terça-feira, 10 de abril de 2012

|ESTUDO| Cristianismo sem Semana Santa

 Octavio da Cunha Botelho

Obs: este estudo está disponível em versão mais atualizada em:
http://observadorcriticodasreligioes.wordpress.com/2014/01/08/cristianismo-sem-semana-santa/)

            O artigo abaixo é um complemento do estudo “A Historicidade dos Episódios da Crucificação e da Ressurreição: Um Breve Estudo Crítico-histórico”, postado em 03/04/2012, em razão da Semana Santa, o qual não foi incluído para evitar a longa extensão do mesmo. O assunto foi apenas mencionado no final deste último, de modo que este novo artigo foi postado agora como uma complementar reflexão conjectural e descontraída sobre a hipotética vitória dos gnósticos cristãos nos primeiros concílios ecumênicos e sua conseqüente consolidação como corrente dominante do Cristianismo, bem como o seu possível efeito nas comemorações da Semana Santa.  Poderá ser interessante para aqueles que gostariam de imaginar a possibilidade de que qualquer uma das correntes rivais poderia ter triunfado nos primeiros concílios, e com isso o caráter do Cristianismo dominante ter sido muito diferente nos séculos seguintes.

O Gnosticismo como um hipotético Cristianismo dominante       

Agora que dispomos de mais dados, é possível saber, com mais precisão, como foi a batalha entre as primeiras correntes exegéticas para o logro da hegemonia teológica nos primeiros séculos do Cristianismo (Ehrman, 2008). Então, com base neste conhecimento histórico, independente da versão tradicional, seria interessante conjecturar sobre o destino da igreja dominante, no caso do triunfo dos gnósticos cristãos nos primeiros concílios ecumênicos, e a sua posterior consolidação como a corrente predominante no Cristianismo, ao invés do triunfo da então incipiente corrente ortodoxa. Pois, pelo que é possível encontrar nos escritos dos primeiros heresiologistas (autores de críticas contras os hereges) cristãos, os gnósticos foram, segundo Irineu de Lyon, que escreveu por volta de 180 e.c., “os mais perigosos à ortodoxia cristã” (Ehrman, 2006: 82). Bem como, nenhum outro herege, nos primeiros séculos, foi mais criticado do que o gnóstico cristão Valentino, cujos ataques vieram de nada menos do que de seis heresiologistas: Irineu de Lyon, Hipólito, Clemente de Alexandria, Orígenes, Tertuliano e Epifânio (Tripolitis, 2002: 133). Enfim, os gnósticos deviam ser muito temidos.
A gradual consolidação de uma corrente dominante começou a se oficializar a partir do concílio de Nicéia, convocado pelo imperador Constantino, em 325 e.c., a qual se firmou nos concílios ecumênicos subseqüentes: Constantinopla I (381 e.c.), Éfeso (431 e.c.), Calcedônia (451 e.c.), Constantinopla II (533 e.c.) e outros. Só os concílios ecumênicos foram doze, desde o concílio de Jerusalém, ainda no tempo dos apóstolos, para discutir a conversão dos não-judeus, até o concílio Vaticano II, em 1962. Se forem somados os sínodos e as demais reuniões regionais, o número talvez seja incontável. O Cristianismo é a religião que mais realizou concílios, sínodos e reuniões para consolidar a fé e para combater as heresias, quando comparamos com a história das outras religiões, este exagero até parece uma paranóia.
Se o triunfo dos gnósticos cristãos tivesse acontecido, uma forte possibilidade é a de que não teríamos as tão tradicionais comemorações da Semana Santa. A razão para tal inexistência é que os gnósticos cristãos não davam tanta importância para os significados literais e físicos dos eventos da paixão, da crucificação, do sepultamento e da ressurreição de Jesus. Nas palavras de Bart D. Ehrman: para os gnósticos “... a salvação não veio por meio da morte e da ressurreição de Jesus, mas por meio da revelação do conhecimento secreto que ele apresenta” (Ehrman 2006: 103).  Por exemplo, o Evangelho de Judas omite estes episódios e termina na entrega de Jesus às autoridades judias (Wurst, 2006: 45). Ademais, existe até uma tradição que afirma que Jesus não morreu na cruz, mencionada num verso do Alcorão (IV: 157): “E por terem dito: ‘Matamos o Messias, Jesus, o filho de Maria, o Mensageiro de Deus’, quando, na realidade, não o mataram nem o crucificaram: imaginaram apenas tê-lo feito. E aqueles que disputam sobre ele estão na dúvida acerca da sua morte, pois não possuem conhecimento certo, mas apenas conjeturas. Certamente não o mataram” (Challita, 2002: 53). Outra tradição afirma que Simão de Cirene foi crucificado no lugar de Jesus.
