Octavio da Cunha Botelho
(Obs: este estudo está disponível em versão mais atualizada em:
http://observadorcriticodasreligioes.wordpress.com/2014/01/04/a-nova-imagem-de-maria-madalena-e-a-rivalidade-com-o-apostolo-pedro/)
http://observadorcriticodasreligioes.wordpress.com/2014/01/04/a-nova-imagem-de-maria-madalena-e-a-rivalidade-com-o-apostolo-pedro/)
Gravura reproduzindo o episódio da pecadora arrependida |
Ela foi identificada com a pecadora
arrependida na passagem de Lucas 07:36-50, depois conjeturalmente interpretada
como prostituta, ainda nos primeiros séculos do Cristianismo. A oficialização
aconteceu através da Homilia XXIII do papa Gregório, o Grande, em Setembro de
591 e.c. (Schlumpf, 2000: 12). Entretanto, em nenhuma passagem dos evangelhos
canônicos ela é explicitamente mencionada como uma prostituta. Mesmo assim, esta
imagem equivocada perdurou por mais de 15 séculos, deixando, durante este
período, uma definitiva influência na literatura, nas artes e até no cinema do
século XX. Filmes recentes como A Última Tentação de Cristo de Martin
Scorsese e A Paixão de Cristo de Mel
Gibson, o musical Jesus Superstar de
Andrew Lloyd Webber e o livro O Evangelho
Segundo Jesus Cristo de José Saramago ainda a representam como uma
prostituta. Entretanto, como será visto mais adiante, esta identificação nunca
foi uma unanimidade no Cristianismo. Em certas correntes, por exemplo, ela é
elogiada como a “apóstola dos apóstolos” (apostola
apostorum), em virtude da sua privilegiada tarefa de levar a mensagem da
ressurreição de Jesus aos outros apóstolos (D’Angelo, 1999, 106).
Karen L. King esclarece: “A
redescoberta do Evangelho de Maria agora fornece direta evidência dos
argumentos do Cristianismo inicial em favor da liderança de mulheres, e nos
permite ver que as opiniões que excluíam mulheres eram nada menos que um lado
de uma questão ardentemente debatida” (King, 1993: 601). De modo que, o breve
estudo abaixo mostrará como a imagem de Maria Madalena vem sendo apagada e,
simultaneamente, restaurada com outras formas e com outro colorido pelos
historiadores, sobretudo após a descoberta da coleção de textos gnósticos em Nag Hammadi, em 1945, a qual lançou uma
nova luz sobre a história inicial do Cristianismo, e a partir do mais cuidadoso
exame dos próprios evangelhos canônicos.
O poder da descoberta
Dentre as incontáveis derrotas que a Religião
sofreu, ao longo da história, em seu confronto com as inovadoras concepções
científicas, a descoberta tem sido um dos fatos que golpeou mais fortemente as
tradicionais doutrinas religiosas. Um achado, em virtude da concretude da
prova, é capaz de calar, quando contradiz, dezenas de profecias, de
inspirações, de teorias e de especulações. Assim, dentro do mundo da cultura
cristã, a descoberta da coleção de códices de textos gnósticos, nos arredores
da aldeia de Nag Hammadi, Egito, em
1945, convocou os historiadores a repensarem a história inicial do
Cristianismo. Trata-se de uma coleção de escritos do século IV e.c., tão
extensa que alguns autores a denominam de Biblioteca de Nag Hammadi (Robinson, 2007), de 13 códices (volumes encadernados),
cuidadosamente encapados em couro, e mais 52 textos avulsos, muitos encontrados
em bom estado de conservação, após cerca de 1.500 anos soterrados. Excluindo os
tratados em duplicidade, são 45 trabalhos em língua copta, alguns até então
desconhecidos, porém outros já conhecidos anteriormente, na íntegra ou em
fragmentos, embora não inclua alguns importantes textos gnósticos, tais como o Pistis Sophia e o Evangelho de Judas.
Os códices de Nag Hammadi, Egito, uma das mais fantásticas descobertas arqueológicas do século XX |
Os efeitos culturais e históricos desta
descoberta, apesar de ainda estarem em curso, já provocaram muitas alterações
nas mentes dos historiadores. O primeiro efeito foi o reconhecimento do novo
panorama de que, a partir da descoberta desta extensa coleção de textos, não é
mais prudente estudar o Cristianismo sem levar em conta a imensa quantidade de
textos apócrifos disponíveis na atualidade, uma vez que o número destes últimos
é muito maior que o dos textos do Novo Testamento; confirmando, assim, a
suposição dos historiadores de que, na época do Concílio de Nicéia, em 325
e.c., existiam mais de 50 evangelhos diferentes.
