Octavio da
Cunha Botelho
(Obs: este estudo está disponível em versão mais atualizada em:
http://observadorcriticodasreligioes.wordpress.com/2014/01/02/apolonio-de-tiana-e-a-manipulacao-para-transforma-lo-no-rival-de-jesus-ou-no-cristo-pagao/)
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Moeda com a imagem de Apolônio |
A tradição do seu culto, a qual foi
florescente do século II ao século IV e.c., não sobreviveu até os dias atuais. Porém,
uma grande dose de admiração por este controvertido personagem ainda é
cultivada pelos esoteristas, pelos teósofos, pelos adeptos da Rosa Cruz e pelos
maçons. A admiração pode chegar ao delírio de até conceber que Apolônio foi uma
reencarnação de Jesus. Ora reconhecido como um rival de Jesus, ora como um
‘cristo pagão’, seu ensinamento e sua vida em muitos episódios se assemelham
aos de Jesus: curas, ressuscitamento de mortos, proclamação de profecias,
realização de milagres, confronto com as autoridades romanas, rejeição aos
sacrifícios sanguinários, caridade aos pobres, prisão e julgamento por tribunal
romano, ascensão ao céu e aparição após a morte. Se a intenção do autor da sua
biografia (Vita Apollonii Tyanensis)
foi comparar ou, até mesmo, superar as façanhas de Jesus, ainda é uma polêmica
entre os pesquisadores. Não aparece nenhuma menção do Cristianismo nesta obra. Apolônio
se tornou uma das últimas figuras heroicas da religião pagã, e como tal, um
rival natural de Jesus na luta entre paganismo e Cristianismo. Já para os adeptos
do sincretismo, ele foi o ‘Cristo Pagão’.
O que podemos afirmar com mais segurança
é que ambos os relatos, de Apolônio e de Jesus, duas figuras quase
contemporâneos, são justaposições de mitos e de fatos históricos. A diferença é
que, a quantidade de material preservado deste último é muito maior, enquanto
que, o principal relato da vida e dos ensinamentos de Apolônio foi registrado
na Vita Apollonii Tyanensis (Vida de
Apolônio de Tiana), de Flávio Filóstrato (170-247 e.c), publicada em 217 e.c. Os
outros relatos anteriores, mencionados pelo autor para o uso na composição da biografia,
foram perdidos.
No entanto, a preservação de maior
quantidade de textos de uma figura religiosa, não significa, consequentemente,
que esteja assegurada a historicidade completa ou da maior parte dos relatos de
referido personagem, pois quanto maior o número de relatos, maior poderá ser o
número de lendas e de ficções acrescidas nos relatos, o que é muito comum na cultura
religiosa, uma vez que o ímpeto pela exaltação e pelo embelezamento é um hábito
compulsivo dos autores nos momentos da composição de textos religiosos. Em
outras palavras, quanto maior a quantidade de textos, maior a produção
delirante, e este último parece ser o caso do Cristianismo. Enfim, o que mais
importa é o grau de historicidade dos relatos ou das provas documentais e
materiais.
A Vida de Apolônio de
Tiana segundo Filóstrato
Grande parte do que se conhece sobre
este místico é extraído da biografia romantizada intitulada Vita Apollonii Tyanensis
(Vida de Apolônio de Tiana), de autoria de Flávio Filóstrato (170-247 e.c.), um
erudito e sofista da corte dos Saveri, cuja composição foi empreendida após o
pedido de Julia Domna, esposa de Sétimo Severo e mãe de Caracalla, para que
este erudito desse um formato literário para uma coleção de anotações (hypomnemata) feitas por um discípulo e companheiro
de viagem de Apolônio chamado Damis (Conybeare, 1912: vol. I, 11; Dzielska,
1986: 19 e Zimmerman, 2002: 79). Ela lhe
entregou as memórias para tal tarefa, as quais ela tinha conseguido com um
parente de Damis, porém Julia Domna faleceu antes da publicação da Vita Apollonii em 217 e.c. Aconteceu
neste período uma onda de admiração por Apolônio de Tiana na corte dos Saveri. Caracalla
visitou Tiana e aumentou o santuário do culto a Apolônio. Alexandre Severo
mantinha um altar (lararium) com
estátuas de Abraão, Orfeu, Cristo e Apolônio de Tiana (Zimmerman, 2002: 79). A
historicidade de Damis e a veracidade da existência destas memórias (hypomnemata) são objetos de discussão
entre os pesquisadores. Maria Dzielska entende que ambas são invenções da
imaginação de Filóstrato, a fim de embelezar a biografia (Dzielska, 1986: 19s).
Apolônio é retratado na biografia de
Filóstrato como um filósofo neo-pitagórico, nascido na cidade de Tiana, na
Capadócia, uma região da atual Turquia. Como tal, ele rejeitava vinho,
casamento, carne e condenava o sacrifício de animais. Em sua emulação do seu
mestre (Pitágoras), Apolônio caminhava descalço com barba e cabelos compridos.