Com a morte de Jesus na cruz, dois seguimentos tentaram compensar este fracasso, o primeiro inventou o episódio da ressurreição, para atribuir um caráter extraordinário à vida de Jesus e fazer do espetacular milagre da ressurreição o centro do seu dogma. Este foi o seguimento que, com o tempo, se transformou na corrente ortodoxa que triunfaria no concílio de Nicéia, o Cristianismo predominante até hoje. O outro seguimento foi o dos gnósticos cristãos (existiram, ou talvez ainda existam, gnósticos não-cristãos; se a remanescente comunidade dos mandeístas do Iraque é gnóstica ou não, ainda é assunto de debate entre os pesquisadores) que deram pouca ou nenhuma importância à ressurreição, então para compensar o fracasso da morte de Jesus, os gnósticos colocaram em sua boca uma sabedoria esotérica e fantástica, reproduzida em seus textos que foram considerados, pela então igreja dominante, como heréticos. Para os gnósticos, Jesus era mais um sábio e um mestre do que um salvador que sacrificou a sua vida para salvar os pecados dos outros, por isso sua ênfase na gnose (conhecimento).
Os textos já encontrados dos gnósticos cristãos expressam idéias, em parte, divergentes, pois não nos foram legados através da tradição interrupta, mas sim encontrados através de descobertas arqueológicas e de manuscritos achados em locais esquecidos, por isso não temos um compêndio sistemático de suas doutrinas. Antes da descoberta de Nag Hammadi e de outros manuscritos gnósticos recentemente descobertos, as principais fontes eram as obras dos heresiologistas (Irineu de Lyon, Orígenes, Tertuliano, etc.). Porém, não é possível extrair um sistema destas obras, pois às vezes elas contradizem entre si.  Assim, temos textos gnósticos que mencionam a crucificação de Jesus e outros que não (o Evangelho de Judas, por exemplo). Os que mencionam, atribuem pouca importância ao evento e não se detêm em extensas narrativas, tal como nos evangelhos canônicos. O Evangelho de Pedro, o qual não está entre os textos achados em Nag Hammadi, apresenta um extenso relato da crucificação, da paixão, do sepultamento e da ressurreição de Jesus, mas ainda é dúvida entre os pesquisadores se é um texto gnóstico ou não. Alguns autores o consideram gnóstico por transmitir uma cristologia docética. Agora, quanto à ressurreição, os textos gnósticos que a reconhecem atribuem um significado diferente da interpretação canônica. Na visão dos gnósticos, a ressurreição era um evento espiritual, daí a afirmação no Evangelho de Felipe: “Aqueles que dizem que o Mestre (Jesus) primeiro morreu e (em seguida) se levantou estão equivocados, pois ele se elevou primeiro e (então) morreu. Se alguém não alcançar primeiro a ressurreição, ele não morrerá” (Isenberg, 2007: 131).
Entres os manuscritos gnósticos de Nag Hammadi está uma carta didática intitulada “Tratado da Ressurreição” (Peel, 2007, 59-63), cuja concepção de ressurreição difere daquela dos evangelhos canônicos. Nesta visão, a ressurreição é um ato espiritual: a ressurreição “é sempre a revelação daqueles que se elevaram. [...] não penses então que a ressurreição é uma ilusão. Não é uma ilusão, mas sim a Verdade. De fato é mais apropriado dizer que o mundo é uma ilusão, em vez da ressurreição, que veio à existência por meio do nosso Senhor o Salvador Jesus Cristo. [...] a ressurreição é a verdade que se mantém firme. É a revelação do que é, e a transformação das coisas, e a transição para o novo. Assim como a imortalidade [desceu] sobre a mortalidade, a luz flui sobre a escuridão, engolindo-a; e o pleroma preenche a deficiência. Esses são os símbolos e as imagens da ressurreição” (Peel, 2007: 63; veja também Ehrman, 2008: 197-8).

