quarta-feira, 19 de setembro de 2012

|ESTUDO| Maomé e seus Casamentos mais Chocantes


Octavio da Cunha Botelho
 
(Obs: este estudo está disponível em versão mais atualizada em:
http://observadorcriticodasreligioes.wordpress.com/2014/01/04/maome-e-seus-casamentos-mais-chocanters/)
Cena do filme Innocence of Muslims
Atualmente testemunhamos uma onda de violência, da parte de muçulmanos inconformados com a produção de um filme denominado Innocence of Muslims (A Inocência dos Muçulmanos) exibido uma única vez nos EUA para um número pequeno de espectadores sem ser lançado no circuito, mas parcialmente disponibilizado no YouTube (http://www.youtube.com/watch?v=lO7jZfQspXA) em uma montagem de trechos com a duração de 13,5 minutos. Pelos curtos episódios disponíveis nesta edição resumida, é possível perceber que filme é um deboche da pessoa de Maomé e do Alcorão. O profeta do Islã é representado como um tolo, um mulherengo, um extorsionário e um saqueador impiedoso, e o Alcorão como um livro que legitima a crueldade e os interesses de Maomé.
Segundo as investigações até agora, o produtor é um californiano chamado Nakoula Basseley Nakoula (55), um cristão copta que está em liberdade condicional depois de uma condenação por crimes financeiros. O elenco do filme agora alega que foi enganado pelo produtor, o qual, após as gravações, dublou as falas dos diálogos para alterar o texto. Os atores não sabiam que se tratava de um filme sobre Maomé, pois foram informados que o filme se chamaria O Guerreiro do Deserto. A qualidade é muito precária, com um orçamento muito pequeno, o que nos faz lembrar uma produção amadora. O elenco é totalmente desconhecido, o ator que interpreta Maomé tem a aparência de um surfista californiano. Algumas cenas no deserto são captadas no interior de estúdio, com as imagens dos atores sobrepostas às imagens do deserto ao fundo, porém com tanta artificialidade, que é possível perceber as sombras da iluminação artificial de estúdio sobre os atores.
Maomé numa cena de fúria no filme Innocence of Muslims
Diante destas ocorrências, amigos e leitores do meu blog estão me solicitando que escreva algo. Então, para aproveitar que o assunto ainda está em ebulição, acrescento abaixo um breve estudo sobre os mais chocantes casamentos de Maomé, desde uma perspectiva crítica. Algumas destas esposas são mostradas nesta montagem resumida do filme, inclusive sua primeira esposa Khadija, numa cena sensual. Mais adiante, quase no final, Maomé é flagrado na cama com a escrava de uma de suas esposas, ao depara-se com a cena, ela se enfurece e lhe aplica uma surra de chinelo com a ajuda da sua subordinada.