O início de sua carreira foi como um médico e curandeiro no templo de Asclépio
na Cilícia, onde ficou famoso por sua capacidade de cura (Odgen: 2002, 61). Em
seguida viajou muito, esteve na Pérsia, na Índia, no Egito, na Grécia, em Roma,
na Espanha e em muitas cidades do Oriente Médio (Dzielska, 1986: 51-84). Por
todos os lugares onde passou, ele revolucionou os cultos, bem como foi admirado
e profetizado como alguém destinado a ter uma missão divina. Ele viajou pelo
mundo como um salvador. Também foi perseguido quando começou a assumir partido
político, foi preso, levado a tribunal, em um deles escapuliu desaparecendo
milagrosamente.
Parece que ainda no século II e.c.,
ele já tinha se tornado uma lenda, quando provavelmente muitas histórias
fabulosas foram acrescidas à sua tradição. Filóstrato pode ter lançado mão de algumas
e acrescidos outras durante a composição da Vita
Apollonii (Kofsky, 2000: 60 e Zimmerman, 2002: 79-80).
A historicidade de
Apolônio
As datas precisas do seu nascimento
e da sua morte ainda são controvérsias entre os historiadores. Maria Dzielska
sugere 40-120 e.c., outros autores preferem apenas mencionar que sua vida se desenrolou
no primeiro século (Ogden: 2002: 61 e Zimmerman, 2002: 79).
Tal como no caso de Jesus, em Apolônio
não existe sequer um registro contemporâneo por um autor de fora da sua própria
tradição também. O registro mais próximo do nazareno é o do historiador judeu
Flávio Josefo (37-100 e.c.), na obra Antiguidade
dos Judeus (18.03.03), de 93 e.c., portanto cerca de seis décadas após a
morte de Jesus. No caso de Apolônio, é o do retórico e satírico Luciano de
Somasata (125-180 e.c) que vem a referência mais próxima, na obra satírica Alexander Sive Pseudomantis (Alexandre o
Falso Profeta – um discípulo do discípulo de Apolônio), na qual Apolônio é
retratado como um charlatão e mago depravado (Fowler, 1905: vol. II, 212-38 e Zimmerman,
2002: 79), portanto, algumas décadas após a morte do profeta de Tiana. Que este
personagem existiu, parece difícil negar, agora o que intriga os historiadores
e os pesquisadores é saber, assim como na vida de Jesus, o que nos seus relatos
é mito e o que é história. Assim como existe um projeto “Em Busca do Jesus
Histórico”, historiadores de Apolônio tentam fazer o mesmo, mesmo diante da
menor quantidade de relatos preservados, o que torna a tarefa mais difícil. A
inscrição exposta no museu de Adana, Turquia, pode ser uma prova material de
que o seu culto foi florescente em algumas regiões do Império Romano (Jones,
1980: 190-4).
Epigrama de Apolônio de Tiana exposta no museu de Adana, Turquia |
De modo que, a historicidade de ambos
parece ser certa, as dúvidas persistem quanto ao tanto de mitos e de forjamentos
foram acrescidos aos fatos históricos. Assim, por falta de material
independente da tradição religiosa e de origem imparcial em ambos (Apolônio e
Jesus), torna-se difícil saber o que Filóstrato alterou na vida de Apolônio,
para fazê-lo igual e até mesmo superior a Jesus, do mesmo modo que é difícil
saber o que os compositores dos evangelhos, canônicos e apócrifos, alteraram nos
relatos da vida de Jesus, para coincidir com as profecias do Antigo Testamento,
e com isso transmitir para a posteridade a ideia de que Jesus era o Messias
esperado. Ou até mesmo, por outro lado, procuraram alterar os fatos para
desvincular Jesus do Antigo Testamento, a fim de romper o elo com a tradição
judaica, como foi o caso dos compositores dos evangelhos gnósticos, para com
isso fazer de Jesus mais um sábio do que um salvador. Enfim, a prática de
registro e a documentação eram muito precárias na Antiguidade, sobretudo nas
regiões periféricas do Império Romano.
O sujo criticando o mau
lavado e vice versa
Sabemos pela história do
Cristianismo que Lactâncio (240-320 e.c.) e Eusébio de Cesareia (263-339 e.c.)
foram influentes na consolidação da ortodoxia cristã que triunfaria nos
primeiros concílios. Ambos escreveram críticas contra Apolônio de Tiana em resposta
às críticas a Cristo e aos cristãos feitas por Sossianus Hierócles (fl. 303
e.c.), governador romano da Bitínia quando a Grande Perseguição (303 e.c.)
começou, em sua obra Amante da Verdade
(Philalethes).
