Por Octavio da Cunha Botelho e Gabriel Shimizu Bassi
(Obs: Para auxílio dos estudantes e dos pesquisadores, este estudo está disponível também, mas no formato .docx, em um layout mais próximo do manográfico e com paginação, a fim de facilitar o trabalho de consulta, de download, de impressão e de manuseio em pesquisa, em:
Multidão de peregrinos ao redor da Caaba durante a Hajj |
Este estudo é sobre a Hajj,
a Grande Peregrinação Muçulmana à Meca que, este ano, no nosso calendário,
aconteceu dos dias 24 a 29 de Outubro. O evento tem dimensões astronômicas, pois
é a maior concentração anual de religiosos do planeta, o deste ano reuniu cerca de 3,1 milhões de fiéis, segundo as autoridades sauditas, perdendo apenas para um festival hindu que acontece de
12 em 12 anos em Allahabad, Índia, o Purna Kumbha Mela, o qual habitualmente
reúne cerca de 20 milhões de devotos.
O estudo, num primeiro momento,
informa o que é a Hajj, a execução
dos seus ritos, a sua origem pré-islâmica e as lendas por trás dos seus ritos,
esta parte inicial escrita por Octavio da Cunha Botelho. Para então, num
segundo momento, relatar e analisar os principais problemas de saúde
decorrentes da excessiva aglomeração de peregrinos neste evento, esta segunda
parte escrita por Gabriel Shimizu Bassi.
O que é a Hajj
O quinto pilar (princípio) do
Islamismo é a Hajj (sendo os outros:
a Profissão de Fé, a Oração, a Caridade e o Jejum), isto é, a grande
peregrinação à Meca, para diferenciar da pequena peregrinação (Umra), que todo muçulmano saudável e com
condição financeira é obrigado a fazer pelo menos uma vez na vida. Geralmente
traduzida como peregrinação, a Hajj,
mais precisamente, é uma série de ritos executados em determinados pontos e
momentos do trajeto da peregrinação no interior da Grande Mesquita (al-masjid al-haram) e nos locais
sagrados (Mina, Muzdalifa e Monte Arafat)
ao redor da cidade de Meca. Acontece anualmente entre os dias oitavo e décimo
terceiro do mês Dhul Hijja, o décimo
segundo e último do calendário muçulmano. Em vista da diferença do calendário
lunar dos muçulmanos com o calendário solar, este ano o evento acontecerá entre
os dias 24 e 29 de Outubro. Além da Hajj,
existe outra peregrinação muçulmana, a Umra
(visitação) a qual pode ser feita em qualquer época do ano e não é obrigatória,
conhecida também como peregrinação menor (Robinson, 2003, 127-36).
A execução da Hajj
Mapa mostrando o itinerário da Hajj |
A série de ritos da peregrinação (Hajj)
começa no 8º dia do mês de Dhul-Hijja,
o 12º do calendário muçulmano e termina no 13º dia. Entretanto, antes deste
período, no sétimo dia, os peregrinos se submetem à Purificação Ritual (Ihram), a qual deve ser feita antes de
entrar na Al-Masjid Al-Haram (a
Grande Mesquita de Meca). Esta consiste em aparar as unhas e o bigode, remover
os fios de cabelo desnecessários, tomar banho e vestir os trajes brancos sem
costura (o izar e o rida). Também, eles devem recitar a
oração ritual (Talbiyah). As mulheres
são dispensadas de alguns destes requisitos. Durante a Hajj, o peregrino deve abster-se de usar roupas costuradas, de
cobrir a cabeça (as mulheres não cobrem o rosto), de se banhar e de cuidar do
corpo, de praticar atividade sexual, de usar perfumes, de envolver-se em
conflito e em derramamento de sangue, de caçar e de destruir plantas (Long,
1979: 16). No passado, quando os peregrinos chegavam por terra, foram
instalados locais de purificação em cidades ao redor de Meca, para que os fiéis
pudessem efetuar os ritos de purificação (Ihram)
e, assim, alcançarem o estado de consagração, antes de entrarem na Grande
Mesquita. Atualmente, como muitos chegam de avião, estes ritos preparatórios
são feitos em Meca mesmo. Isto tem que ser feito até o 7º dia, pois no 8º dia
iniciam-se os ritos da Hajj
propriamente.