O primeiro casamento

Maomé se casou pela primeira vez aos vinte e cinco anos de idade com uma viúva rica de quarenta anos, a qual já tinha dois casamentos anteriores, portanto quinze anos mais velha que ele, chamada Khadija. Ela o colocou na administração dos seus negócios, uma vez que até então ele não possuía trabalho fixo, como um agente comercial, e pelos relatos nas biografias, ele se saiu bem. Os críticos percebem neste evento o oportunismo de Maomé em casar-se por dinheiro, é o que alguns denominam através da expressão popular de “golpe do baú”.  Seu casamento com Khadija durou vinte e cinco anos, até o falecimento de sua esposa aos sessenta e cinco anos de idade. Durante todo o seu período de casado, ele não teve nenhuma outra esposa e viveu dos negócios da empresa comercial da mulher. Pois, como observa Anwar Hekmat: “Khadija era uma mulher muito capaz e rica, e em vista do fato que ela era de um clã influente de Meca, é muito provável que ela tenha estipulado uma cláusula no seu contrato de casamento evitando que seu marido casasse com outra mulher. Antes, as mulheres islâmicas na Arábia eram mais independentes do que elas são hoje no Islã. (...) Financeiramente, Maomé era muito dependente de sua rica esposa, mas é claro que ela não teria suprido ele com meios bastantes para se casar com outra mulher” (Hekmat, 1997: 41).  Do que foi dito acima, não é difícil deduzir que Maomé, durante os anos que conviveu com Khadija, se comportou como um marido bem submisso da esposa, muito diferente da orientação no Alcorão IV: 34: “Os homens têm autoridade sobre as mulheres pelo que Deus os fez superiores a elas e que gastam de suas posses para sustentá-las...”.
Pintura de Maomé e Khadija
Depois da morte de Khadija, “como ele (Maomé) não tinha mais que trabalhar para seu sustento, ele gastou a maioria do seu tempo batendo papo com as pessoas que ele tinha a oportunidade de encontrar nas viagens e estudar as vidas sociais e crenças religiosas de outros povos fora de Meca” (Hekmat, 1997: 40). Bem, tudo que Maomé aprendeu, teve de ser através de bate papo, uma vez que era analfabeto. A prova de que ele foi um marido submisso enquanto casado com Khadija está no fato que, assim que esta sua primeira esposa faleceu, ele viu a oportunidade de extravasar todo o seu apetite sexual, reprimido durante aqueles anos, e se casou em seguida com várias esposas, inclusive com uma criança de nove anos (Aisha) e com sua nora (Zaynab). Nas palavras de Anwar Hekmat: “Maomé pode ter reprimido suas paixões sexuais não se atrevendo a revelá-las abertamente enquanto sua poderosa esposa estava viva, mas da descrição que ele fornece do paraíso no Alcorão, pode-se seguramente admitir que a ideia de desfrutar a companhia de jovens e belas mulheres era uma qualidade inata e sempre foi um papel dele enquanto viveu.” (Hekmat, 1997: 42). Seu apetite estava tão reprimido que o segundo casamento aconteceu apenas poucos dias após a morte de Khadija.

