sexta-feira, 15 de junho de 2012

|ESTUDO| Abelardo e Heloísa: o Poder da Igreja Passou e o Romance Permanece



Octavio da Cunha Botelho

(Obs: este estudo está disponível em versão mais atualizada em: 


Pintura retratando Abelardo e Heloísa
Este artigo deveria ter sido postado no Dia dos Namorados (12/06/2012), mas em virtude da ocupação com outras tarefas, não foi possível prepará-lo até aquela data comemorativa. Embora com atraso, não é inconveniente sua postagem intempestiva, sobretudo por conta da comoção que esta história é capaz de provocar nos amantes. Pois, trata-se de um dos mais famosos casos de romance entre religiosos: o relacionamento romântico entre Pedro Abelardo (um padre, depois monge) e Heloísa (educada num convento, depois freira). O caso foi reproduzido na poesia, na música, na literatura, no teatro e no cinema.

Pedro Abelardo (1079-1142)

            Pierre Abélard (Pedro Abelardo) foi o mais notável teólogo de sua época. Nascido numa família de cavaleiros em uma cidade perto de Mantes, França, ele recusou a carreira de soldado para se dedicar aos estudos. Seu ardente interesse pelo debate o levou a Paris, onde logo se destacou por sua habilidade no uso da Lógica. Chegando lá, tornou-se aluno de Guilherme de Champeaux, o mais afamado dentre os mestres daquela época. Porém, “a simpatia inicial de Guilherme pelo jovem discípulo não tardou em converter-se em profunda antipatia, pois não contente de lhe criticar certas doutrinas, Abelardo ocasionalmente o derrotava nos debates escolares” (Gilson, 1995: 296). Assim, seu temperamento impetuoso o manteve em permanente conflito com a Igreja, por muitas vezes foi obrigado a alterar suas afirmações e a queimar seus escritos, mesmo assim sua produção literária é relativamente volumosa (Historia Calamitatum, caps. I e II; Gilson, 1995: 296-7 e 306-8).

Heloisa de Argenteuil (1101-1164)

Héloise (Heloísa) foi uma brilhante erudita, educada num convento, com conhecimento de Latim, de Grego e de Hebraico. Sabe-se que pertencia a uma família de status social inferior ao de Abelardo.  Ela foi uma protegida de seu tio Fulbert, um cônego de Paris. Em algum momento de sua vida, ainda na adolescência, ela tornou-se aluna de Abelardo, o qual já tinha se transformado em um dos mais populares professores e filósofos de Paris. Durante a convivência, os dois se apaixonaram e consequentemente iniciaram um romance secreto, ela era cerca de vinte anos mais nova, o qual resultou no nascimento de um filho, a quem deram o nome exótico de Astrolabius (astrolábio), instrumento de navegação utilizado para medir a altura das estrelas e dos astros acima do horizonte.

O romance com fim trágico

Abelardo e Heloísa sendo surpreendidos por Fulbert;
pintura de Jean Vignaud, 1819
            Eles se casaram em segredo, mas apesar da tentativa de encobrir os fatos, para não atrapalhar a carreira de Abelardo, o romance secreto foi descoberto pelo tio de Heloísa, Fulbert, o qual contratou alguns capangas para surpreender Abelardo, enquanto dormia, para então, em seguida, castrá-lo. Com a castração, Abelardo se tornou monge e Heloisa foi enviada como freira para o convento de Argenteuil, onde, em virtude de sua capacidade e de sua erudição, ocupou o cargo de abadessa, depois de alguns anos da sua chegada. Mesmo depois de separados, os dois amantes mantiveram uma apaixonada e erudita correspondência, escrita durante os quase quinze anos após a separação. Assim, Heloísa incentivou Abelardo em seu trabalho filosófico e ele dedicou sua profissão de fé a ela.
A leitura destas cartas, bem como da história deste trágico romance, comovem muitos amantes. Trata-se de uma das mais emocionantes histórias de amor que temos conhecimento, sobretudo nos angustiantes anos da separação. Esta dramática história foi reproduzida na poesia, na literatura, na música, no teatro e no cinema. O livro mais popular é o da escritora Marion Meade, Stealing Heaven, adaptado para o cinema num filme homônimo, mas lançado no Brasil com o título de Em Nome de Deus, de 1988, dirigido por Clive Donner, estrelado por Derek de Lint (Abelardo), Kim Thomson (Heloísa) e Denholm Elliot (Fulbert). O filme fez muito sucesso nas locadoras nos anos do boom do VHS. Na poesia, ficou conhecida a frase do poeta Alexander Pope atribuída à Heloísa “eternal sunshine of the spotless mind” (brilho eterno da mente pura), a qual foi recentemente utilizada no título de um filme de Michel Gondry, estrelado por Jim Carrey, Kate Winslet e Kirsten Dunst, lançado no Brasil com o título de “Brilho Eterno de uma Mente sem Lembrança”.  O poema “Eloisa to Abelard” de Alexander Pope foi incluído num apêndice na edição inglesa de Israel Gollancz das cartas de Abelardo e Heloísa, de 1901 (p. 96-109).

Algumas reflexões

            Numa época quando ouvimos tão frequentemente sobre casos de pedofilia e de homossexualismo no meio religioso, sem punição, nos indignamos ao saber de um casal que tentou o amor, em sua forma mais natural, mas foi tão duramente punido. Se transpusermos o rigor da punição recebida pelo casal medieval para os casos de pedofilia e de homossexualismo, qual será a punição proporcional e equivalente para estes últimos casos? Será que estes casos também não aconteciam na Idade Média? Se Abelardo foi castrado, que punição mereceria um pedófilo naquela época? 
O mausoléu de Abelardo e Heloísa
A punição de Abelardo com a castração retrata a mentalidade obsessiva da época medieval na Europa, quando a religião (Cristianismo) dominava a vida das pessoas em tudo e para sempre, desde o nascimento ao funeral, com isso o rigorismo moral regia a vida da sociedade. Não existia outro tribunal de apelação, senão o da Igreja.
A lição que permanece deste trágico caso medieval é que Abelardo e Heloísa, apesar das punições e do sofrimento, aos quais foram submetidos, deixaram uma mensagem de triunfo sobre a religião, pois o relacionamento que procuraram cultivar, o romance, continua vivo e florescente até os dias de hoje, tanto nas vidas dos casais, como na poesia, na literatura, no teatro, na música e no cinema; enquanto que o relacionamento com deus, de lá para cá, só acumulou decadência, ou seja, a religião, de poder regente e cultura dominante nas vidas das pessoas, transformou-se em subalterna assistente e mera consoladora para os desamparados e desinformados respectivamente. De modo que, o que encontramos nos dias de hoje não é mais a religião dos tempos gloriosos, mas sim o resto da religião.

Bibliografia

BELLOWS, Henry A. (tr.) Historia Calamitatum: The Story of My Misfortunes. New York: Macmillan, 1972.
GILSON, Etienne e Philotheus Boehner. História da Filosofia Cristã. Petrópolis: Vozes, 1995, p. 295s.
GOLLANCZ, Israel (ed.). The Love Letters of Abelard and Heloise. London: J.M. Dent and Co., 1901.

MEADE, Marion. Stealing Heaven: The Love Story of Heloise and Abelard. New York: E-rights/E-reads Ltd Publishers, 2010.  

4 comentários:

  1. é preciso distinguir religião e fé. Religião, no caso, o catolicismo,
    ainda comete erros, porém fé num ser absoluto que energisa para o bem e a vida no caso Deus que faz o homem alçar sua mais profunda subjetividade penso que é outra coisa. ver kierkegaard.

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