Veja abaixo a programação da Hajj dia por dia no mês de Dhul–Hijja do calendário muçulmano
(Long, 1979: 11-23; Robinson, 2003: 132-6 e Bianchi, 2004: 09):
-
8º dia: vestidos nos trajes brancos e previamente consagrados (Ihram), os peregrinos entram na Al-Masjid Al-Haram (a Grande Mesquita)
pelo Portão da Paz (Bab as-Salam) e
executam inicialmente o Tawaf da
Chegada (circulação por 7 vezes ao redor da Caaba
no sentido anti-horário) repetindo orações. Durante cada giro em torno da Caaba, é prescrito um toque na Pedra
Preta, porém durante a Hajj não é
obrigatório, em vista da multidão, que pode ser substituído por um gesto
simulando o toque. Em seguida, executam a Sai
(a caminhada e/ou a corrida entre as colinas de Safa e de Marwa por 7
vezes). Depois, os peregrinos retornam ao pátio da Caaba para beberem a água da fonte Zamzam para, então, em seguida, se dirigirem à Mina (3 milhas de Meca), onde realizam orações.
-
9º dia: os peregrinos deixam Mina e
se dirigem ao monte Arafat, o local
onde Maomé fez seu último sermão, aí permanecem em vigília contemplativa, rezam
e recitam o Alcorão. Este momento é considerado o auge da Hajj. Em seguida, se dirigem para Muzdalifa, onde passam a noite dormindo no chão e no céu aberto. No
dia seguinte os peregrinos retornam para Mina,
para a cerimônia do apedrejamento do demônio (ramy al-jamarat).
-
10º dia: Em Mina, os peregrinos
recolhem um tanto de pedras de cascalho, para serem lançadas contra 3 muros
(antes eram 3 pilares, após 2004 os pilares foram substituídos por 3 muros
altos, uma vez que as pedras lançadas estavam atingindo peregrinos do outro
lado), rito que significa o desafio ao demônio. Depois, se possível, os
peregrinos sacrificam um animal de sua propriedade e, em seguida, os homens
raspam o cabelo e as mulheres cortam uma polegada do cabelo.
-
11º dia: os peregrinos retornam à Meca e executam a segunda Tawaf (a circulação ao redor da Caaba)
e a segunda Sai (a corrida entre as
colinas de Safa e de Marwa).
-
12º dia: os peregrinos retornam à Mina
e repetem o ritual do apedrejamento do demônio.
-
13º dia: retorno à Meca, onde executam o Tawaf
do Adeus (a última circulação ao redor da Caaba)
e, por fim, as cerimônias terminam e, então, os peregrinos deixam Meca.
A origem pré-islâmica
da Hajj
Diante da grandiosidade deste
evento, bem como da tamanha devoção dos fiéis durante as cerimônias e da beleza
da Grande Mesquita de Meca, é interessante conhecer a crença que motiva a
magnitude desta concentração religiosa.
Visão noturna da Grande Mesquita de Meca durante a Hajj |
Em suma, os ritos da Hajj são re-encenações de lendas que
relatam episódios aflitos e gloriosos das vidas de Abraão (Ibrahim para os
muçulmanos), de sua escrava, Hajar,
com quem teve um filho, Ismael. Lendas, nem sempre coincidentes, preservadas
pela tradição (Hadith), das quais Maomé
adaptou para um contexto islâmico, a fim de atribuir uma origem gloriosa e
monoteísta para o conjunto de revelações que estava transmitindo na época. Os cultos à Caaba (lit. cubo), à Pedra Preta e aos locais ao redor (Safa, Marwa, etc.) já existiam antes de Maomé, porém eram cultos
politeístas praticados pelas tribos nativas da região árabe. Maomé, após suas
conquistas militares, reformou estes cultos dando-lhes um caráter monoteísta. O
Alcorão III. 96-7 ufaneia: “A primeira Casa (de adoração) destinada aos homens
foi aquela de Bakka (Meca). Plena de
benção e guia para todos os seres. Nela estão sinais manifestos: o lugar de
estadia de Abraão. Qualquer um que penetre nela alcança segurança. A
peregrinação à ela é um dever que os homens devem a deus...” (Ali, 1934: 148 e
Challita, 2002: 32).