Os casamentos mais chocantes

Sua segunda esposa foi Sauda, a ex-esposa de um dos seus seguidores que tinha se mudado para a Etiópia, estando lá, seu marido abandonou o Islã e se converteu ao Cristianismo.  Sauda então abandonou o marido e retornou para Meca. Segundo a lei islâmica, qualquer mulçumano que muda de religião e assim torna-se um apóstata é considerado um divorciado de sua esposa, e não sendo mais legalmente ligado a ela. Com seu retorno à Meca, Maomé a tomou como esposa e consumou o casamento. Isto aconteceu apenas poucos dias após a morte de Khadija. Porém, Sauda permaneceu apenas poucos meses na companhia de Maomé (Hekmat, 1997: 43).
Foram tantas esposas que as biografias divergem quanto à quantidade. Os números podem variar de quatorze até vinte e um, mas a maioria dos biógrafos concorda em quatorze (Hekmat, 1997: 33-4). A dificuldade em estimar com precisão reside no fato que, além de esposas, ele desposou concubinas, escravas e prisioneiras de guerra. Portanto, seu harém se tornou numeroso e diversificado após a morte de sua primeira esposa. Ademais, ele se casou com algumas viúvas de seus companheiros mortos nos campos de batalha, e a justificativa para tal ato, pelos apologistas do Islamismo, é que ele desposou estas viúvas para lhes dar proteção (Robinson, 2003: 92). Bem, agora seria interessante saber por que é necessário se casar com alguém para lhe dar proteção.
Maomé na cama com Aisha
Não cabe aqui tratar de todos os numerosos casamentos de Maomé, portanto, dos tantos matrimônios, dois foram os mais chocantes. O primeiro foi com uma criança de nove anos, chamada Aisha, sua terceira esposa. Uma prática de pedofilia por alguém que se proclamava mensageiro de deus. Ela era filha de um grande amigo de Maomé, Abu Bakr, um dos seus primeiros seguidores e que depois se tornaria o primeiro Califa (sucessor) no Islamismo. O contrato de casamento foi feito quando Aisha ainda tinha seis anos de idade. Nas assustadoras palavras de Anwar Hekmat: “O apóstolo de Alá, na sua paixão de possuí-la, estava com tanta pressa que não esperou sequer pela chegada da noite, ele pediu à mãe da noiva para enviá-la para sua cama nas primeiras horas da manhã logo após a cerimônia de casamento” (Hekmat: 1997: 43). Quando esta união aconteceu, Maomé tinha mais de cinquenta anos de idade, portanto idade suficiente para ser avô de Aisha e, também, era mais velho que o pai dela, Abu Bakr. O relato seguinte é tão absurdo que chega ser cômico: “A garota era tão criança que, de acordo com os biógrafos islâmicos, ela levava seus brinquedos para a cama do Profeta. A pequena garota tinha permissão de manter seus brinquedos e suas bonecas, e algumas vezes o Profeta brincava de jogos com ela” (Hekmat, 1997: 45).
O próximo casamento chocante foi com sua nora (Zaynab), ou seja, a filha de seu filho adotivo, Zayd. Um caso incestuoso que teve origem num ato de explosão passional de Maomé. Veja a narração deste episódio por Hekmat: “Um dia Maomé foi inesperadamente até a casa de seu filho adotivo. Zayd não estava em casa, mas a nora recebeu seu sogro mesmo que ela não estivesse completamente vestida. Sendo sua nora, ela provavelmente não se importou de se vestir ou de se cobrir completamente. Maomé não deixou de notar as belezas ocultas de sua nora, e após murmurar algumas palavras incoerentes, ele exclamou: Louvor a Alá, o mais elevado; louvor a Alá, que muda o coração dos homens” (Hekmat, 1997: 56). Daí nasceu a paixão de Maomé por sua nora Zaynab, uma paixão que ele entendeu como motivada por deus. Esta união incestuosa é relatada também no Alcorão (33: 37) com a aprovação de Alá: “... E quando Zayd satisfez seu desejo de sua mulher, nós ta demos em casamento para que os crentes soubessem que não é um crime para eles casarem-se com as mulheres de seus filhos adotivos, uma vez que estes tenham satisfeito seu desejo delas. O mandamento de Deus é sempre cumprido” (Palmer, 1994: 144; Ali, 2002: 1118 e Challita, 2002: 226). E tudo que foi relatado acima é legitimado pelo Alcorão: “Ó Profeta, tornamos legais para ti as tuas esposas que dotastes e as escravas que Deus te outorgou, e as filhas de seus tios paternos e maternos, e de tuas tias paternas e maternas que emigraram contigo e qualquer outra mulher crente que se oferecer ao Profeta e que ele quiser desposar: privilégio teu, com exclusão dos demais crentes – sabemos o que lhes impusemos com relação às suas esposas e escravas – para que ninguém possa censurar-te. Deus é compassivo e misericordioso” (33: 50 – Arberry, 1955: 126-7; Palmer, 1994: 146; Ali, 2002: 1122 e Challita, 2002: 226). 
De tudo que foi dito acima, para o Alcorão, deus aprova e incentiva o incesto privilegiado, a poligamia, o pagamento de dote, a pedofilia e a escravatura.

