Octavio da Cunha Botelho
(Obs: este estudo está disponível em versão mais atualizada em:
http://observadorcriticodasreligioes.wordpress.com/2014/01/02/conheca-os-motivos-para-o-encolhimento-dos-hare-krishnas/)
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Sri Chaitanya acompanhado de seus devotos |
Os mais velhos que vivenciaram os anos 1960 e 1970 do Movimento Contracultura, ao lerem este artigo, reconhecerão logo o significado do Movimento Hare Krishna naquele contexto, já os jovens poderão achá-lo interessante e instrutivo, mas para entender de verdade o que representou o Movimento Hare Krishna para aquela época, terão de pedir a seus pais para contar-lhes com tempo e paciência. Proveniente de uma seita vishnuísta difundida antes apenas regionalmente na Índia, esta doutrina foi trazida para o Ocidente nos anos 1960 para, em pouco tempo, se tornar o mais popular e rico dos Novos Movimentos Religiosos. A popularidade e visibilidade chegaram a tanto que pareciam que seus adeptos eram ubíquos. Eles estavam sempre nas ruas, nas praças, nos ônibus e nos aeroportos, das grandes cidades, distribuído seus livros, revistas e incenso em troca de doações em dinheiro, bem como não eram esquecidos nos meios de comunicações: jornais, revistas, televisão, rádio e cinema; quer como notícia ou como alvo de zombaria. Com o tempo o Movimento se transformou na imagem da religião hindu no Ocidente. Já seu caráter exótico, para os ocidentais naturalmente, atraiu artistas e intelectuais para o seu séquito.
Assim, o estudo abaixo pretende
apontar os motivos que levaram a diminuição da visibilidade deste Movimento nos
dias de hoje, bem como a sua recente transformação no sentido de tornar-se, em
contradição com a sua proposta inicial, uma religião étnica, em virtude do crescente
aumento do ingresso de imigrantes hindus nas suas comunidades e da frequência
dos mesmos nos seus templos, sobretudo nos países de língua inglesa onde esta
imigração é numerosa.
Religião proselitista e
religião hereditária
Dentre as várias maneiras de classificar
as religiões, uma delas é dividi-las quanto à sua admissão de novatos, ou seja,
as que aceitam convertidos, por isso estão abertas ao ingresso de qualquer
pessoa, estas são conhecidas como religiões proselitistas. Assim, são consequentemente
as com maior possibilidade de crescimento do seu séquito, em vista do ímpeto
missionário e propagandista. As religiões proselitistas mais conhecidas são: o
Cristianismo, o Islamismo, o Budismo, o Taoismo e o Sikhismo. Por outro lado,
existem as religiões que não aceitam convertidos, seu ingresso somente acontece
através da descendência familiar, ou seja, para ser um adepto desta modalidade
de religião é necessário que seja filho ou filha de um casal desta mesma
religião. Esta é a que é conhecida como religião hereditária, cujos exemplos
mais conhecidos são: o Hinduísmo, o Jainismo, o Zoroastrismo e algumas
correntes do Judaísmo. Por exemplo, para ser um hindu, é necessário que seja
filho ou filha de um casal hindu, que automaticamente pertença a qualquer uma
das castas e a um dos estágios de vida do hindu (varnashrama dharma); logo, não é possível se tornar um hindu
através da conversão. Entretanto, desde alguns poucos séculos para cá começaram
a surgir excepcionais movimentos religiosos na Índia que extraem as suas
doutrinas e as suas práticas do Hinduísmo e, ao mesmo tempo, aceitam
convertidos, rompendo assim o requisito da hereditariedade e a exigência de
pertencer a uma casta (varna: sudra,
vaishya, kshatriya e brâmane), ou de estar situado em algum dos quatro
estágios da vida (ashrama: brahmacharin,
grhasthya, vanaprastha e samnyasin) do hindu.
Agora, a razão para a explicação acima é que o
Movimento Hare Krishna se enquadra
neste último exemplo, visto que suas doutrinas e suas práticas de bhakti yoga (yoga devocional) são comuns com o Hinduísmo tradicional, porém a
instituição aceita qualquer novato, com isso desrespeita o sistema de castas e
dos estágios da vida, daí o motivo que o levou a alcançar propagação mundial.