A associação de Abraão com o Islã foi
uma manipulação astuta de Maomé que funcionou. Nas palavras de David E. Long:
“Ao vincular o Islã a Abraão, Maomé parece ter sido influenciado pela grande
população judia em Medina. Não só ele conheceu a tradição judia com os judeus,
como também procurava alcançar reconhecimento de si mesmo como profeta, para
tanto, Maomé utilizou a tradição comumente aceita de que Abraão era o pai
natural de ambos: dos árabes e dos judeus. Quando os muçulmanos romperam com os
judeus de Medina, o uso de Abraão como uma figura de pai foi apropriado, visto
que ele (Abraão) pré-datava tanto o Cristianismo como a Torá Judaica. Ligar
Abraão com o Islã foi, mais que tudo, uma inovação e não uma adaptação da
tradição pré-islâmica de Meca” (Long, 1979: 05).
A etimologia da palavra Hajj é interpretada assim: “A palavra Hajj está relacionada com o hebraico Hag, a qual refere-se aos festivais
cíclicos envolvendo a peregrinação e talvez a circulação. Significa “dirigir-se
para”, relacionada com o ato de peregrinação” (Long, 1979: 04).
As lendas por trás dos
ritos da Hajj islâmica
Peregrinos executando o Rito do Apedrejamento |
A construção da Caaba por Abraão e seu filho Ismael é mencionada no Alcorão (II.
125-7), mas os relatos mais extensos foram preservados nas tradições (Hadith). Então, um corpo de lendas se
desenvolveu a partir da referência à construção da Caaba por Abrão e seu filho no livro sagrado do Islã. No entanto,
“de acordo com alguns relatos, a Caaba
de Abraão foi, na verdade, a segunda a ser construída no local, a primeira
sendo construída por Adão, que tinha ido à Meca após ser expulso do Paraíso.
Esta primeira construção, tal como a lenda relata, foi destruída durante o
Dilúvio” (Long, 1979: 06). Portanto, segundo esta versão da lenda, o que Abraão
fez foi, na verdade, reconstruir a Caaba.
Os relatos nas lendas são divergentes,
de modo que David E. Long tenta organizá-los assim: “Abraão e seu filho Ismael
tiveram ajuda sobrenatural enquanto eles construíam (ou reconstruíam) a Caaba. De acordo com uma versão, deus
guiou Abraão até o local da primeira Caaba
por uma nuvem, que parou acima do local e ordenou a Abraão que construísse um
edifício sobre a sombra que ela projetava. Abraão começou a construir usando
pedras trazidas por Ismael. Numa outra versão, as pedras eram extraídas de três
montanhas: uma de Meca, uma de Jerusalém (o Monte das Oliveiras) e uma do
Líbano (o Monte Hermon)” (Long, 1979: 06).
“No canto leste da Caaba (cada canto está dirigido para um ponto cardial) está a
famosa Pedra Negra. De acordo com a
lenda, ela foi trazida até Abraão pelo anjo Gabriel de Jabal Abn Qubays (uma montanha perto de Meca), onde ela tinha
permanecido desde o dilúvio, tendo sido parte da Caaba original. A pedra era originalmente branca, mas ficou preta
pelo contato com os pecados do homem. No Dia do Julgamento a pedra falará em
testemunho contra a humanidade” (Long, 1979: 06).
“Um outro conjunto de lendas ligando
Abraão ao Islã e a Hajj trata da
sagrada fonte de água Zamzam,
localizada no interior da Grande Mesquita e da Sai, ou as sete travessias entre as colinas de Safa e Marwa. Não há
menção da Zamzam no Alcorão, mas as
colinas Safa e Marwa são elogiadas (II. 158): “Al-Safa
e Al-Marwa figuram entre os lugares
de Deus. Quem fizer a peregrinação à Casa (Caaba)
ou a visitar (Umra) não cometerá
transgressão se circundar estes dois montes...” (Ali, 1934: 62 e Challita,
2002: 14).
“As lendas relativas à Zamzam e à Sai variam, mas a história geral envolve Hajar e seu filho Ismael, abandonados no deserto por Abraão. De
acordo com uma versão, Abraão e sua esposa Sarah,
tendo deixado a Caldeia, viajaram para o Egito. Quando estavam lá, o faraó Salatis tentou por três vezes seduzir
Sarah, mas foi milagrosamente impedido, de maneira que não pode fazê-lo.
