Octavio
da Cunha Botelho
A intenção era postar o artigo abaixo até o Dia das Mães no último domingo, mas o acúmulo de outras tarefas impossibilitou a sua finalização até aquela data. Trata-se de um breve estudo sobre as fontes de informações da Virgem Maria, a Mãe de Deus, como também é conhecida. Poucos cristãos e ocidentais sabem que ela é muito mais mencionada nos textos extra-canônicos e no Alcorão, do que nos próprios evangelhos canônicos. O livro sagrado dos muçulmanos, por exemplo, possui até um capítulo (sura XIX) com o nome de Maryam (Maria). A razão para encontramos tantas representações artísticas de Maria, inexistentes nos breves relatos canônicos, é que muitas delas foram extraídas das lendas e das tradições registradas nos evangelhos apócrifos, sobretudo no Protoevangelho de Tiago. A partir deste último texto, por fim, serão analisadas brevemente as circunstâncias desesperadoras que precederam o nascimento de Maria.
Maria,
a Mãe de Deus, nos Evangelhos Canônicos
Ela é conhecida pelas denominações
de a Virgem Maria, a Mãe de Deus, Nossa Senhora, a Rainha do Céu, Madonna e Theotokos (a Geradora de Deus, pelos
seguidores das igrejas ortodoxas e orientais). Também, recebeu nomes conforme a
ocorrência de supostos milagres em certas regiões, cujos mais conhecidos são:
Nossa Senhora Aparecida no Brasil, Virgem de Guadalupe no México, Nossa Senhora
de Fátima em Portugal, Virgem de Lourdes na França e Santa Brigite na Irlanda. Sua
imagem foi motivo de uma prolífera produção artística, sobretudo a partir da
Idade Média. No entanto, sua veneração não é hegemônica em todo o Cristianismo.
Os protestantes atribuem respeito, mas dão pouca importância para a sua
devoção. As correntes que a veneram são: o Catolicismo, as Igrejas Ortodoxa, Oriental
e Anglicana, e até certo ponto os espíritas kardecistas. Os primeiros concílios
cristãos estabeleceram uma hierarquia para a adoração (dulia, hyperdulia e latria), ou seja, dulia (veneração) é própria para os anjos, hyperdulia (hiperveneração) é própria para a Virgem Maria e latria (adoração) é somente para Jesus
(Miegge, 1955: 180). A ratificação para a veneração da Virgem Maria pelos
católicos aconteceu no Segundo Concílio de Nicéia em 787 e.c., e a ratificação
pelos ortodoxos no Sínodo de Constantinopla em 842 e.c., numa época quando as
duas igrejas (católica e ortodoxa) estavam começando a se separarem, por isso
as decisões independentes.
Nos primeiros séculos do
Cristianismo, foi influente na disseminação a prática dos Kollyridians, uma obscura seita cristã que substituía a deusa pagã
por Maria e oferecia sacrifícios a ela. Esta seita desapareceu logo quando a
veneração de Maria se tornou universalmente aceita na Igreja (Benko, 2004: 18).
Consequentemente, depois de Jesus, a
figura mais venerada no Cristianismo é a Virgem Maria, entretanto, é um fato curioso
observa a brevidade do seu relato nos evangelhos canônicos. A passagem mais
extensa está no Evangelho de Lucas (I:26-56), com outras breves menções aqui e
ali nos quatro evangelhos. De modo que, muito do que se conservou sobre Maria
foi extraído das tradições que circulavam, nos primeiros anos do Cristianismo,
fora dos textos canônicos e, destas tradições, o relato escrito mais extenso
foi preservado no Protoevangelho de Tiago, um texto apócrifo do século II e.c.
(Elliott, 1993: 49 e Ehrman, 2003: 63), o qual será analisado abaixo.