Os seis principais
cultos do Hinduísmo
Imagem do deus Shiva |
Apesar da habitual insistência dos
hindus em assegurarem a unidade do Hinduísmo, estudos crítico-históricos
apontam que o que denominamos de Hinduísmo atualmente é, na realidade, uma
reunião de antigas tradições com pontos em comum e outros em contraste, mais do
uma religião unificada propriamente. Dentre os tantos cultos que se juntaram
para formarem o que se denomina hoje de Hinduísmo, seis deles sobresaem em
popularidade, os quais são denominados coletivamente como os shanmatas (os seis principais cultos de
adoração), que são:
1)
o culto shakta (adoração da energia
universal – Shakti),
2)
o culto ganapatya (adoração do deus Ganesha, também conhecido como Ganapati),
3)
o culto kaumara (adoração do deus Kumara, o qual também recebe os nomes
de: Skanda, Subramanya, Karthikeya e Muruga),
4)
o culto saura (adoração do deus-sol Surya),
5)
o culto shaiva (adoração do deus Shiva) e
6)
o culto vaishnava (adoração do deus Vishnu).
Dentre estes, os dois últimos, isto
é, os cultos shaiva (shivaista) e o vaishnava (vishnuista) são os mais
populares, portanto universalmente praticados na Índia hoje (Klostermaier,
2000: 80-187). Enfim, é da tradição deste último, o culto vishnuista (vaishnava), adoração ao deus Vishnu, que o Movimento Hare Krishna se origina, com a peculiar
diferença na maior ênfase na adoração de uma das encarnações (avatars) de Vishnu, Sri Krishna,
atribuída pelo fundador da tradição gaudiya
vaishnava.
A origem do Movimento Hare Krishna
Para os muitos ocidentais que não
conhecem as tradições antigas da Índia, a exótica International Society for Krishna Consciousnes (ISKCON), mais conhecida
popularmente como Movimento Hare Krishna,
parece uma recente e artificial adaptação de tradições hindus, intencionalmente
destinada a provocar o sentimento de exotismo nos ocidentais, sem nenhuma
linhagem tradicional. Também, outros pensam que suas doutrinas e suas práticas
representam o Hinduísmo como um todo. No entanto, a realidade é diferente, a origem
do movimento se encontra numa antiga tradição vishnuísta (culto ao deus Vishnu) conhecida como tradição Gaudiya Vaishnava, iniciada nos estados
de Bengala e de Orissa, Índia, no século XVI e.c., por um santo devoto do deus Krishna conhecido como Sri Chaitanya Mahaprabhu (1486-1533). Diferente
das outras interpretações hindus, Chaitanya
elevou Krishna para o mais alto nível
no panteão hindu, contrariando os ortodoxos que o consideravam como uma avatar (encarnação divina) dentre outras
de Vishnu. Ademais, contrariando os
brâmanes ortodoxos, que só permitiam que os textos sagrados fossem lidos no
Sânscrito, ele incentivou seus discípulos a traduzi-los para a língua local, o
Bengalês, a fim de que sejam lidos por mais devotos, algo semelhante ao que fez
também Martinho Lutero com a Bíblia, ambos foram contemporâneos no século XVI,
bem como foi um dos primeiros santos indianos a abrir a oportunidade de
adoração a Sri Krishna aos devotos
não hindus. Suas biografias relatam que alguns dos seus discípulos mais
próximos eram mulçumanos (Dasgupta, 1975: 384s e Elkman, 1986: 01-20).