Liberando-a para seu marido, ele deu a ela uma lembrança, uma bela escrava, Hajar. No principio as coisas iam bem,
Abraão teve um filho, Ismael, com Hajar
(pois Sarah era estéril). Mas Sarah começou a ficar ciumenta e exigiu
que Abraão abandonasse os dois no deserto. Relutante ele fez assim, deixando-os
no Vale da Sede, o local da atual Meca. Abraão previu, contudo, que aquele era
o local da primeira Caaba e que
nenhum mal ocorreria a Hajar e a
Ismael. Depois que ele partiu, Hajar
correu em direção a uma miragem de água até que ela alcançou o topo da colina Al-Safa e regressou, então ela perseguiu
a miragem até que ela alcançou o topo da colina Al-Marwa. Após correr de ida e de volta por sete vezes, ela
retornou até seu filho, somente para descobrir a água surgindo de onde ele
estava. Esta era a água de Zamzam. Em
alguns relatos Ismael acidentalmente descobriu a água, e em outros, o anjo
Gabriel golpeou a terra e fez ela surgir, enquanto que outros, foi a
redescoberta da água originalmente usada por Adão e Eva quando eles foram
expulsos do Éden. De qualquer maneira, a Sai
existe para comemorar a corrida de ida e de volta de Hajar em busca de água” (Long, 1979: 07).
Peregrinos se espremendo ao redor da Caaba |
“De acordo com uma versão, Abraão foi
ordenado por deus num sonho a sacrificar seu filho Ismael. No dia seguinte, ele
disse ao seu filho que eles iriam sair para encontrar lenha, mas quando estavam
caminhando, Abraão não se conteve e confessou a Ismael o que Deus lhe tinha
instruído fazer. Ismael aceitou seu destino e seguiu seu pai até o local do
sacrifício que Abraão tinha visto no sonho, um penhasco próximo ao terceiro Jamrah (antes pilar, agora muro para
arremesso de pedras) em Mina. No
caminho, Satã apareceu para Ismael três vezes, uma vez em cada Jamrah e o alertou sobre o que seu pai
pretendia fazer. Em cada ocasião Ismael lançou pedras contra Satã. Quando Ismael
foi amarrado e colocado no local do sacrifício, Abraão colocou uma faca no seu
pescoço, mas a faca recusou entrar na sua carne. Após uma terceira tentativa, o
anjo Gabriel apareceu com um carneiro. Ele disse a Abraão que Deus tinha
recebido seu sacrifício e não exigia a alma de Ismael, e que deveria, ao invés
disto, oferecer um carneiro em seu lugar” (Long, 1979: 08). Esta é a origem do
rito do apedrejamento em Mina.
A Hajj
é um exemplo atual de como a crença em antigas lendas ainda é capaz de levar
multidões a se exporem e a se submeterem às condições de desconforto e de
risco, em troca de uma simples demonstração de submissão. Certamente,
aglomerações com estas proporções não poderiam passar sem incidentes, com exposição
ao risco de milhares de fiéis que, com frequência, resulta em acidentes e em
casos de contaminação, apesar das providências dos organizadores sauditas, ano
após ano, para evitar o aumento de ocorrências. Os problemas de saúde
decorrentes da grande aglomeração na Hajj,
ocorridos nas últimas décadas, serão relatados e analisados em seguida.
Epidemiologia da Hajj
A Hajj
é conhecida mundialmente pelos epidemiologistas e infectologistas como um dos eventos
de maior ocorrência de doenças potenciais à saúde física coletiva (Shaffi et
al., 2006; Memish, 2002).