Bibliografia

ALI, Abdullah Yusuf (tr.). The Holy Qur’an: Text, Translation and Commentary. New York: Tahrike Tarsile Qur’an Inc, 2002.
ALI, Maulana M. (tr.). A Manual of Hadith. Lahore: The Ahmadiyya Anjuman Ishaat Islam, 1944. 
ARBERRY, Arthur J. (tr.) The Koran Interpreted. New York: Macmillan, 1955.
CHALLITA, Mansour (tr.). O Alcorão. Rio de Janeiro: ACIGI, 2002.
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HEKMAT, Anwar. Women and the Koran: The Status of Women in Islam. Amherst: Prometheus Books, 1997.
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PALMER, E. H. (tr.) The Qur’an (Sacred Books of the East, vol. 09). Delhi: Motilal Banarsidass, 1994.
PETERS, Francis E. A Reader on Classical Islam. Princeton: Princeton University Press, 1994. 
ROBINSON, Neal. Islam: A Concise Introduction. London/New York: RoutledgeCurzon, 2003.
WARRAQ, Ibn. Why I am not a Muslim. Amherst: Prometheus Books, 1995. 
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_____________ (ed.). The Quest for the Historical Muhammad. Amherst: Prometheus Books, 2000.
WILLIAMS, John A. Islam. New York: George Braziller, 1961.  


segunda-feira, 17 de setembro de 2012

|ESTUDO| Apolônio de Tiana e a Manipulação para Transformá-lo no Rival de Jesus ou no Cristo Pagão



 Octavio da Cunha Botelho

Moeda com a imagem de Apolônio

            A tradição do seu culto, a qual foi florescente do século II ao  século IV e.c., não sobreviveu até os dias atuais. Porém, uma grande dose de admiração por este controvertido personagem ainda é cultivada pelos esoteristas, pelos teósofos, pelos adeptos da Rosa Cruz e pelos maçons. A admiração pode chegar ao delírio de até conceber que Apolônio foi uma reencarnação de Jesus. Ora reconhecido como um rival de Jesus, ora como um ‘cristo pagão’, seu ensinamento e sua vida em muitos episódios se assemelham aos de Jesus: curas, ressuscitamento de mortos, proclamação de profecias, realização de milagres, confronto com as autoridades romanas, rejeição aos sacrifícios sanguinários, caridade aos pobres, prisão e julgamento por tribunal romano, ascensão ao céu e aparição após a morte. Se a intenção do autor da sua biografia (Vita Apollonii Tyanensis) foi comparar ou, até mesmo, superar as façanhas de Jesus, ainda é uma polêmica entre os pesquisadores. Não aparece nenhuma menção do Cristianismo nesta obra. Apolônio se tornou uma das últimas figuras heroicas da religião pagã, e como tal, um rival natural de Jesus na luta entre paganismo e Cristianismo. Já para os adeptos do sincretismo, ele foi o ‘Cristo Pagão’.
O que podemos afirmar com mais segurança é que ambos os relatos, de Apolônio e de Jesus, duas figuras quase contemporâneos, são justaposições de mitos e de fatos históricos. A diferença é que, a quantidade de material preservado deste último é muito maior, enquanto que, o principal relato da vida e dos ensinamentos de Apolônio foi registrado na Vita Apollonii Tyanensis (Vida de Apolônio de Tiana), de Flávio Filóstrato (170-247 e.c), publicada em 217 e.c. Os outros relatos anteriores, mencionados pelo autor para o uso na composição da biografia, foram perdidos.
            No entanto, a preservação de maior quantidade de textos de uma figura religiosa, não significa, consequentemente, que esteja assegurada a historicidade completa ou da maior parte dos relatos de referido personagem, pois quanto maior o número de relatos, maior poderá ser o número de lendas e de ficções acrescidas nos relatos, o que é muito comum na cultura religiosa, uma vez que o ímpeto pela exaltação e pelo embelezamento é um hábito compulsivo dos autores nos momentos da composição de textos religiosos. Em outras palavras, quanto maior a quantidade de textos, maior a produção delirante, e este último parece ser o caso do Cristianismo. Enfim, o que mais importa é o grau de historicidade dos relatos ou das provas documentais e materiais.