Sri Baktivedanta Prabhupada, fundador |
Mais precisamente, o Movimento Hare Krishna é a ramificação ocidental de
um centro missionário da religião gaudiya
vaishnava denominado Gaudiya Math,
fundado por Srila Bhaktisiddhanda
Saraswati Thakura, em 1920, na
cidade de Mayapura, no estado de
Bengala, Índia. Quando da morte do seu fundador em 1937, já existiam 64 missões
gaudiyas sob a direção do Gaudiya Math de Mayapura. O qual, por sua vez, foi um desdobramento da Gaudiya Vaishnava Mission, fundada em 1886 por Swami
Bhaktivinoda Thakura, pai de Srila
Bhaktisiddhanta Saraswati Thakura. O primeiro missionário enviado ao
Ocidente foi Swami Bon Maharaj, logo
antes da Segunda Guerra Mundial, porém seu giro pela América e Europa não foi
capaz de atrair o interesse de muitos ocidentais (Klostermaier, 2000: 278). O
movimento decolou mesmo no Ocidente a partir da chegada de Sri Bhaktivedanta Prabhupada, um ex-vendedor de remédios e depois
proprietário de loja, educado numa escola inglesa em Bengala, o qual, aos 59
anos, deixou sua esposa e seus filhos com o seu irmão a fim de se tornar um
renunciante (samnyasin). Ele dedicou muitas horas traduzindo textos de Sri Krishna para o inglês. Então, aos 69
anos de idade, mediante a sugestão do seu guru, ele desembarcou no porto de
Nova York em 19 de Setembro de 1965, com a mala repleta de traduções inglesas
dos textos vaishnavas, com o objetivo
de divulgar a doutrina gaudiya vaishnava
no Ocidente. Certamente ele não fazia a menor ideia de que, em poucos anos, a
instituição religiosa que fundou no ano seguinte, 1966, a International Society for Krishna Consciousness (ISKCON), apelidada
de Movimento Hare Krishna, se
transformaria rapidamente, graças ao seu ímpeto missionário e propagandista,
associado ao perspicaz uso da estratégia de propaganda da cultura ocidental, na
mais difundida instituição de origem indiana no mundo (Shinn, 1994; Klostermaier,
2000: 277-8; Lewis, 2001: 214s; Rochford Jr. 2005: 101s e 2007: 09s).
O exotismo dos Hare Krishnas
Quando
começaram a se popularizarem no Ocidente, as pessoas aqui os consideravam muito
exóticos, para alguns eles eram até cômicos. Vistos pelas ruas das cidades com
suas túnicas cor de laranja, com a cabeça raspada e apenas um rabicho (sikha) atrás, com a cinza sagrada (vibhuti) na testa, tocando o mrdanga (tambor) e os címbalos, bem como
dançando ao canto do Mahamantra “Hare Krishna Hare Krishna, Krishna Krishna,
Hare Hare; Hare Rama Hare Rama, Rama Rama, Hare Hare” e distribuindo
varetas de incenso, revistas e livros da organização em troca de doações em
dinheiro, esta prática é denominada pelo Movimento como sankirtan, diziam que aquele trabalho era para sobreviverem, mas
que, na realidade, era para enriquecer a instituição, que se tornou milionária,
daí que eles foram tema de zombarias pela imprensa, nos filmes, nos programas
humorísticos, etc. No entanto, foi exatamente este exotismo que auxiliou a
rápida disseminação do movimento. De mãos dadas com a rebeldia do Movimento
Contracultura dos anos 1960 e 1970, visto que ambos os movimentos depreciavam
muitos dos valores da cultura ocidental, em favor de uma nova visão de mundo e de
um novo estilo de vida, o movimento cresceu ao ponto de se tornar, durante os
anos acima, o mais popular e rico dentre os Novos Movimentos Religiosos. Muitos
dos primeiros convertidos norte americanos ao Movimento eram hippies.
O auge da popularidade
Nos anos 1970, os Hare Krishnas alcançaram o clímax da sua
visibilidade, eles se tornaram quase que ubíquos. Eram sempre mencionados nos
meios de comunicação, muitas vezes como alvo de zombaria. Os monges eram vistos
com frequência abordando pessoas nas ruas, nas praças, no interior dos ônibus e
nos aeroportos das grandes cidades, oferecendo livros, revistas e incenso em
troca de doações. Muitas destas abordagens chegavam a ser incômodas e
constrangedoras, em razão da petulância e da insistência. Nenhuma outra
atividade do Movimento foi mais criticada do que esta. Petulantes e insistentes
como eram, o resultado foi que esta atividade (a sankirtan) enriqueceu a instituição ao ponto de reunir um
patrimônio milionário que somava numerosas comunidades, templos, restaurantes,
fazendas e colégios internos espalhados por quase todos os países do mundo. Este
trabalho de distribuição em troca de doações (sankirtan) era feito pelos devotos sem remuneração e terminou no
início dos anos 1980 com a intensificação das acusações de exploração de
trabalho escravo (Rochford Jr., 2007: 13).