Maria no Alcorão
Curiosamente, ela é muito mais
mencionada no Alcorão do que nos evangelhos canônicos, são 34 referências
diretas ou indiretas, reunindo uma quantidade de informações muito maior que a
do Novo Testamento. O livro sagrado dos mulçumanos possui até um capítulo (sura) com o nome de Maryam (Maria), sura XIX, com 98 versos, mas o relato sobre Maria vai apenas até o
verso 36. Também, a sura III, Al-Imran (a Família de Imran), versos 35-51, relata
resumidamente o nascimento milagroso de Maria até os primeiros anos da vida de
Jesus. Assim, o Alcorão admite a virgindade de Maria e reconhece Jesus como um
profeta enviado por deus, mas não o reconhece como o Messias: “Cristo, o filho
de Maria, não foi nada mais que um apóstolo, muitos foram os apóstolos que
passaram antes dele...” (V:75 – Ali, 1934: 266). Jesus é conhecido como Isa no Alcorão, onde é mencionado 25
vezes através da expressão “Isa Ibn
Maryam” - Isa, o filho de Maria
(III:42-59; V:75; IV:157-9 e 171; V:72-5 e 110-7). Maria é altamente estimada
no Alcorão: “... os anjos disseram: Ó Maria, Deus tem te escolhido e te
purificado, te escolhido acima das mulheres de todas as nações” (III:42 – Ali,
1934: 134 e Challita, 2002: 29). Daí que o Alcorão reconhece o dogma da
imaculada concepção: “Ela (Maria) disse: Ó Senhor! Como poderei ter um filho
quando nenhum homem me tocou? Ele (o Senhor) disse: Que assim seja. Deus cria o
que lhe deseja. Quando ele decreta um plano, ele apenas diz: que seja, e assim
é” (III:47 – Ali, 1934: 135 e Challita, 2002: 29). Ela foi alimentada por deus
durante sua permanência no templo no período da sua infância e adolescência (III:37
– Ali, 1934: 132 e Challita, 2002: 29), já no Protoevangelho de Tiago é
mencionado que ela foi alimentada por um anjo (VIII: 01).
Apesar de não ser possível confirmar
com absoluta certeza a historicidade de todos os dados registrados nos livros
sagrados, mesmo assim Anwar Hekmat aponta alguns erros históricos e
cronológicos nas passagens sobre Maria no livro sagrado dos muçulmanos. Na
passagem XIX:28 (“Ó irmã de Arão...”), Maria é mencionada como irmã de Arão,
para Hekmat “isto é um erro, Maria não teve um irmão com o nome de Arão, na
verdade, ela não teve nenhum irmão. Parece que neste caso Maomé confundiu as
tradições judias e cristãs. Ele pode ter ouvido falar que a irmã de Arão e
Moisés era chamada Miriam (Maryam em
árabe) e enganadamente pensou que Miriam era a mesma pessoa que a mãe de Jesus”
(Hekmat, 1997: 11). Em seguida prossegue: “Um erro similar acontece no capítulo
três do Alcorão. Aqui a mãe de Maria (a mãe de Jesus) é descrita como a esposa
de Imran (III:35). Todo cristão sabe
que a mãe de Maria (Ana) não foi esposa de Imran.
Nestes casos, Maomé claramente cometeu erros cronológicos” (Hekmat, 1997:11). No
Protoevangelho de Tiago o nome do pai de Maria é Joaquim.
A possibilidade de Maomé cometer
erros é muito evidente, uma vez que era analfabeto e tudo que conheceu foi
extraído das suspeitas revelações do arcanjo Gabriel e das conversas com outras
pessoas, muitas delas também analfabetas ou semianalfabetas. A região na qual
ele viveu era muito primitiva culturalmente na época, de modo que o índice de
analfabetismo era muito alto. A região estava localizada na periferia do
Império Bizantino, portanto distante e desprovida de intercâmbios com os
grandes centros culturais da época (Constantinopla, Roma, Alexandria e outros).
Hekmat conclui com as seguintes críticas mordazes contra Maomé e o Alcorão: “É
praticamente impossível atribuir tais erros a um homem alfabetizado e
inteligente, ainda mais a uma divindade infalível. Alguns versos do Alcorão são
tão repugnantes à lógica e ao raciocínio que só poderiam ser atribuído a uma
pessoa analfabeta e fanática, que se retirou em seu próprio mundo pequeno,
desprovido de senso comum e ignorante das condições sociais de seus países
vizinhos contemporâneos” (Hekmat, 1997: 11-2).
Existe outra passagem do Alcorão até
certo ponto cômica, extraída do Evangelho Árabe da Infância (Platt, 1926: 38 e
Elliott, 1993: 102), na qual Jesus, ainda bebê no berço, fala com outras
pessoas ao seu redor (Alcorão, XIX: 30-3).