Algumas reflexões conjecturais e descontraídas sobre o Cristianismo sem a Semana Santa

            Do exposto é possível vislumbrar o que seria da Semana Santa se o Gnosticismo Cristão tivesse triunfado nos primeiros concílios e se transformado na corrente dominante.  Tal como já foi mencionado, certamente não existiriam as comemorações da Semana Santa.  A Sexta Feira da Paixão, o Sábado de Aleluia e o Domingo de Páscoa não representariam, para os cristãos, o que passaram a representar no decorrer dos anos.  Apesar do grande número de textos já encontrados sobre o Gnosticismo Cristão, nenhum trata dos costumes, das cerimônias e do modo de vida do gnóstico, portanto não é possível saber quais seriam os seus dias santos e suas datas comemorativas. Podemos apenas conjeturar, a partir da sua cristologia docética, que a experiência da transfiguração de Jesus (Mateus 17: 1-13; Marcos 9: 2-13 e Lucas 9: 28-36), no monte Tabor, poderia ser um evento comemorado pelos gnósticos.
Aqueles que apreciam os dias santos, não por causa da santidade, mas em razão do feriado, poderiam estar se perguntando como ficariam os demais dias santos: o feriado do Natal, de Carnaval (originalmente uma festa religiosa às avessas), de Corpus Christi, de Nossa Senhora Aparecida, etc. Bem, se o caráter introspectivo do Evangelho de Tomé e de outros textos gnósticos se tornar uma doutrina predominante, poderíamos ter poucos ou nenhum feriado, pois os gnósticos poderiam não ser muito ligados às comemorações externas. Então, conseqüentemente, os oportunismos dos produtores de bacalhau e de carne branca para a Sexta Feira Santa, bem como os dos fabricantes de chocolates para os ovos de Páscoa, não existiriam. Certamente, a lenda do Coelhinho da Páscoa não seria inventada. Diferente também seria com a inexistência da comemoração do Natal, a festa mais entusiasmada dos cristãos. Também, a lenda do Papai Noel não existiria. A indústria e o comercio não teriam aquele monstruoso faturamento nos países, ou nas famílias, onde a festa natalina é acompanhada da doação de presentes.
Agora, será curioso observar que nas pautas de reivindicações por uma sociedade laica, pelo fim das religiões, pela retirada da religião da vida pública, pela não interferência da religião na política e na educação, pela remoção de símbolos sagrados dos recintos públicos, pelo fim das orações nas reuniões parlamentares, etc., a reivindicação pelo fim dos feriados nos dias santos, no entanto, não é incluída. Nos países onde a religiosidade da população está diminuindo, o interesse religioso caiu, mas os feriados em alguns dias santos continuam, porém sem muitas comemorações. Nos países de regime social rigoroso (China, Cuba e Coréia do Norte) não existem feriados religiosos, porém nestes casos foi uma imposição de cima para baixo. Bem, se for possível diminuir o interesse religioso da população, ou até mesmo extingui-lo, mas conservar os feriados nos dias santos, este poderá ser o resultado ideal que alguns aqui sonham.  


Bibliografia

CHALLITA, Mansour (tr.). O Alcorão. Rio de Janeiro: ACIGI, 2002.
EHRMAN, Bart D. Lost Scriptures: Books that did not make it into the New Testament. New York: Oxford University Press, 2003a.
_______________ Lost Christianities: The Battle for Scripture and the Faiths We Never Knew. New York/Oxford: Oxford University Press, 2003b. Versão brasileira: Evangelhos Perdidos: As Batalhas pela Escritura e os Cristianismos que Não Chegamos a Conhecer. Rio de Janeiro/São Paulo: Editora Record, 2008.
_______________ O Cristianismo de Ponta-Cabeça: a Visão Alternativa do Evangelho de Judas em O Evangelho de Judas do Códice Tchacos. Rodolphe Kasser, Marvin Meyer e Gregor Wurst (eds.). São Paulo: National Geographic/Prestígio Editorial, 2006, p. 77-120.
ELLIOTT, J. K. The Apocryphal New Testament: A Collection of Apocryphal Christian Literature in an English Translation. Oxford: Clarendon Press, 1993.
ISENBERG, Wesley W. O Evangelho de Felipe em A Biblioteca de Nag Hammadi, James M. Robinson (Ed.). São Paulo: Madras Editora, 2007, p. 126-43.
KING, Karen L. What is Gnosticism? Cambridge/London: The Belknap Press of Harvard University Press, 2005.
PEEL, Malcolm L. O Tratado da Ressurreição em A Biblioteca de Nag Hammadi. James M. Robinson (ed.). São Paulo: Madras Editora, 2007, p. 59-63. 
ROBINSON, James M. (ed.).  The Nag Hammadi Library in English. Leiden: E. J. Brill, 1988. Edição brasileira: A Biblioteca de Nag Hammadi. São Paulo: Madras Editora, 2007.
TRIPOLITIS, Antonía. Religions of the Hellenistic-Roman Age. Grand Rapids: W. B. Eerdmans, 2002.
WURST, Gregor, Rodolphe Kasser e Marvin Meyer (trs.). O Evangelho de Judas do Códice Tchacos. São Paulo: National Geographic/ Prestígio Editorial, 2006.



Nenhum comentário:

Postar um comentário