A versão conforme o
interesse da comunidade
Outro efeito foi a confirmação de que, tal
como alguns já supunham, os evangelhos, tanto canônicos como apócrifos, foram
escritos, algumas décadas após a morte de Jesus por autores desconhecidos, com
o determinado objetivo de atender às agendas e aos programas de doutrinação e
de propaganda das diferentes comunidades cristãs, muitas delas ideologicamente
rivais entre si, enfim, para atender as necessidades, os interesses e as
preocupações da época e de certas localidades. Nas palavras de Mary R.
D’Angelo: “a imagem de Jesus em si varia muito entre os evangelhos. Os
escritores dos evangelhos procuraram reapresentar Jesus para fazê-lo novamente
presente e ativo nas comunidades para quem eles escreviam. (...) Assim, o Jesus
dos evangelhos atua e fala para as comunidades do fim do primeiro século e do início
do segundo século. Os ditos de Jesus foram revisados para se ajustarem as suas
necessidades, e as perguntas e as objeções, que são colocadas a ele,
frequentemente articulam as questões que as comunidades estavam confrontando”
(D’Angelo, 1999: 106).
O estudo seguinte mostrará uma ocorrência que
é comum na composição dos textos religiosos, isto é, a de que os compositores e
os compiladores destes escritos não são historiadores, mas sim adeptos e
admiradores, portanto não se preocupam em narrar os fatos fielmente tal como
eles acontecem na realidade. Com efeito, a prioridade da composição ou da
compilação religiosas é transmitir o que a agenda ou o programa de doutrinação
e de propagada de uma religião emergente deseja que o ouvinte ou o leitor
acredite. Por isso, as composições estão sempre carregadas de pretensões
persuasivas, exortativas e catequéticas, bem como as narrativas recheadas de mitos
e de ficções. Enfim, o mais importante é a persuasão, isto é, para os religiosos
em geral, a verdade é o convencimento e a crença, e não a realidade em si
mesma. Em outras palavras: se convenceu, então basta, é verdade.
A confusão de Marias nos
Evangelhos Canônicos
O nome Maria parece ter sido muito
popular na época de Jesus. As Marias mencionadas nos evangelhos canônicos são:
-
Maria de Nazaré, a mãe de Jesus
-
Maria da Betânia, a irmã de Marta e Lázaro (Lucas 10:38-42 e João 12:03-11)
-
Maria Madalena (Lucas 8:02; Marcos 15:40 e 47, e 16:01)
-
Maria, a esposa de Cléofas (João 19:25)
-
Maria, mãe de José (Marcos 15:47)
-
Maria, mãe de Tiago (Marcos 16:01)
-
Maria, mãe de Tiago e de José (Marcos 15:40), às vezes duvidosamente
identificada com a Mãe de Jesus (Marcos 6:03)
-
a outra Maria, mencionada em Mateus 28:01
-
Salomé, depois conhecida como Maria Salomé nas lendas medievais (Marcos 15:40 e
16:01) e
-
a pecadora arrependida, identificada depois no Cristianismo Ocidental com Maria
Madalena (Lucas 7:36-50).
Maria da Betânia ungindo os pés de Jesus, ela também foi confundida com Maria Madalena |
Excluindo Maria, mãe de Jesus, a
identificação e a distinção de uma Maria com outra, nas passagens dos
Evangelhos Canônicos, dependem, em muitos casos, de interpretações, muitas
vezes conjeturais, em vista da imprecisão e da vagueza das citações. Ademais, as
interpretações variam conforme as diferentes correntes do Cristianismo. Por
exemplo, o Catolicismo Ocidental identificou Maria Madalena com a pecadora
arrependida, a qual chorou aos pés de Jesus e enxugou-lhes com os seus cabelos,
bem como os beijou e os ungiu com bálsamo, numa passagem que aparece apenas em
Lucas 7:36. Esta identificação pode ter sido motivada pelo fato de que no
capítulo seguinte, Maria Madalena, de quem Jesus expulsou sete demônios, é
incluída, logo em seguida, como uma de suas companheiras (Lucas 8:02). Ela foi
também vista como uma prostituta arrependida pelo Catolicismo Europeu.