A aglomeração é um dos maiores problemas
mundiais de saúde pública (Memish, 2002). A grande quantidade de pessoas que
faz o itinerário da Hajj (o trânsito
de mais de 2 milhões de pessoas num percurso relativamente curto) pode
propiciar o rápido aparecimento de epidemias. O calor extremo, o conglomerado e
o congestionamento humano entre animais e carros, bem como a preparação e o
armazenamento inadequados de alimentos e água podem facilitar o contágio dos
indivíduos por patógenos diversos, principalmente por agentes aéreos. Tais fatores
foram o estopim que propiciaram o surgimento da epidemia de meningite por Neisseria meningiditis na Hajj dos anos de 2000-2001 (Ahmed et
al., 2006). Além disso, a taxa de infecção por tuberculose resistente a
antibióticos é três vezes mais alta em Meca e em Medina que a média nacional
para a Arábia Saudita (Al-Kassimi et al., 1993; Khan et al., 2001). O próprio
governo saudita tentou por vezes impedir a entrada de peregrinos que vinham de
países em risco de epidemia. Por exemplo, na Hajj deste ano (2013), o governo saudita proibirá a entrada de
peregrinos provindos de Uganda e da República Democrática do Congo por medo de
estarem infectados com ebola (MacKenzie, 2013)
O suíço John Lewis Burkhardt foi o
primeiro europeu a relatar os perigos de contaminações potencialmente fatais
durante a peregrinação (Hajj) no ano
de 1813 (Burkhardt, 1829). Burkhardt, posteriormente estudando os trabalhos de
historiadores árabes, mostrou que na Hajj
do ano de 1271 houve o aparecimento de uma “pestilencia” não específica,
matando 50 pessoas por dia. Outra “pestilencia” surgiu no ano de 1424, matando
2000 pessoas (Burkhardt, 1829). Entre os sintomas mais aparentes estava a “febre
intermitente” (cujo pico de febre ocorre em períodos, como as vistas num
indivíduo parasitado por malária), “febre pútrida” (provavelmente devido à
infecção por difteria ou tifo) e, por último, mas não menos importante, as disenterias
diversas. Nos anos de 2000 e 2001, a Hajj
recebeu especial atenção pela ocorrência de uma epidemia meningocócica
(infecções que acometem as meninges, membranas que envolvem o encéfalo, e uma
das causadoras das meningites) que acometeu mais de 2400 pessoas (Aguilera et
al., 2002; Ahmed et al., 2006). Bernieh e colaboradores (1995) mostraram que dentre
94 pacientes atendidos durante a Hajj
no setor de hemodiálise do hospital de Madinah Al Munawarah (cidade de Medina),
54 pacientes (60%) foram positivos para o vírus da hepatite C (embora nenhum
membro da equipe de saúde tenha sido positivo para o vírus).
Peregrinos se encaminhando para o Rito do Apedrejamento |
Porém os problemas sanitários envolvendo
o festival da Hajj começam muito
antes de se alcançar o local de adoração, localizado em Meca. Os peregrinos
inicialmente trocam suas vestimentas diárias por pedaços de tecidos amarrotados
e desalinhados, simbolizando a morte em vigilância constante do mundo mundano (Winston,
2005; Hanlon, 2000). Os peregrinos então se abstêm do uso de artigos de higiene
pessoal (tais como sabonetes e papel higiênico devido ao perfume), relações
sexuais e cortes de cabelos e unhas.
Qualidade da Água
Sabe-se que o suprimento de água
fornecido em Meca durante a Hajj é
fornecido por usinas de desalinização ao sul de Jeddah e de poços artesianos. E
essa água é transportada por meio de caminhões-pipa para locais e áreas
residenciais onde não se consegue chegar com a água por meios convencionais
(tubulações). Mashat e colaboradores (2010) avaliaram a qualidade da água
contida em 508 caminhões-pipa que transportavam água, durante o festival da Hajj, a partir da usina de
dessalinização (160) e de poços artesianos (348) entre os anos de 2006-2008. Os
níveis de coliformes e de E. coli excediam os níveis máximos permitidos pela
Agência de Medidas e Especificações Saudita (SASM). Contaminantes químicos
(sólidos totais dissolvidos, NH4, NO3, NO2, SO4, Cl, Cu, Ca, Mg, F) também
excediam os níveis máximos especificados pela SASM.
Qualidade dos Alimentos
A diarreia é um sintoma comum para
qualquer peregrino que participa da Hajj,
porém há poucos estudos envolvendo sua epidemiologia. Baseando-se em
estatísticas internacionais (Organização Mundial da Saúde e pesquisadores
independentes), durante o período da Hajj
entre 1992-2004, relatos de epidemias de infecção alimentar variaram de 44 a
132 casos (Organização Mundial da Saúde, 2002; Green & Roberts, 2002). Isso
se deve à chegada de pessoas de diversos países com diferentes culturas,
posições sociais e estilos de vida que são expostas a sanitários lotados e
pouco higienizados e a patógenos alimentares raros em seus países de origem
(Organização Mundial da Saúde, 2002; Green & Roberts, 2002).