Maaike Zimmerman entende que, se não fosse esta obra de Hierócles, Apolônio teria caído no
esquecimento (Zimmerman, 2002: 80). O texto original foi perdido, mas as
informações de seu conteúdo podem ser extraídas das reproduções de trechos em Divine Institutes de Lactâncio
(Fletcher, 1885: 138-8) e em Against
Hierocles (Contra Hieroclem) de
Eusébio (Conybeare, 1912: vol. II, 484-605). Alguns autores suspeitam que
Hierócles escreveu o Amante da Verdade
na tentativa de estimular o culto pagão em algumas regiões do Império para com
isso conter o avanço do Cristianismo. Suas críticas incluíam: “um ataque ao
Novo testamento como estando repleto de contradições internas. Os apóstolos e
os evangelistas eram primitivos, ignorantes e analfabetos que divulgaram
mentiras. Hierócles atacou Pedro e Paulo em particular, Jesus era um vadio
arruaceiro que foi cercado por uma gangue de novecentos ladrões. Os cristãos
eram ingênuos e idiotas e sua fé irracional. Hierócles tenta minimizar a
importância dos milagres que Jesus executou, embora ele não os negue. Ele
apresenta ao leitor Apolônio de Tiana e o contrasta com Jesus, alegando que o
primeiro realizou milagres que foram tão impressionantes quanto os de Jesus, ou
até mesmo maiores. Mas, Apolônio manteve-se em um ar de modéstia, diferente das
ostentações de Jesus com suas alegações de divindade. Ele afirma que os pagãos
eram mais sábios que os cristãos, porque eles não entendiam Apolônio como um
deus, apesar dos milagres que realizou, enquanto que os cristãos acreditavam
que Jesus era deus por causa de um número de pequenos milagres” (Kofsky, 2000:
59, também: Ogden, 2002: 67-8).
Estátua de Apolônio |
E mais adiante: “Hierócles condena
os cristãos por seu exagerado louvor aos milagres de Jesus, os quais ele
compara com aqueles executados por Apolônio de Tiana, tal com descrito por
Filóstrato. Hierócles passa então a elogiar a obra de Filóstrato e as
biografias anteriores de Apolônio, que ele vê como verdade histórica. Em
contraste, as histórias sobre Jesus foram escritas por charlatões como Pedro e
Paulo. Hierócles zomba da ingenuidade idiota dos cristãos que fundaram sua fé
em falsos relatos, que prestam homenagem à magia e extraem conclusões
irracionais quanto à divindade do homem” (Kofsky, 2000: 59 e Ogden, 2002: 67-8).
A publicação de Amante da Verdade de Hierócles contribuiu para depreciar a imagem
de Jesus e assim, por sua vez, aumentou o orgulho religioso dos pagãos. Com
isso, teve uma influência intelectual que preparou o caminho para as grandes
perseguições aos cristãos no final do século III e início do século VI.
Eusébio de Cesareia (263-339 e.c.) |
Uma das principais preocupações de
Eusébio é com os milagres de Apolônio. Ele os discute a fim de apontar as
graves dúvidas quanto à sua veracidade. Ele alega que eles foram provavelmente
inventados por seus biógrafos (Kofsky, 2000: 67). A crítica de Eusébio luta
para minimizar a dimensão sobrenatural da Vida de Apolônio. Ele lança dúvidas
sobre todos os milagres realizados por Apolônio, explicando muitos deles como
atos de magia, cujos segredos foram aprendidos na Índia, assim argumenta a
favor da sua inferioridade. Ainda mais, Apolônio realizou milagres através de
um demônio. Eusébio faz um julgamento de cada um dos milagres de Apolônio e os atribui
a vários demônios. Ele conclui que todos os milagres foram realizados através
de demônios. Eusébio, então, traça a definitiva conclusão que Apolônio era um
mago, que era auxiliado por demônios (Conybeare, 1912: vol. II, 565-7 e Kofsky,
2000: 67-8).
Combate entre crendices
Bem, o que extraímos desta discussão
acima é que cada lado usa seus argumentos, tanto para acusar como para se
defender, porém os mesmos são sempre com base na crença religiosa de cada
autor. Um lado acusa o outro lado, a partir de sua crença preferencial e para
se defender utiliza-se também da crença. Algo como tentar “apagar o fogo com
fogo e secar a água com água”. Enfim, um duelo de crenças. De modo que, nos faz
lembrar a frase popular: “o sujo criticando o mau lavado” e vice versa.
De uma maneira geral, quando analisamos criticamente
esta discussão entre Eusébio e Hierócles desde uma perspectiva de fora da
apaixonada perspectiva religiosa, conseguimos perceber aí um acalorado combate,
cujas armas são os argumentos e as
munições as crenças. Por mais que os argumentos (armas) sejam coerentes em
si mesmos, estes são supridos por crendices (munições), que resultam em nenhum
efeito letal sobre o inimigo, uma vez que, de ambos os lados, as munições são
constituídas da mesma natureza crédula. É um tiroteio com um grande espetáculo
retórico, mas sem nenhuma consequência probatória. Algo como combater uma
crendice ingênua com outra crendice ingênua. Nenhuma parte é capaz de provar
suficientemente que sua crença é mais crível que a outra adversária, pois ambas
têm a mesma sustentação: a credulidade. O exemplo nos faz lembrar os filmes de
guerra, cujas armas (argumentos) são muito sofisticadas, mas as munições
(crenças) são de festim, ou seja, sem nenhum efeito letal, apenas espetáculo.
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sobre Apolônio de Tiana
em
inglês:
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Rosacrucian Digest: http://www.rosicrucian.org/publications/digest/digest1_2009/05
em
português:
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