A Vida de Apolônio de Tiana segundo Filóstrato

            Grande parte do que se conhece sobre este místico é extraído da biografia romantizada intitulada Vita Apollonii Tyanensis (Vida de Apolônio de Tiana), de autoria de Flávio Filóstrato (170-247 e.c.), um erudito e sofista da corte dos Saveri, cuja composição foi empreendida após o pedido de Julia Domna, esposa de Sétimo Severo e mãe de Caracalla, para que este erudito desse um formato literário para uma coleção de anotações (hypomnemata) feitas por um discípulo e companheiro de viagem de Apolônio chamado Damis (Conybeare, 1912: vol. I, 11; Dzielska, 1986: 19 e Zimmerman, 2002: 79).  Ela lhe entregou as memórias para tal tarefa, as quais ela tinha conseguido com um parente de Damis, porém Julia Domna faleceu antes da publicação da Vita Apollonii em 217 e.c. Aconteceu neste período uma onda de admiração por Apolônio de Tiana na corte dos Saveri. Caracalla visitou Tiana e aumentou o santuário do culto a Apolônio. Alexandre Severo mantinha um altar (lararium) com estátuas de Abraão, Orfeu, Cristo e Apolônio de Tiana (Zimmerman, 2002: 79). A historicidade de Damis e a veracidade da existência destas memórias (hypomnemata) são objetos de discussão entre os pesquisadores. Maria Dzielska entende que ambas são invenções da imaginação de Filóstrato, a fim de embelezar a biografia (Dzielska, 1986: 19s).
            Apolônio é retratado na biografia de Filóstrato como um filósofo neo-pitagórico, nascido na cidade de Tiana, na Capadócia, uma região da atual Turquia. Como tal, ele rejeitava vinho, casamento, carne e condenava o sacrifício de animais. Em sua emulação do seu mestre (Pitágoras), Apolônio caminhava descalço com barba e cabelos compridos. O início de sua carreira foi como um médico e curandeiro no templo de Asclépio na Cilícia, onde ficou famoso por sua capacidade de cura (Odgen: 2002, 61). Em seguida viajou muito, esteve na Pérsia, na Índia, no Egito, na Grécia, em Roma, na Espanha e em muitas cidades do Oriente Médio (Dzielska, 1986: 51-84). Por todos os lugares onde passou, ele revolucionou os cultos, bem como foi admirado e profetizado como alguém destinado a ter uma missão divina. Ele viajou pelo mundo como um salvador. Também foi perseguido quando começou a assumir partido político, foi preso, levado a tribunal, em um deles escapuliu desaparecendo milagrosamente.
            Parece que ainda no século II e.c., ele já tinha se tornado uma lenda, quando provavelmente muitas histórias fabulosas foram acrescidas à sua tradição. Filóstrato pode ter lançado mão de algumas e acrescidos outras durante a composição da Vita Apollonii (Kofsky, 2000: 60 e Zimmerman, 2002: 79-80).