De acordo com o Ministério da Saúde da
Arabia Saudita (MSAS), esse número pode ser muito maior, pois grande parte das
epidemias de intoxicação alimentar não é relatada ao MSAS (Mazrou, 2004). Baseando-se
nos relatos que chegaram aos escritórios do MSAS, houve um grande aumento no
número de epidemias de intoxicação alimentar entre a Hajj de 1989 e 2002 (Ministério da Saúde da Arábia Saudita, 2002)
(figura 1). Porém, como os casos dependem da notificação por parte dos sistemas
de avaliação estatais, fica difícil ter certeza se o evento observado é
resultados de um aumento real do envenenamento dos alimentos ou simplesmente
uma melhora no sistema de avaliação (Mazrou, 2004). Mas o período de ocorrência
dessas epidemias vai de Junho a Agosto (período de férias escolares)
(Ministério da Saúde da Arabia Saudita, 2002) e durante a temporada da Hajj (Organização Mundial da Saúde,
2002; Green & Roberts, 2002).
Peregrinos reverenciando a Caaba |
As grandes causadoras destas epidemias
durante a Hajj são o Staphylococcus aureus, acometendo por
volta de 41% dos casos (Kurdi et al., 1998), e a Salmonella spp., acometendo por volta de 33% dos casos (Al-Turki et
al., 1998). Na Hajj de 1986, a causa
mais comum de internação foi a gastroenterite (76,6% das internações), com uma
taxa de incidência de 4,4 por 10 mil pessoas, sendo que 41% dos internados por
essa sintomatologia tinham mais de 60 anos (Ghaznawi & Khalil, 1986). Em
2002, essa doença acometeu 6,3% das internações, ficando atrás somente das
doenças respiratórias (57%) e das doenças cardiovasculares (19,4%) (Al-Ghamdi
et al., 2003). O Vibrio cholera
(causador do cólera) foi responsável por várias epidemias nas Hajjs de 1984-1986 (Onishchenko et al.,
1995ab), porém a melhora no sistema de distribuição de água e canalização do esgoto
praticamente aboliram a contaminação por cólera desde então.
Porém, o sistema de saneamento nos
locais de peregrinação ainda se mantém precário, o que pode acarretar o
surgimento de diversas doenças que se utilizam de outros vetores.
Tabela
1. Fatores que predispõem a doenças durante a peregrinação (Hajj). Adaptado de Memish et al., 2003.
Infecções
dermatológicas
Rituais prolongados de permanecer em pé,
andar, carregar ornamentos, o calor e o suor excessivo promovem infecções de
pele que são bem comuns aos peregrinos da Hajj.
Além disso, em algums áreas sagradas, os peregrinos precisam andar descalços em
locais onde o chão é extremamente quente devido ao sol do meio-dia, podendo
levar a sérios casos de queimaduras (Al-Qattan, 2000; Fried et al., 1996). Dos
1441 pacientes dermatológicos da cidade de Meca durante a Hajj, impetigos, carbúnculos, furúnculos, foliculites e eczemas
agravados por pioedemas foram os problemas mais comuns (Fatani et al., 2000, 2002).
Outro problema é o convívio com animais para posterior sacrifício, causando
contaminações por fezes e sangue em contato com cortes de mãos durante o
abatimento de animais, além do contágio por parasitas (Hawary et al., 1997)
(ver tópico risco de traumas).
Doenças causadas pelo
sangue – hepatites
Já se é conhecido de longa data o
potencial para a epidemia de hepatite associada à contaminação do sangue, de
alimentos e da água durante a peregrinação da Hajj (Zuckerman & Steffen, 2000; Khuroo, 2003). De um modo
geral, todas as hepatites dividem um mesmo modo de contaminação: contato com
sangue contaminado, dejetos humanos, contato com mucosas, alimentos e água
contaminados, etc (talvez possamos excluir as relações sexuais devido às
características culturais da Hajj,
descrita brevemente acima). Curiosamente, grande parte dos peregrinos que
executam a Hajj é de países endêmicos
aos diversos tipos de hepatite.
Frutas, particularmente as descascadas,
podem ser vetores de contaminação. Apesar de a Arábia Saudita ter banido a
entrada de alimentos provindo de peregrinos e visitantes (exceto enlatados para
serem consumidos em até 24 horas), 37% desses ainda trazem alimentos de seus
respectivos países (Alrabeh et al., 1998). Além disso, 34% dos peregrinos
compram alimentos de ambulantes e de lojas provisórias, muitos com padrões duvidosos
de higiene (Alrabeh et al., 1998). Outro fator preocupante é a não utilização
de sabonetes e detergentes (devido ao perfume) ou de álcool para mãos durante o
acampamento que ocorre em Mina. Outro
fator potencial é o contato pessoal durante os diferentes rituais, tais como a
caminhada de Safa-Marwah e a estadia
em Arafat.