George Harrison com monges Hare Krishnas |
O surpreendente é que muitos
intelectuais e artistas se tornaram simpatizantes do Movimento e alguns, até
mesmo, adeptos. Uma conversão de celebridade muito notada foi a do Beatle
George Harrison (1943-2001), cuja devoção por Sri Krishna foi colocada na música My Sweet Lord (1970), cujo disco compacto simples foi o mais
vendido na Grã Bretanha em 1971. Diz-se que ele permaneceu devoto até o último
dia de sua vida. No cinema, a aparição mais impressionante foi no filme Hair (1979) do diretor tcheco Milos
Forman (1932- ), num episódio psicodélico quando é celebrada uma cerimônia de
casamento numa igreja cristã, mas o ritual, o figurino, a música e a dança são
particularmente hindus, inspirados, sobretudo, no culto de Sri Krishna. No final da cerimônia, os convidados saem da igreja
dançando atrás de um grupo de monges Hare
Krishna, que caminhava cantando e dançando ao som do Mahamantra. As conversões de celebridades e de pessoas abastadas
trouxeram muitas doações, com as quais o Movimento se enriqueceu ainda mais.
Em suma, o Movimento Hare Krishna foi indubitavelmente o
culto oriental mais popular dos anos 1960 e 1970, apesar do bombardeio de
críticas pela imprensa e da perseguição difamatória dos movimentos anticultos
da época, esta última promovida principalmente pelos cristãos.
O início do abalo
O estremecimento das estruturas do
Movimento teve início logo após a morte de seu fundador, Sri Bhaktivedanta Pabhupada, em 1977. Nas palavras de E. Burke
Rochforf Jr: “Logo após a morte de Prabhupada,
os Hare Krishnas enfrentaram
contínuos problemas de sucessão. Questões surgiram quase imediatamente sobre se
sucessores de Prabhupada na verdade
tinham sido iniciados por ele para atuarem como gurus na sua ausência. Dentro
de uma década, a maioria dos onze gurus sucessores de Prabhupada foram obrigados a sair do movimento por causa de
transgressões e/ou comportamento ilegal. Em seguida, um número de reformas foi
implantado para limitar a volatilidade da instituição dos gurus, os Hare Krishnas agora têm aproximadamente
cem gurus iniciando discípulos pelo mundo. Apesar das mudanças, contudo, a
controvérsia persiste sobre o papel e a autoridade dos gurus Hare Krishnas e a instituição dos gurus
como um todo” (Rochford Jr., 2005: 103).
Tal como a afirmação acima deixa
clara, as estruturas de autoridade do Movimento Hare Krishna tornaram-se enfraquecidas e ameaçadas nos anos que
seguiram a morte do seu fundador. Isto resultou no contínuo conflito
institucional e no aparecimento de um movimento insurgente dentro da própria
organização, que buscou redefinir a instituição dos gurus e substituir os
líderes existentes.
A avalanche de
processos judiciais
Os conflitos internos de autoridade
foram apenas o começo do abalo, em seguida surgiram problemas ainda mais
graves. Com a desunião e o subsequente enfraquecimento do Movimento, uma onda
de descrédito levou muitos adeptos históricos a abandonarem as comunidades, os
quais, individualmente ou coletivamente, solicitaram na Justiça norte
americana, através de seus advogados, indenizações milionárias por exploração
de trabalho escravo, por lavagem cerebral, por abuso sexual de crianças, por
maus tratos, por castidade forçada, por inibição da liberdade de expressão, por
cárcere privado e por abuso de trabalho infantil.
Destas ações judiciais mencionadas
acima, as que mais abalaram a reputação e a estrutura da instituição foram as ações
promovidas pelos ex-alunos dos colégios internos para crianças (gurukulas), alegando abuso infantil. O
fato é que, à medida que as comunidades Hare
Krishnas cresceram em número de membros, sentiu-se a necessidade de criar
escolas especiais para a apropriada educação das crianças. “Swami Prabhupada afirmou que os devotos
deveriam estar com o tempo livre para vender livros devocionais e efetuar
outros trabalhos para o culto. De modo que seus filhos deveriam ser enviados
para colégios internos, assim eles não ficariam na dependência de seus pais,
mas ao invés disto, se tornariam a próxima geração de devotos leais.