A historicidade de Apolônio

            As datas precisas do seu nascimento e da sua morte ainda são controvérsias entre os historiadores. Maria Dzielska sugere 40-120 e.c., outros autores preferem apenas mencionar que sua vida se desenrolou no primeiro século (Ogden: 2002: 61 e Zimmerman, 2002: 79).
Tal como no caso de Jesus, em Apolônio não existe sequer um registro contemporâneo por um autor de fora da sua própria tradição também. O registro mais próximo do nazareno é o do historiador judeu Flávio Josefo (37-100 e.c.), na obra Antiguidade dos Judeus (18.03.03), de 93 e.c., portanto cerca de seis décadas após a morte de Jesus. No caso de Apolônio, é o do retórico e satírico Luciano de Somasata (125-180 e.c) que vem a referência mais próxima, na obra satírica Alexander Sive Pseudomantis (Alexandre o Falso Profeta – um discípulo do discípulo de Apolônio), na qual Apolônio é retratado como um charlatão e mago depravado (Fowler, 1905: vol. II, 212-38 e Zimmerman, 2002: 79), portanto, algumas décadas após a morte do profeta de Tiana. Que este personagem existiu, parece difícil negar, agora o que intriga os historiadores e os pesquisadores é saber, assim como na vida de Jesus, o que nos seus relatos é mito e o que é história. Assim como existe um projeto “Em Busca do Jesus Histórico”, historiadores de Apolônio tentam fazer o mesmo, mesmo diante da menor quantidade de relatos preservados, o que torna a tarefa mais difícil. A inscrição exposta no museu de Adana, Turquia, pode ser uma prova material de que o seu culto foi florescente em algumas regiões do Império Romano (Jones, 1980: 190-4).
Epigrama de Apolônio de Tiana exposta no museu de Adana, Turquia
De modo que, a historicidade de ambos parece ser certa, as dúvidas persistem quanto ao tanto de mitos e de forjamentos foram acrescidos aos fatos históricos. Assim, por falta de material independente da tradição religiosa e de origem imparcial em ambos (Apolônio e Jesus), torna-se difícil saber o que Filóstrato alterou na vida de Apolônio, para fazê-lo igual e até mesmo superior a Jesus, do mesmo modo que é difícil saber o que os compositores dos evangelhos, canônicos e apócrifos, alteraram nos relatos da vida de Jesus, para coincidir com as profecias do Antigo Testamento, e com isso transmitir para a posteridade a ideia de que Jesus era o Messias esperado. Ou até mesmo, por outro lado, procuraram alterar os fatos para desvincular Jesus do Antigo Testamento, a fim de romper o elo com a tradição judaica, como foi o caso dos compositores dos evangelhos gnósticos, para com isso fazer de Jesus mais um sábio do que um salvador. Enfim, a prática de registro e a documentação eram muito precárias na Antiguidade, sobretudo nas regiões periféricas do Império Romano.