A prática de raspar a cabeça pode
aumentar o risco de contaminação por hepatite e outras doenças de maior ou
menor morbi-mortalidade (Al-Salama & El-Bushra, 1998; Gatrad & Sheikh, 2001;
Rashid % Shafi, 2006). Ao final do festival, por volta de 90% dos homens tem
sua cabeça raspada por barbeiros locais ou outros peregrinos (Turkistani et
al., 2000). Em dois estudos separados, 61% dos peregrinos cujas cabeças foram
raspadas tinham cortes no escalpo (máximo de 18 cortes), e 25% dos barbeiros reaproveitavam
as lâminas (Alrabeh et al., 1998; Turkistani et al., 2000). Entre os barbeiros,
ao menos 4% tinham antígenos para o vírus da hepatite B, 0,6% tinham antígenos
para a hepatite C e 10% estavam contaminados pela hepatite C (Turkistani et
al., 2000). Num outro estudo de 1998, 23% dos barbeiros possuíam cortes abertos
nas mãos, 21% utilizavam a mesma lâmina para mais de um corte e 82% jogavam ao
menos uma lâmina usada no chão (aumentando a chance de alguém se cortar durante
a peregrinação) (Al-Salama & El-Bushra, 1998).
Os 3 pilares do Rito do Apedrejamento, depois substituídos por 3 muros, as pedras lançadas costumavam atingir os peregrinos do outro lado |
Como a utilização de drogas intravenosas
e a prática de sexo desprotegido não são efetuados devido às proibições
religiosas, a hepatite C pode ter seu vetor em transfusões de sangue e por
infecções nosocomiais durante a Hajj.
Num estudo com 689 peregrinos de 49 países (muitos dos quais endêmicos à
hepatite C) que foram admitidos ao menos em 1 dos 6 hospitais de campanha em
Meca para o tratamento de condições médicas diversas durante a Hajj de 2005, 5% (32 pessoas) foram
atendidas por sinais e sintomas de doenças hepáticas crônicas, e outras 5% (34
pessoas) por sangramento intestinas (Khan et al., 2005).
Febre Hemorrágica de Alkhumra
Esta é uma doença transmitida por um carrapato
(Ornithodoros savignyi) que leva a
uma encefalite viral por flavivírus, altamente associada à Hajj devido à movimentação de animais entre os peregrinos para
alimentação (Charrel et al., 2001, 2007; Zaki, 1997). Os sintomas clínicos da
febre de Alkhumra são típicos de
encefalites virais, tais sintomas semelhantes a resfriados, gripes e hepatite
(100%), manifestações hemorrágicas (55%) e encefalites (20%), sendo que a taxa
de mortalidade é superior a 30% (Zaki, 1997). Trinta e sete casos de infecções
pelo vírus Alkhumra foram relatados
somente em Meca entre os anos de 2001 e 2002 (Charrel, 2001, 2007; Zaki, 1997).
Um estudo mostrou que entre 1994 e 1995, a contaminação pelo vírus se deu por
meio de feridas na pele, picada de carrapatos ou consumo de leite de camelo não
pasteurizado (Charrel et al., 2005).
Febre do Vale do Rift
A febre do Vale do Rift é uma infecção
endêmica causada por flebovírus, sendo transmitida por mosquitos. Os sinais e
sintomas incluem hepatite e síndrome hepatorrenal e, quando hemorrágica, a taxa
de mortalidade é alta. No período de agosto a novembro de 2000, ocorreu na Arábia
Saudita uma epidemia da febre do Vale do Rift,
provavelmente causada pela importação de gado provindo da África para a Hajj (Madani et al., 2003). Apesar das
imposições do governo saudita sobre a importação de gado e a vacinação
compulsória, gado infectado foi identificado em 2004 (Davies, 2006).
Além dos animais serem assintomáticos ao
vírus, ele pode se disseminar facilmente durante o momento de abate do animal
quando o sangue sofre aspersão ou gotejamento por meio do corte da carne,
podendo atingir facilmente mucosas e locais de feridas (Davies et al., 2006).