Consequentemente, onze escolas estavam operando nos EUA no fim dos anos 1970,
frequentemente conduzidas por professores e equipe administrativa precariamente
selecionados e sem treinamento” (Singer, 2003: 348). A história começou assim.
“a primeira gurukula formal foi
fundada em Dallas em 1971, e permaneceu a única escola deste gênero no
movimento até 1976, quando as autoridades estaduais obrigaram-na a fechar. Na
época do fechamento, a escola tinha aproximadamente cem alunos, a maioria
estava entre as idades de quatro e oito anos” (Rochford Jr., 2007: 75). Mas os Hare Krishnas eram insistentes e “em
1975, com a extinção da escola de Dallas, gurukulas
foram abertas em Los Angeles e em New
Vrndavan, e entre 1975 e 1978, onze escolas Hare Krishnas foram abertas nos EUA. Em 1976, a Bhaktivedanta Swami International Gurukula
começou a aceitar adolescente como alunos em Vrndavan, Índia. Uma vez que os Hare
Krishnas tornaram-se um movimento global nos fins dos anos 1970 e início
dos anos 1980, gurukulas foram abertas
na França, na Austrália, na África do Sul, na Inglaterra e na Suécia, e em 1980
e 1981, escolas regionais foram abertas em Lake Huntington, Nova York, e
Califórnia central respectivamente” (Rochford Jr., 2007: 75).
Monges Hare Krishnas oferecendo livros na rua |
Relatos de jovens, pais e
educadores, que posteriormente abandonaram o Movimento, confirmaram que as
crianças que frequentavam as gurukulas
sofreram abuso sexual, psicológico e físico. O número de vítimas não pode ser conhecido com
muita exatidão, mas uma pesquisa não aleatória feita em 1998 pelo Ministério da
Juventude do Movimento Hare Krishna,
com 115 ex-alunos, então nas idades entre 15 e 34 anos, descobriu que 25%
tinham sido sexualmente abusados por mais de um ano; 29% relataram que eles
experimentaram abuso sexual por um período de um mês a um ano. Quanto ao abuso
físico, 31% indicaram que eles tinham sido repetidamente espancados por um
professor ou por alguém mais velho, ao ponto de deixar marcas em seus corpos
(Rochford Jr., 2007: 75). Os casos não param por aí. “Em Janeiro de 2002, a
Association for the Protection of Vaishnava
Children - APVC (Associação para a Proteção de Crianças Vaishnavas), que foi formada em resposta às crescentes alegações de
abuso infantil, tinha recebido alegações de maus tratos infantis, incluindo
abuso infantil, contra mais de 300 pessoas. 60% dos relatos de abusos feitos à
APVC foram de antes de 1992, quando existiam grandes quantidades de alegações
ligadas com uma escola (gurukula) Hare Krishna. Ainda mais, mais de 80% destes
casos eram acusações de abuso sexual” (Rochford Jr., 2007: 75-6).
O motivo que levou os monges Hare Krishnas a cometerem estas crueldades
com as crianças tem um fundo ideológico e é explicado por E. Burke Rochford Jr.
assim: “Como o número de casamentos e de filhos começou a crescer nos meados
dos anos 1970, a vida familiar foi definida pela elite de renunciantes dos Hare Krishnas como um símbolo de
fraqueza espiritual. Como um grupo politicamente marginal e estigmatizado, os
pais de família foram deixados incapazes de afirmar sua autoridade de pais
sobre suas vidas e de seus filhos. As crianças foram abusadas em parte porque
elas não eram valorizadas pelos líderes, e mesmo, muito frequentemente, por
seus próprios pais, que aceitavam as justificativas teológicas e outras mais
oferecidas pela liderança para permanecerem não envolvidos nas vidas de seus
filhos” (Rochford, 1998).