O sujo criticando o mau lavado e vice versa

            Sabemos pela história do Cristianismo que Lactâncio (240-320 e.c.) e Eusébio de Cesareia (263-339 e.c.) foram influentes na consolidação da ortodoxia cristã que triunfaria nos primeiros concílios. Ambos escreveram críticas contra Apolônio de Tiana em resposta às críticas a Cristo e aos cristãos feitas por Sossianus Hierócles (fl. 303 e.c.), governador romano da Bitínia quando a Grande Perseguição (303 e.c.) começou, em sua obra Amante da Verdade (Philalethes).
Estátua de Apolônio
Maaike Zimmerman entende que, se não fosse esta obra de Hierócles, Apolônio teria caído no esquecimento (Zimmerman, 2002: 80). O texto original foi perdido, mas as informações de seu conteúdo podem ser extraídas das reproduções de trechos em Divine Institutes de Lactâncio (Fletcher, 1885: 138-8) e em Against Hierocles (Contra Hieroclem) de Eusébio (Conybeare, 1912: vol. II, 484-605). Alguns autores suspeitam que Hierócles escreveu o Amante da Verdade na tentativa de estimular o culto pagão em algumas regiões do Império para com isso conter o avanço do Cristianismo. Suas críticas incluíam: “um ataque ao Novo testamento como estando repleto de contradições internas. Os apóstolos e os evangelistas eram primitivos, ignorantes e analfabetos que divulgaram mentiras. Hierócles atacou Pedro e Paulo em particular, Jesus era um vadio arruaceiro que foi cercado por uma gangue de novecentos ladrões. Os cristãos eram ingênuos e idiotas e sua fé irracional. Hierócles tenta minimizar a importância dos milagres que Jesus executou, embora ele não os negue. Ele apresenta ao leitor Apolônio de Tiana e o contrasta com Jesus, alegando que o primeiro realizou milagres que foram tão impressionantes quanto os de Jesus, ou até mesmo maiores. Mas, Apolônio manteve-se em um ar de modéstia, diferente das ostentações de Jesus com suas alegações de divindade. Ele afirma que os pagãos eram mais sábios que os cristãos, porque eles não entendiam Apolônio como um deus, apesar dos milagres que realizou, enquanto que os cristãos acreditavam que Jesus era deus por causa de um número de pequenos milagres” (Kofsky, 2000: 59, também: Ogden, 2002: 67-8).
            E mais adiante: “Hierócles condena os cristãos por seu exagerado louvor aos milagres de Jesus, os quais ele compara com aqueles executados por Apolônio de Tiana, tal com descrito por Filóstrato. Hierócles passa então a elogiar a obra de Filóstrato e as biografias anteriores de Apolônio, que ele vê como verdade histórica. Em contraste, as histórias sobre Jesus foram escritas por charlatões como Pedro e Paulo. Hierócles zomba da ingenuidade idiota dos cristãos que fundaram sua fé em falsos relatos, que prestam homenagem à magia e extraem conclusões irracionais quanto à divindade do homem” (Kofsky, 2000: 59 e Ogden, 2002: 67-8).
            A publicação de Amante da Verdade de Hierócles contribuiu para depreciar a imagem de Jesus e assim, por sua vez, aumentou o orgulho religioso dos pagãos. Com isso, teve uma influência intelectual que preparou o caminho para as grandes perseguições aos cristãos no final do século III e início do século VI.
Eusébio de Cesareia (263-339 e.c.)
            Por outro lado, Eusébio observa que as críticas de Hierócles não traziam nada de novo, pois eram reproduções literais de críticas de autores precedentes, sobretudo de Celso em A Verdadeira Doutrina e de Porfírio em Contra os Cristãos. Assim, o que Hierócles fez, na realidade, foi apenas reunir uma seleção de argumentos de seus predecessores contra Jesus e o Cristianismo, e sistematicamente justapôs a imagem lendária de Apolônio com Jesus e os evangelhos. Então, Eusébio preferiu escrever um tratado especialmente para refutar a comparação de Hierócles entre Apolônio e Jesus (Conybeare, 1912: vol. II, 487 e Kofsky, 2000: 60). Lactâncio desprezou a obra de Hierócles irrisoriamente e viu a comparação entre Jesus e Apolônio como banal, enquanto Eusébio a percebeu como um grave perigo (Kofsky, 2000: 63). Portanto, a principal intenção da obra Against Hierocles de Eusébio foi desfazer o paralelo traçado por Hierócles entre Jesus e Apolônio, pois para o autor cristão, Apolônio não foi nem sequer um filósofo, nem um homem de alto caráter moral e daí, certamente, não poderia ser comparado com Jesus (Kofsky, 2000: 66).
            Uma das principais preocupações de Eusébio é com os milagres de Apolônio. Ele os discute a fim de apontar as graves dúvidas quanto à sua veracidade. Ele alega que eles foram provavelmente inventados por seus biógrafos (Kofsky, 2000: 67). A crítica de Eusébio luta para minimizar a dimensão sobrenatural da Vida de Apolônio. Ele lança dúvidas sobre todos os milagres realizados por Apolônio, explicando muitos deles como atos de magia, cujos segredos foram aprendidos na Índia, assim argumenta a favor da sua inferioridade. Ainda mais, Apolônio realizou milagres através de um demônio. Eusébio faz um julgamento de cada um dos milagres de Apolônio e os atribui a vários demônios. Ele conclui que todos os milagres foram realizados através de demônios. Eusébio, então, traça a definitiva conclusão que Apolônio era um mago, que era auxiliado por demônios (Conybeare, 1912: vol. II, 565-7 e Kofsky, 2000: 67-8).
           
