Octavio da Cunha Botelho
(Obs: este estudo está disponível em versão mais atualizada em:
http://observadorcriticodasreligioes.wordpress.com/2014/01/07/o-que-e-o-mantra-sem-a-mistificacao/)
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Algumas décadas atrás, qualquer praticante de yoga no Ocidente era obrigado a explicar
o significado da palavra mantra para
os outros, quando o assunto surgia. Hoje, a palavra alcançou uma popularidade tal
que não é mais necessário explicá-la. Ao mesmo tempo, seu significado popular e
na mídia desviou para um sentido que não corresponde mais precisamente àquele
atribuído pelos seus criadores: os hindus. Mantra
passou a significar, no seu sentido mais corrente, qualquer palavra, frase ou slogan repetitivos. O breve estudo
abaixo pretende, num primeiro momento, esclarecer o significado original do mantra sustentado pelos seus adeptos e,
num segundo momento, analisar criticamente este significado fantástico e o efeito
persuasivo do mantra sobre a mente do
praticante.
O que é o mantra
O interesse pelas propriedades encantadoras do som fez
os indianos antigos desenvolveram, desde cedo, uma sofisticada arte e uma aprimorada
técnica de manipulação do poder do som. Diferente dos gregos antigos, os hindus
não perceberam este poder tanto no discurso (oratória), mas sim na sonoridade
da palavra falada, daí a constante constatação da dificuldade dos antigos
compositores e exegetas hindus com o raciocínio discursivo. Não se tem
informação da existência de oradores ou de algum tratado sobre retórica na
Índia antiga. Sua obsessão era pelo encantamento da linguagem, o que os levou,
em seguida, a desenvolverem fórmulas condensadas com alta carga de
expressividade que ficaram conhecidas como mantras,
os quais alguns preferem traduzir como “sons de poder”, “sons mágicos” ou
“fórmulas de encantamento”. “Os mantras
são particularmente importantes no Hinduísmo. Os mantras acompanham os rituais da vida diária no Hinduísmo; um hindu
vive e morre cercado de mantras,
desde o ventre da mãe até a pira funeral. Manuais de mantras são publicados por toda a Índia” (Smith, 2001: 263).
A rigor, a arte da entoação de mantras não é nem aquela noção depreciativa que se conhece
popularmente, ou seja, a repetição mecânica de sons sem sentido, tampouco o
conceito delirante de admiradores e de praticantes que atribuem a estes sons
místicos poderes fabulosos. Portanto, para conhecer a perspectiva crédula e
lisonjeira do mantra, consultar o
livro Healing Mantras (Mantras que Curam) de Thomas
Ashley-Farrand ou o site do autor: www.sanskritmantra.com/what, onde são reproduzidos trechos do seu trabalho e a
oferta de muitos CD’s com a gravação de mantras
para diversos fins, e para conhecer a perspectiva da yoga: www.dlshq.org/teachings/japayoga.htm. Também consulte a coletânea de definições e de
explicações traduzida para o português sobre mantras budistas do ponto de vista laudatório em: www.dharmanet.com.br/vajrayana/mantra. Para ouvir online a quantidade
de cerca de 40 mantras hindus,
consulte: http://hubpages.com/hub/popular-sanskrit-mantras-in-hindu-religion; para ouvir a entoação completa dos hinos (mantras) dos quatro Vedas por pandits do sul
da Índia acesse: www.astrojyoti.com/vedamp3.htm, de todos os 18 capítulos do texto do Bhagavad Gita: www.astrojyoti.com/bhagavadgeeta.htm e para ouvir
mantras e dharanis budistas pelo Youtube: www.wildmind.org/mantras.