Identificou-se Maria Madalena também com Maria da Betânia, irmã de Marta e de
Lázaro, que pode ser acontecido em razão da semelhança do episódio da pecadora
arrependida (Lucas 7:36-50) com a passagem na qual Maria da Betânia, irmã de
Marta e de Lázaro, durante um jantar em sua casa, tomou um vaso de bálsamo e
“ungiu os pés de Jesus e os enxugou com os seus cabelos” (João 11:02 e 12:03).
Em uma lenda denominada “O Nascimento da Abençoada Virgem Maria”, que circulou
pela Idade Média, Maria Salomé é identificada com Maria, a mãe de Tiago e de
José (De Voragine, 2012: 536). Outras intérpretes pensam que Maria Madalena foi
uma espécie de ‘bode expiatório’, isto é, “ela é a essência composta de muitas
outras mulheres que possuem o nome de Maria, e os atos e crimes de mais de uma
Maria foram atribuídos a ela” (Rushing, 1994: 45).
O Cristianismo Ortodoxo do Oriente
nunca aceitou a identificação de Maria Madalena com a pecadora arrependida ou a
prostituta penitente. Nesta vertente, ela sempre foi vista como uma virtuosa
companheira de Jesus, a qual, juntamente com outras, lhe assistia em suas
despesas e lhe acompanhava nas viagens (Lucas 8:01-04).
Maria Madalena nos
evangelhos canônicos
Pouco mencionada nos trechos
iniciais dos quatro evangelhos, apenas em Lucas 8:02, ela torna-se personagem
proeminente nos episódios da crucificação, do sepultamento e da ressurreição de
Jesus, bem como foi encarregada do anúncio da ressurreição aos apóstolos.
Enquanto os apóstolos tinham se escondido, temendo serem aprisionados pelos
soldados romanos, (Pedro negou Jesus três vezes de tanto medo), ela, por sua
vez, estava corajosamente no pé da cruz de Jesus, acompanhada de outras
mulheres, durante a crucificação (Mateus 27:56; Marcos 15:40 e João 19:25).
Também, acompanhou o ato de sepultamento (Mateus 27:61 e Marcos 15:47). E, foi
a primeira a testemunhar a tumba vazia e o evento da ressurreição (Mateus
28:01; Marcos 16:01 e João 20:01). Mais ainda, foi a primeira a ver Jesus
ressuscitado (Mateus 28:09; Marcos 16:09 e João 20:11-17) e encarregada por ele
de anunciar a sua ressurreição aos apóstolos (Mateus 28:08-10 e João 20:14-18).
Depois destes episódios, os quatro evangelhos silenciam-se sobre Maria
Madalena.
Maria Madalena reproduzida como a prostituta arrependida |
Aqui começa o tratamento das
questões polêmicas deste estudo. O motivo para o silêncio é apontado pelos
críticos, sobretudo as feministas, como uma tentativa de encobrir a
proeminência de Maria Madalena entre os companheiros e companheiras de Jesus,
por parte dos autores dos relatos e dos compiladores da corrente patriarcal, no
momento da composição dos evangelhos que, no futuro, se tornariam canônicos.
Segundo alguns intérpretes, as mulheres podem ter tido posição de destaque no
ministério e sido apóstolas de Jesus (D’Angelo, 1999: 106). Em virtude do
encobrimento e da manipulação textual, as pistas para tal condição são difíceis
de serem percebidas nos evangelhos canônicos e um exemplo de manipulação,
dentre tantos outros, é apontado pelas feministas nos doze versos finais do
Evangelho de Marcos. Este é considerado pela maioria dos pesquisadores como o
primeiro a ser composto, talvez logo após a queda do Segundo Templo, em 70 e.c.,
portanto cerca de 40 anos após a morte de Jesus (D’Angelo, 1999: 106), e serviu
de base para a composição dos evangelhos de Mateus e de Lucas (Ehrman, 2006:
145-6). A pesquisa da Crítica Textual tem revelado que o Evangelho de Marcos, o
mais antigo, originalmente terminava em 16:08, portanto os doze últimos versos (16:09-20)
são acréscimos posteriores por copistas e por revisores dos manuscritos na
Antiguidade. Segundo Bart D. Ehrman, estes “versículos estão ausentes em dois
de nossos mais antigos e melhores manuscritos do Evangelho de Marcos, além de
ausentes em outros importantes testemunhos; o estilo de escrita é diferente do
estilo que encontramos em todo o restante de Marcos; a transição entre essa
passagem e a anterior é de difícil entendimento (por exemplo, Maria Madalena é
apresentada no versículo 9 como se ainda não tivesse sido mencionada, mesmo
tendo sido discutida nos versículos anteriores; há mais um problema com o grego
que faz a transição ainda mais
complicada); e há um grande número de palavras e frases na passagem que não são
encontradas em nenhum outro lugar em Marcos. Em suma, as evidências são
suficientes para convencer quase todos os pesquisadores textuais de que esses
versículos são um acréscimo a Marcos” (Ehrman, 2006: 77).