Combate entre crendices

            Bem, o que extraímos desta discussão acima é que cada lado usa seus argumentos, tanto para acusar como para se defender, porém os mesmos são sempre com base na crença religiosa de cada autor. Um lado acusa o outro lado, a partir de sua crença preferencial e para se defender utiliza-se também da crença. Algo como tentar “apagar o fogo com fogo e secar a água com água”. Enfim, um duelo de crenças. De modo que, nos faz lembrar a frase popular: “o sujo criticando o mau lavado” e vice versa.
De uma maneira geral, quando analisamos criticamente esta discussão entre Eusébio e Hierócles desde uma perspectiva de fora da apaixonada perspectiva religiosa, conseguimos perceber aí um acalorado combate, cujas armas são os argumentos e as munições as crenças. Por mais que os argumentos (armas) sejam coerentes em si mesmos, estes são supridos por crendices (munições), que resultam em nenhum efeito letal sobre o inimigo, uma vez que, de ambos os lados, as munições são constituídas da mesma natureza crédula. É um tiroteio com um grande espetáculo retórico, mas sem nenhuma consequência probatória. Algo como combater uma crendice ingênua com outra crendice ingênua. Nenhuma parte é capaz de provar suficientemente que sua crença é mais crível que a outra adversária, pois ambas têm a mesma sustentação: a credulidade. O exemplo nos faz lembrar os filmes de guerra, cujas armas (argumentos) são muito sofisticadas, mas as munições (crenças) são de festim, ou seja, sem nenhum efeito letal, apenas espetáculo.

Bibliografia

BROWN, Keven. Hermes Trismegistrus and Apollonius of Tyana in the Writings of Baha’u’llah em Revisioning the Sacred: New Perspectives on a Baha’i Theology. Jack Mclean (ed.), Studies in the Babi and Baha’i Religions, vol. 8, Los Angeles: Kalimat Press, 1997, p. 153-87.
CONYBEARE, F. C. (tr.) Filostratus: The Life of Apollonius of Tyana, vols. I and II. Loeb Classical Library, vols. 16 and 17. Cambridge: Harvard University Press, 1912.
__________________ (tr.) The Treatise of Eusebius Agaisnt the Life of Apollonius by Philostratus - by Eusebius. Loeb Classical Library, vol. 17. Cambridge: Harvard University Press, 1912, vol. II, p. 484-605.
DZIELSKA, Maria. Apollonius of Tyana in Legend and History, Roma: L’erma di Bretschneider, 1986.
FLETCHER, William (tr.) Divine Institutes by Lactantius em Early Christian Fathers – Ante-Nicene Fathers, vol. VII, Fathers of the Third and Fourth Centuries. James Donaldson and Alexander Roberts (eds.). Edimburg: T&T Clark, 1885, p. 01-329. Reprint Grand Rapids: Wm. B. Eerdman Publishing Company.
FOWLER, H. W. and F. G. Fowler (trs.). Alexander the Oracle-monger (Alexander Sive Pseudomantis) em The Works of Lucian of Samosata, vol. II. Oxford: Clarendon Press, 1905, p. 212-38.
JONES, C. P. An Epigram on Apollonius of Tyana em The Journal of Hellenic Studies, vol. 100, Centenary Issue, 1980, p. 190-4.
KOFSKY, Aryeh. Eusebius of Caesarea Against Paganism. Boston/Leiden: Brill Academic Publishers, 2000, p. 58-71.
MEAD, George R. S. Apollonius of Tyana. London/Benares: Theosophical Publishing Society, 1901.
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ZIMMERMAN, Maaike. The Conception of Saintliness in Philostratus’ Life of Apollonius em The Invention of Saintliness, Anneke B. Mulder-Bakker (ed.). London: Routledge, 2002, p. 79-92.

Sites sobre Apolônio de Tiana
em inglês:
- Artigo de Maria Dzielska: http://www.history.snn.gr/apollonius.html
- Apolônio como encarnação de Jesus: http://www.einterface.net/gamini/tyana.html

em português:
- Sociedade das Ciências Antigas: http://www.sca.org.br/biografias/ApolonioTiana.pdf