Os delírios sobre a auspiciosidade destes sons
místicos podem ser encontrados em afirmações tais como “o que há de impossível
para os mantras realizarem, se eles
forem praticados conforme as regras?” ou “através dos sussurros repetidos dos mantras, um poder tal é gerado que pode
maravilhar o mundo inteiro”, “o mantra
de Ekajatâ é tão poderoso que, no
momento que é murmurado, a pessoa torna-se livre do perigo, é sempre seguida
pela boa sorte, seus inimigos todos são destruídos e, sem dúvida, ele se torna
tão piedoso como o Buda”, e exemplos como estes podem se multiplicar
(Bhattacharyya, 1989: 57-8). Contudo, quando entendido de uma perspectiva
sóbria, o mantra pode ser considerado
o resultado de uma engenhosa técnica de exploração dos recursos da linguagem e
do som para produzir encanto, muito avançada para os padrões da Antiguidade,
quando comparada com os povos contemporâneos. Foi utilizado com objetivos muito
diversificados, de modo que foram inventados mantras que vão desde a tentativa de expulsar o demônio das
doenças, enfeitiçar ou destruir inimigos, conseguir um bom casamento, até o uso
religioso em rituais de sacrifícios, cultos, sacramentos, invocação de deuses e
deusas, bem como a repetição (japa mantra)
a fim de obter o controle mental preparatório para a meditação (dhyana) na prática de yoga. Com o tempo, apareceram as
compilações de mantras na forma de
antologias, a mais conhecida e publicada é a Mantra Mahodadhi (Grande Oceano de Mantras), de autoria de Mahidhara,
composta no século XVI e.c, inclusive com traduções para o inglês. Enquanto
que, a mais elaborada tentativa de sistematizar as dispersas concepções
metafísicas sobre o poder do som e os mantras
na literatura tântrica é a obra The
Garland of Letters (A Grinalda das Letras) de John Woodroffe (primeira
edição 1922), com o objetivo de apresentar uma organizada doutrina metafísica
do mantra.
A etimologia da palavra é, em parte, duvidosa. A
primeira parte “man”, mais seguramente,
deriva da raiz verbal “pensar”, enquanto que a segunda “tra” é controvertida. Alguns conjeturam que significa
“instrumentalidade” e com isso mantra
poderia significar “instrumento do pensamento” (Stutley, 1977: 181). Outra
sugestão para a origem de “tra” é da
raiz verbal “trai” (proteger,
defender), que no particípio passado é “trâna”
(protegido) e o substantivo é “trânam”
(proteção) (Apte, 1978: 486), portanto algo como “proteção mental”. John
Woodroffe traduziu “trâna” como
“liberação do cativeiro do mundo fenomenal (samsâra)”
(1985: 276 e Bhattacharyya, 1987: 448; também Smith, 2001: 263 e Yelle, 2003:
11).
Em linhas gerais, um mantra pode estar no formato de:
a) um verso (rik, shloka ou gayatri), tal como o Gâyatrî Mantra;
Em linhas gerais, um mantra pode estar no formato de:
a) um verso (rik, shloka ou gayatri), tal como o Gâyatrî Mantra;
b) uma frase (vakya),
tal como em Om Namah Shivâya ou em Om Namo Narâyanâya;
c) uma palavra (pâda),
tal como em Soham (eu sou aquele ser
supremo);
d) um hino (sûkta,
strotam ou stuti), tal como o Purusha
Sûkta ou o Durgâ Stotram;
e) ou até mesmo uma simples sílaba (bîja), tal como em OM, hrim,
shrim ou phat.
O Mantra na disciplina yóguica
No período pós-védico da Índia, a concepção e o método
de praticar o mantra sofreram
alterações consideráveis com a crescente penetração das técnicas de yoga na disciplina hindu. A partir daí,
a prática começou a interiorizar, ou seja, a disciplina mental passou a ser
mais importante do que as rígidas regras de pronúncia e de entoação prescritas
pelos sacerdotes dos ritos. A introdução
da repetição de fórmulas curtas de invocação de divindades (japa mantra) revolucionou a prática.
Esta novidade colocou mais ênfase na disciplina mental durante a entoação do
que a observação das minuciosas regras de pronúncia e de entoação, com isso
recebeu mais flexibilidade e pôde então se popularizar, rompendo assim os
rígidos requisitos do ritualismo brahmânico. Não era mais preciso passar por
aquele longo treinamento em língua sânscrita e em rituais védicos para se
praticar. Na yoga, o mais importante
é a atitude mental de devoção e de concentração no momento da prática, em
outras palavras, a disciplina interna é mais importante do que a formalidade
externa. Assim, a devoção (bhakti) e
a fé (shraddhâ) passaram a serem
ingredientes fundamentas na entoação. Ademias, o mantra foi combinado com exercícios de respiração (prânayâma) e com a invocação de uma
divindade de adoração (ishta devatâ).