Ehrman aponta o motivo para o acréscimo
deste apêndice sumário no Evangelho de Marcos (16:09-20) ao fato do seu final parecer
abrupto demais e que o deixava sem conclusão, permanecendo as dúvidas se os
discípulos nunca souberam da ressurreição, se Jesus nunca apareceu para eles,
etc. Para resolver o problema os copistas acrescentaram um fim (Ehrman 2006:
77). Por outro lado, as intérpretes feministas atribuem o motivo da inclusão
deste apêndice sumário ao fato de que, sem ele, ficaria para a posteridade a
ideia de que o Jesus ressuscitado apareceu somente para as mulheres, deixando
os apóstolos numa posição desprivilegiada, bem como favorecendo as comunidades
rivais que apoiavam o apostolado feminino. Sandra M. Rushing vai mais longe ao
afirmar que “a história de Maria Madalena foi distorcida, criando a maior
falsificação histórica do Ocidente, em favor do patriarcalismo, a qual teve a
maior influência no lugar da mulher na Igreja” (Rushing, 1994: 46).
Ela foi a primeira a encontrar a tumba vazia |
Feministas procuram encontrar
passagens nos evangelhos canônicos que podem desvelar o fato de que mulheres
exerceram papéis de apóstolas e até de líderes no círculo de Jesus (D’Angelo,
1999: 105-28). Porém, as pistas são muito imprecisas e problemáticas, sobretudo
se, de fato, os autores dos evangelhos canônicos eram partidários da cultura
patriarcal, daí procuram encobrir, o máximo possível, as posições proeminentes
das mulheres, para então não favorecer as alegações rivais que proclamavam o ministério
feminino no apostolado. Dentre as muitas pistas apontadas por Mary R. D’Angelo,
está o significado da palavra grega diakoneo,
geralmente traduzida como “tendo servido”, no sentido de assistir, ajudar ou
servir, em Marcos 15;41; mas que feministas interpretam como uma tarefa de
ministério (grego: diakonia, latim: ministerium), tal como em Lucas 10:40,
alegando assim que mulheres foram apóstolas de Jesus, e não apenas o serviam e
o suportavam em suas despesas Lucas 8:01-3). Esta autora vai mais longe ao
afirmar que “é possível que João 20:19-31 foi acrescentado precisamente para
eliminar a impressão de que a definitiva interpretação da partida de Jesus foi
dada apenas através de uma mulher. Ainda mais notadamente, o apêndice ao
evangelho, o qual foi provavelmente suprido por um membro tardio da comunidade,
especificadamente para definir os relativos papéis de Pedro e o discípulo
amado, não menciona Maria Madalena” (D’Angelo, 1999: 112).
Maria Madalena nos textos
gnósticos
Se nos evangelhos canônicos as
referências ao apostolado feminino e a proeminência de Maria Madalena são
omitidas, ou talvez muito vagas, nos evangelhos gnósticos estas menções são
abundantes e explícitas. No Evangelho de Felipe, por exemplo, é mencionado que
“a companheira de [Jesus é] Maria Madalena. [Ele] amava ela mais que a todos os
discípulos...”. Logo em seguida os discípulos perguntam a Jesus: “Por que tu a
amas mais do que a todos nós? O Salvador respondeu a eles: Por que eu não vos
amo como ela? Quando um cego e aquele que vê estão juntos na escuridão, eles
não são diferentes um do outro. Quando vem a luz, então aquele que vê verá a
luz, e aquele que é cego permanecerá na escuridão” (Ehrman, 2003: 42 e Isenberg,
2007: 134).
