois desde quando o triunfo do secularismo o aposentou, ele vem reclamando da falta de ocupação”. Dito isto, a Razão esboçou um sorriso amarelo e disse: “bem, melhor ler isto do que não fazer nada”.
            Então, as duas se encaminharam para o caixa e para o setor de empacotamento para finalizarem a compra. Chegando o momento de embrulhar os livros, a funcionária perguntou para a Fé: “prezada senhora, qual estampa infantil de papel de embrulho lhe agrada mais, esta ou aquela”? Com isso a Fé respondeu: “não precisar embrulhar com papel de presente para criança, estes livros são para adultos”. A funcionária surpreendida exclamou: “Ora, desde que trabalho aqui, esta é a primeira vez que vendemos livros infantis para adultos lerem”! “Sim”, disse a Fé: “sua surpresa é justificável, pois quando, em virtude da preguiça intelectual, não acompanhamos a evolução cultural, somos limitados a entender apenas aquilo que as culturas desenvolvidas têm de mais infantil, e isto é o que acontece comigo, pois ainda estou na infância cultural da humanidade”.