Enfim, o sistema da yoga promoveu uma
grande revolução na prática do mantra
dentro do Hinduísmo. Com esta diversificação, a repetição (japa) dos mantras passou
a ser classificada da seguinte maneira segundo a forma de pronunciar:
a) vaikhari japa: repetição em voz alta;
b) upamshu japa: repetição em forma de sussurro e
c) manasika japa: repetição mental.
Assim, é mais comum se encontrar a afirmação,
sobretudo entre os iogues, de que a repetição mental (manasika japa) é a mais eficaz, o que atesta o desenvolvimento e a
diversificação no entendimento e na técnica no Hinduísmo tardio, que conduziu à
interiorização do mantra.
Para os hindus, o mantra
OM é o mantra por excelência, o
maior dos mantras, o som primordial,
ou seja, o primeiro som emanado do ser supremo (Brahman) que produz todos os outros sons, de forma que, para eles,
tudo no universo está contido em OM.
Sendo assim, aparece no início ou no fim da maioria dos mantras.
Com a popularização na Índia, o mantra passou a ser definido conforme a corrente ideológica que o
utilizava. De maneira que foi conceituado como sons de poder que protege o
devoto, ou que efetua a comunhão com a divindade adorada, ou que liberta o
praticante do ciclo de nascimentos e mortes (samsâra), ou que conduz à libertação final (moksha), ou que efetua a aparição (darshana) da divindade invocada, ou que conduz o iogue à união com
o ser supremo (Brahman), etc., e até
aqueles ecumênicos que entendem que o mantra
é capaz de levar a realização de todos estes objetivos (para conhecer esta
visão ecumênica, acesse: www.dlshq.org/teachings/japayoga.htm.). A diversificação do conceito e a simplificação da
prática levaram o mantra hindu a ser
importado, de maneira adaptada, pelo Budismo e pelo Jainismo (para conhecer mantras
jainistas, consulte: www.terapanth.com.)
Agora, do ponto de vista da ortodoxia hindu, sobretudo
do sistema Mîmâmsâ, com sua firme
crença no fundamento da arte dos mantras
na língua sânscrita e na sua correspondência natural com os objetos da criação
faz, na estrita visão dos hindus, o mantra
se diferenciar da oração e dos hinos de louvor. Portanto, a rigor, o mantra não deve ser identificado com a
oração, como é feito por muitos autores ocidentais. Tampouco pode se falar de mantras em outras línguas tais como mantras do budismo tibetano, chinês ou
japonês. Por exemplo, o conhecido mantra
sânscrito do Budismo Mahâyana “OM mani padme hum” (OM, a jóia no lótus, hum)
é pronunciado no budismo tibetano como “OM
mani peme hung” (para ouvir a pronúncia tibetana deste mantra, acesse: www.dharma-haven.org/tibetan/meaning-of-mani-padme-hung, portanto segundo as rígidas regras de pronúncia dos
sacerdotes hindus, esta simples alteração é suficiente para desaparecer o poder
místico.
Por outro lado, alguns consideram que “os mantras, tal como muitos outros
fenômenos místicos, são arcaicos; tão arcaicos que de fato eles são os
predecessores da linguagem no processo da evolução humana” (Smith, 2001: 263).
Análise crítica
Bem, mudando de perspectiva e deixando de lado as
explicações mirabolantes e os resultados auspiciosos proclamados pelos adeptos
do mantra, os quais podem se
multiplicar ad infinitum, a fim de
que seja possível aqui uma análise com os pés no chão destes sons encantadores.