Gravura reproduzindo Maria Madalena pregando |
No Pistis Sophia, outro texto
gnóstico em forma de diálogo entre Jesus e seus discípulos, das 64 perguntas,
39 foram feitas por mulheres, incluindo uma Maria e uma Marta (talvez a irmã de
Maria da Betânia), que a maioria dos intérpretes identifica com Maria Madalena,
demonstrando que as mulheres não eram apenas ajudantes e sustentadoras das
despesas de Jesus, tal como nos evangelhos canônicos, mas também participavam
ativamente no ensinamento e no apostolado. Dentre outras menções e elogios, Maria
é assim elogiada por Jesus neste texto: “Maria, tu a abençoada, quem eu
aperfeiçoei em todos os mistérios das alturas (...), tu, cujo coração ascendeu
ao reino do céu mais que todos os teus irmãos” (Capítulo 17 – Mead, 1921: 20) e
mais adiante: “Bem dito Maria, pois tu és abençoada ante todas as mulheres na
Terra, porque tu deves ser a plenitude de todas as plenitudes e a perfeição de
todas as perfeições” (Capítulo 19 – Mead, 1921: 22).
A proeminência de Maria
Madalena e a rivalidade com Pedro
Alguns textos gnósticos são
transparentes quanto à proeminência de Maria Madalena e à resultante rivalidade
com os apóstolos, sobretudo com Pedro. Daí que é possível conhecer as tensões ocorrentes
nas comunidades emergentes. Um exemplo pode ser visto no parágrafo 114 do Evangelho
de Tomé (encontrado em Nag Hammadi),
onde Simão Pedro diz a Jesus: “Permite que Maria nos deixe, pois as mulheres
não são dignas da vida”. Em seguida a estranha resposta de Jesus: “Eu mesmo
devo guiá-la para fazer dela um homem, para que ela também possa se tornar um
espírito vivo semelhante a vós homens. Pois, cada mulher que fizer dela mesma
um homem, entrará no reino do céu” (Ehrman, 2003: 28 e Lambdin, 2007: 125).
Neste mesmo evangelho, o qual é em forma de diálogo com os discípulos, Maria
participa com uma pergunta no parágrafo 21 (Ehrman, 2003: 22 e Lambdin, 2007:
118). Sandra M. Rushing resume: “Dos relatos no Evangelho de Tomé, no Evangelho
de Felipe e no Evangelho de Maria, torna-se evidente que Pedro, de todos os
discípulos, foi o mais ofendido com o especial relacionamento de Maria Madalena
com Jesus” (Rushing, 1994: 52).
O Evangelho de Maria
Estritamente falando, o Evangelho de
Maria já era conhecido antes da descoberta do manuscrito copta em Nag Hammadi, no ano de 1945, através de
dois fragmentos de manuscritos em grego do terceiro século e.c., com apenas uma
página cada um (Ehrman, 2003: 35). Karen L. King fala de outro fragmento copta
que foi comprado no Cairo por Carl Schmidt e trazido para Berlim em 1896,
depois publicado por Walter Till em 1955. Ela observa também que existem
consideráveis diferenças entre as versões grega e copta deste evangelho (King,
1993: 602 e 2007: 442). O manuscrito encontrado na coleção de Nag Hammadi também está fragmentado, das
18 páginas, apenas 8 estão preservadas, estão faltando as páginas 01-06 e
11-14. Pesquisadores afirmam que a versão copta é uma tradução de um texto
originalmente composto em grego no século II e.c. (Ehrman, 2003: 35 e King,
2007: 442).
Apesar da falta, o restante do texto é
intrigante, uma vez que mostra Maria, que a maioria dos pesquisadores aponta
ser Maria Madalena (em nenhum trecho o nome Madalena é mencionado), numa
posição de destaque e até mesmo de liderança entre os apóstolos, a quem Jesus
revelou ensinamentos secretos que foram ocultados dos outros discípulos. Por
isso, na página 10, Pedro solicita à Maria “Irmã, nós sabemos que o Salvador
amava a ti mais que a todas as mulheres. Diga-nos as palavras do Salvador que
mais te recordas – as quais tu sabes, mas nós não sabemos, nem ouvimos falar
delas”. Em seguida Maria responde: “O que a vós está oculto, eu vos
proclamarei”. Então, ela passa a descrever uma visão que teve de Jesus. (King,
1993: 611-2; MacRae, 2007: 443, Erhman, 2003: 36). A prática de transmitir
ensinamentos secretos é habitual no Gnosticismo, por exemplo, no Evangelho de
Judas, outro texto gnóstico, mas que não foi encontrado em Nag Hammadi, Judas é um discípulo de confiança de Jesus que recebe
instruções secretas, por isso é encarregado de entregá-lo às autoridades. Este
evangelho termina neste episódio, portanto os episódios da prisão, do
julgamento, da crucificação, do sepultamento e da ressurreição são omitidos
(Meyer, 2006).