Agora, o golpe mais forte contra o
Movimento Hare Krishna aconteceu em
12 de Junho de 2000, quando 44 ex-adeptos, que sofreram abusos no passado,
entraram com uma ação judicial na Corte de Justiça da cidade de Dallas, EUA,
solicitando uma indenização de US$ 400 milhões pelos abusos e pelos maus tratos
(Campbell, 2000 e Singer, 2003: 349). A notícia correu o mundo e o Movimento,
que já vinha gradativamente declinando, ficou com sua imagem ainda mais deteriorada.
Logo em seguida, algumas comunidades Hare
Krishnas nos EUA, temendo o confisco judicial, solicitaram na Justiça a
proteção da Lei de Falência, a fim de evitar o arresto de seus bens (Singer,
2003: 349).
Sri Krishna e Arjuna, protagonistas do épico Mahabharata |
As consequências de todas estas
turbulências foram que a prática da sankirtan
(distribuição de livros, revistas e incenso em troca de doações) foi abolida e
as gurukulas (escolas internos para
crianças) foram fechadas. Com o fim da sankirtan,
os monges Hare Krishna tiveram de
procurar emprego no mercado de trabalho para se sustentarem, uma vez que a
renda obtida da prática de distribuição em troca de doações foi paralisada.
Também, com o fechamento das gurukulas,
os filhos dos adeptos passaram a estudar em escolas públicas, tal como a
maioria das crianças. Enfim, o resultado foi que, a partir de então, o tão
conservador e exótico Movimento Hare
Krishna foi obrigado a se submeter a um processo de secularização, o qual
resultou numa radical transformação no perfil e no estilo de vida de seus
adeptos, o que explica, em grande parte, o motivo da diminuição da sua
visibilidade, em vista da amenização do seu caráter exótico (Rochford Jr., 2005:
101-8 e 2007: 97-114).
Concluindo, o Movimento Hare Krishna se transformou numa
instituição legalmente falida, bem como judicialmente ameaçada de perder talvez
quase todos os seus bens, os quais acumulou com a exploração do trabalho
gratuito de distribuição de livros e de incenso em troca de doações (sankirtan) por seus adeptos, diante da
avalanche de ações judiciais.
O movimento circular
Como mencionada acima, a abolição da
prática de distribuição em troca de doações secou a principal fonte de renda
dos Hare Krishnas, com isso tiveram
que procurar outra fonte de renda para o sustento de suas comunidades e de seus
templos. Esta procura resultou num fenômeno curioso e, até certo ponto,
surpreendente, ou seja, o gradativo aumento do ingresso de imigrantes hindus no
Movimento Hare Krishna nos países com
imigração numerosa, sobretudo os de língua inglesa, a partir das últimas
décadas. O resultado foi que, com o tempo, estes imigrantes hindus passaram a
ser a maioria em algumas comunidades e templos, bem como alguns hindus se
tornaram até presidentes de algumas comunidades. São eles que fornecem a
maioria do sustento econômico do Movimento atualmente (Rochford Jr., 2005: 104).
Por outro lado, nos países onde não existe grande número de, ou nenhuma
imigração hindu, o movimento quase que desapareceu.
Monges Hare Krishnas cantando o Mahamantra na rua |
E. Burke Rochford Jr. chama este
processo de “hinduização” do Movimento Hare
Krishna (Rochford Jr., 2007: 181-200). Bem, a conclusão que se pode extrair
deste fenômeno é que a história do Movimento Hare Krishna efetuou um movimento circular, no que diz respeito ao
critério de ingresso de novatos. Ou seja, de um movimento que abriu as portas
do culto a Sri Krishna para todos,
independentes de religião, de casta, de cor, de nacionalidade e de sexo,
contrariando a ortodoxia hindu da época, trabalho efetuado por Sri Chaitanya Mahaprabhu no século XVI,
foi então trazido para o Ocidente com este mesmo propósito, para finalmente, a
partir das últimas décadas, voltar ao estágio anterior a Sri Chaitanya, quando o culto de Sri Krishna era praticado somente por hindus, se transformar
gradativamente em um movimento majoritariamente hindu. Enfim, o Movimento Hare Krishna, que foi marcado pela sua
abertura religiosa a todos os povos, culturas e raças, está se transformando
aos poucos numa religião étnica.
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