Infecções Respiratórias
As infecções respiratórias são as causas
mais comuns de atendimentos nos hospitais durante a Hajj (57% do total de atendimentos), tendo-se a pneumonia como
principal doença para internação em 39% de todos os pacientes atendidos (Al-Ghamdi
et al., 2003). Os patógenos mais comuns são Haemophilus
influenza, Klebsiella pneumoniae e o Streptococcus pneumoniae, tendo-se as infecções
bacterianas responsáveis por 30% de todos os casos de internação (El-Sheikh et
al., 1998).
Durante a Hajj de 1994, 46 pacientes (72% dos internados) foram diagnosticados
com patógenos bacterianos e, desses, 13 (20%) continham Mycobacterium tuberculosis no escarro (Alzeer et al., 1998). Um
estudo envolvendo a resposta imune à tuberculose em 357 peregrinos originários
de Cingapura antes e 3 meses após a Hajj,
149 eram negativos antes de irem à Hajj.
Porém 15 deles (10%) continham anticorpos anti-tuberculose após 3 meses (Wilder-Smith,
2005). Num outro estudo com 761 pacientes com infecções do trato respiratório superior,
152 (20%) estavam contaminados por influenza A e adenovírus (El-Sheikh et al.,
1998). Extrapolando esse número e de outros estudos para o total de peregrinos que
visitaram Meca em 2003, os pesquisadores chegaram a uma conclusão na qual 400
mil peregrinos tiveram sintomas respiratórios com 24 mil casos potenciais de
influenza durante a Hajj (Ahmed et
al., 2006; Blakhy et al., 2004)
Doenças Cardiovasculares
As doenças cardiovasculares são a maior
causa de morte (43%) durante a Hajj (Ministério
da Saúde Saudita, 2005). Muitos pacientes têm ataques cardíacos durante a
peregrinação, sendo difícil a chegada do corpo de saúde para tentar a
ressuscitação devido à multidão e ao congestionamento de pessoas, de carros e de
animais. O calor, o esforço físico, a má alimentação e outros fatores
predispõem o organismo a um estresse físico que pode facilmente levar à
isquemia cardíaca.
Risco de Traumas
O trauma é a maior causa de
morbi-mortalidade nos dias de celebração da Hajj.
Num estudo com 713 pacientes que sofreram algum tipo de trauma
musculoesquelético durante a Hajj,
248 (35%) tiveram de ser atendidos nas unidades cirúrgicas e de tratamento
intensivo (Al-Harthi & Al-Harbi, 2001). Além disso, uma das grandes causas
de traumas musculoesqueléticos é o abate de centenas de milhares de animais, o
qual é feito em grande parte por leigos. Na Hajj
de 2001, 603.393 ovelhas e 6.136 vacas e camelos foram mortos (Memish et al.,
2003). Muitas vezes a morte do animal é feita por leigos sem qualquer
experiencia prévia e, como resultado, lesões acidentais nas mãos são comuns. Em um estudo de 4 anos com 298 pacientes com lesões
nas mãos relacionados ao abate de animais em Meca, 80% dos acidentes foram
causadas por facas (Rahman et al., 1999).
Conclusões
A Hajj
aglomera, por um curto período, um grande número de pessoas de diversas
culturas e diversos países. A participação na peregrinação de Meca possui
muitos perigos que podem ser evitados ou não, por isso medidas
sanitárias e a educação dos peregrinos são necessárias para evitar a ocorrência
de acidentes que, em grande parte, podem ser evitados. As autoridades sauditas
têm feito esforços neste sentido, mas nunca são suficientes para atenderem o
aumento anual de peregrinos.
Tabela 2. Perigos comunicáveis e não comunicáveis
que ocorrem durante a Hajj. Adaptado
de Memish et al., 2003.
Agora, diante deste quadro funesto, a
sensatez nos leva a refletir sobre o proveito em participar nesta apinhada
peregrinação anual, em tão grandes circunstâncias de risco, com o dispêndio de
tanto esforço, tempo e dinheiro, apenas em troca de uma demonstração de
submissão ao Islã e a Deus. Portanto, seria curioso investigar a força por trás
da crença na mente das multidões, que leva tantos fiéis a se submeterem a tal
sacrifício e a tamanha exposição ao risco, porém a limitação de espaço aqui nos
obriga a deixar este assunto para outra ocasião.
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Shimizu Bassi
Coordenador
da Sociedade Racionalista da USP
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da Cunha Botelho
Pesquisador
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