A atriz Monica Bellucci no papel de Maria Madalena em cena de A Paixão de Cristo |
Como mencionado na página 9, o Evangelho de
Maria é um dialogo pós-ressurreição de Jesus com seus discípulos, ou seja, mais
uma aparição aos apóstolos. Mais do que em qualquer outro texto cristão, neste
a proeminência e o privilégio de Maria Madalena são explícitos. No entanto,
estas prerrogativas não eram aceitas e recebidas com simpatia por todos os
apóstolos, de modo que este evangelho reproduz as tensões e os conflitos da
época. O clima se agrava a partir da página 17 quando, logo após o relato de
Maria da sua visão e dos ensinamentos recebidos de Jesus, André a contesta da
seguinte maneira: “Dizei o que desejeis dizer sobre o que ela disse. Eu pelo
menos não acredito que o Salvador disse isto. Pois, certamente, esses
ensinamentos são ideias estranhas”. Em seguida, Pedro entra na discussão e
questiona: “Ele realmente falou com uma mulher sem o nosso conhecimento e não
abertamente conosco? Vamos todos mudar de posição e ouvi-la? Ele preferiu a ela
a nós?” Então Maria lamentou e disse a Pedro “Meu irmão Pedro, o que pensas? Tu
crês que eu mesma inventei essas coisas no meu coração, ou que esteja mentindo
sobre o Salvador?” Daí Levi interfere para acalmar o clima: “Pedro, tu sempre
foste o exaltado. Agora eu te vejo opondo a uma mulher como adversários. Mas se
o Salvador a fez digna, quem és tu de fato para rejeitá-la? Certamente o
Salvador a conhece muito bem. Por isso ele a amava mais do a nós” (King, 1993:
613-7; Ehrman, 2003: 37 e MacRae, 2007: 444).
Bem, o bate boca acima reflete algumas das
tensões do Cristianismo do século II, no qual Pedro e André representam as
posições ortodoxas que negam a validade da revelação esotérica e rejeitam a
autoridade da mulher no ensinamento. O Evangelho de Maria ataca ambas as
posições de frente por meio da figura de Maria Madalena. Ela é a amada do
Salvador, possuidora do conhecimento secreto e do ensinamento superior àqueles da
tradição apostólica pública.
Reflexão final
Enquanto os cristãos, os teólogos e
as feministas discutem qual posição dever ser a verdadeira, ou seja, se Maria
Madalena realmente teve uma posição de liderança no apostolado ou não, para o
pesquisador é difícil tomar uma decisão quanto a qual lado se inclinar. O que é
possível dizer com absoluta certeza é apenas que os textos cristãos, tanto
canônicos como apócrifos, foram compostos cercados de um clima de rivalidade e
de conflito ideológico, que influenciou determinantemente nas escolhas dos
relatos e dos ensinamentos de Jesus, para atender à agenda doutrinária da
comunidade a qual pertencia o compositor ou o compilador do texto. Enfim, não é
prudente confiar totalmente em nenhum dos lados, tal como os cristãos têm feito
por cerca de dois mil anos, os quais suportam o lado tradicional; tampouco
aprovar o entusiasmo dos esoteristas contemporâneos, os quais enxergam nos
textos gnósticos a redescoberta do verdadeiro Cristianismo.
Portanto, a tarefa de identificar o que é
histórico e o que é manipulação é difícil e está ainda em andamento, com alguns
sucessos já alcançados. Assim como existe o projeto “Em Busca do Jesus
Histórico”, alguns pesquisadores já iniciaram o projeto “Em Busca da Madalena
Histórica” e os resultados iniciais já são esclarecedores. Em suma, quanto mais
confirmação histórica e crítica, e menos crença e especulação, nos resultados
das pesquisas, melhor serão para o público interessado no assunto.
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fascinante e maravilhoso!
ResponderExcluirObs: não parei por aquí; continuarei pesquisando...