A rigor, o que na realidade fez desta técnica de encantamento um meio tão
eficaz de atração e de manutenção de praticantes foi o fato de ser uma poderosa
ferramenta de auto-persuasão, em outras palavras, um instrumento eficiente de
manipulação ideologia através da auto-sugestão. O mantra, com efeito, funciona maravilhosamente como uma ferramenta
auto-persuasiva que é capaz de desenvolver e complementar outras persuasões
ideológicas previamente instaladas na mente do adepto, como continuação e
reforço da prévia doutrinação recebida da comunidade mística na qual convive.
Não resta dúvida que as sugestões de origem externa ganham força adicional
quando combinadas com as auto-sugestões do praticante e, do mesmo modo, as
auto-sugestões se tornam mais fortes quando sustentadas pelo ambiente
religioso. Esta sinergia é estratégica para a obtenção da persuasão plena, sendo
assim um forte reforço para a convicção do adepto. Robert Yelle sugere que “eles (os mantras)
constituem uma espécie de retórica, sua forma poética contribui para a crença
em sua eficácia” (Yelle, 2003: 59). Em suma, o mantra será sempre mais efetivo quanto mais o praticante estiver
pré-disposto e doutrinado a acreditar em seus resultados, de forma que o mantra só tem efeitos sobre aquelas
pessoas suscetíveis à persuasão.
Ademais, parece que os hindus foram os primeiros a
perceberem que a repetição tem poder persuasivo. A criação no passado daquelas
fórmulas curtas para se repetir muitas vezes (japa), 108 vezes é a mais utilizada, tais como Om namah Shivâya, Om namo
Bhâgavate Vasudevâya, Om namo Narâyanâya, etc., provou ser favorável à
penetração inconsciente da mensagem (Yelle, 2003: 12). Esta técnica repetitiva
deve ter sua origem na descoberta do mecanismo da mente de aceitar como verdade
uma frase repetida ou ouvida muitas vezes. Quando os publicitários
contemporâneos perceberam esta vulnerabilidade do mecanismo da mente, logo
passaram a elaborar anúncios que martelam a mente do ouvinte, do telespectador
ou do leitor com mensagens repetitivas na tentativa de que sejam aceitas como
verdade. É por isso que assistimos a tantos comerciais repetitivos na TV. A
repetição da veiculação dos anúncios é denominada tecnicamente de freqüência entre os profissionais de mídia: “Se você pensar nos
comerciais dos quais se lembra, os que têm mais possibilidade de lhe vir à
mente são aqueles que você viu ou ouviu mais de uma vez, isto é, para uma
mensagem ser realmente eficaz em termos de comunicação com o público-alvo, em
geral ela ter de ser transmitida mais de uma vez” (Katz: 2004: 127-32). Daí em
diante, a repetição passou a ser uma técnica publicitária de persuasão.
Numa época quando ainda não existia a psicologia
científica e a ciência da persuasão, os hindus confundiram o poder persuasivo
dos mantras com um imaginário poder
místico. Que o mantra tem efeito e
transforma uma pessoa, isto é um fato e os místicos podem até se gabar, agora,
a natureza persuasiva deste poder é que não é cientificamente reconhecida pelos
praticantes, por atribuir-lhe origem sobrenatural. Estritamente falando, o
poder influente do mantra é o mesmo
poder do encantamento e da sedução, que é o poder que abre a porta para a
persuasão entrar na pessoa vulnerável. Em tempos pré-científicos, portanto sem
os conhecimentos científicos da psicologia e da neurociência, os antigos hindus
ficaram maravilhados com este poder e o conceberam como um poder sobrenatural
que, ao contrário, é tão natural quanto o poder de encantamento da arte
plástica, da poesia, da música e da sedução. Enfim, o mantra chegou a ter o poder que tem devido a sua engenhosa e
estratégica sinergia entre a arte de auto-persuasão pelo encantamento e a
doutrinação religiosa recebida de fora. Trata-se da colocação do poder do
encantamento a serviço da ideologia, e neste sentido os hindus foram
engenhosos, tal como é possível alcançar os mesmos efeitos com os hinos
religiosos, com os hinos nacionais, com os hinos dos times de futebol e com as
marchas militares, ou seja, a música a serviço da ideologia ou da paixão, com a
diferença que os hindus revestiram o mantra
com um caráter sobrenatural e místico.
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