Parece
que as fontes das tradições sobre Maria incluídas no Alcorão são as registradas
no Protoevangelho de Tiago, no Evangelho Árabe da Infância, no Evangelho de
Pseudo-Mateus e no De Nativitate Marie
(Sobre o Nascimento de Maria), os dois últimos são composições latinas mais
tardias, porém todos são textos apócrifos. A fonte de todos eles é provável que
seja o Protoevangelho de Tiago.
Maria
no Protoevangelho de Tiago
Este
foi um dos mais importantes e influentes dentre os evangelhos apócrifos, haja
visto pelos mais de cem manuscritos ainda existentes (Elliott, 1993: 48 e
Ehrman, 2008: 306). O texto é chamado de “Protoevangelho” porque narra eventos
anteriores ao nascimento e a infância de Jesus, ou seja, ao nascimento e a
infância de Maria, mãe de Jesus. Sua influência foi grande na arte medieval, de
maneira que muitos motivos de Maria e o menino Jesus, que não reproduzem as
descrições dos evangelhos canônicos, são inspirados nas lendas e nas tradições
registradas neste evangelho. Apesar da atribuição da autoria a Tiago no próprio
título do evangelho, sua autoria é desconhecida. Especialistas datam sua
composição na segunda metade do século II e.c. (Elliott, 1993: 49 e Ehrman:
2008: 305), pois foi mencionado por Justino (morto em 165 e.c.) e por Celso
(que escreveu em 170 e.c.). Bart D. Erhman o considera uma falsificação da
proto-ortodoxia cristã (Ehrman, 2008: 303). Deste exemplo é possível dimensionar
o tamanho da extravagância que era a composição de textos fabulosos naquela
época, pois até a ortodoxia incipiente rejeitava as composições de seus próprios
partidários, de forma que este evangelho não foi reconhecido como canônico.
A atribuição da autoria deste
evangelho a Tiago, irmão de Jesus, foi a principal razão para o não
reconhecimento deste texto como canônico por Jerônimo, o estudioso mais
influente do século IV, pois este fato contrariava o então incipiente dogma da
perpétua virgindade de Maria. Com isso, o texto foi banido do Cristianismo
latino, daí a razão para o desaparecimento dos manuscritos em Latim, mas
continuou popular no Cristianismo Oriental, como evidencia o grande número de
manuscritos gregos (Ehrman, 2008: 306).
Tal como os demais evangelhos, o
Protoevangelho de Tiago justapõe relatos históricos e mitos criados pelos
primeiros cristãos.
O
desespero dos pais de Maria
O Protoevangelho de Tiago inicia
narrando os eventos, muito provavelmente mitológicos, que antecederam o nascimento
de Maria. Seu pai, Joaquim, era um homem rico, mas o casal não tinha filhos,
uma vez que sua esposa, Ana, era estéril.
Chegado o dia da grande festa do Senhor, Joaquim se preparava para fazer
sua oferenda, quando um homem chamado Ruben tomou-lhe a frente e disse; “Não te
é lícito oferecer tuas dádivas, enquanto não tiveres gerado um rebento em
Israel” (I: 02).
Joaquim ficou imensamente aborrecido
com o ocorrido. Seu aborrecimento foi tanto que ele se dirigiu aos arquivos
para saber se ele era o único que não tinha gerado filho em seu povoado. Ao descobrir que somente ele não tinha gerado
descendentes, ficou ainda mais aborrecido e entrou em desespero (I: 03). O
tormento foi tanto que não regressou para sua casa a fim de encontrar sua
mulher, retirando para o deserto. Ali armou uma tenda e jejuou por quarenta
dias e quarenta noites, dizendo a si mesmo: “Não sairei daqui, nem sequer para
comer e beber, até que o Senhor meu Deus me visite, que minhas preces me sirvam
de comida e de bebida” (I: 04).
Ao saber disto, sua mulher, Ana, também entrou
em paranoia. Considerando seu marido como um morto, vestiu roupas de luto e
passou a se lamentar dizendo: “Chorarei minha viuvez e minha esterilidade” (II:
01). Após um período de tormento, um anjo apareceu para ambos e lhes informou
que deus ouviu suas preces e que Ana teria uma criança. A esta criança foi dado
o nome de Maria. De modo que, a avó de Jesus (Ana), tal como sua mãe (Maria),
também teve concepção milagrosa. Daí em diante o texto assemelha-se a um conto
de fadas.
Agora, especialistas e historiadores
observam que a proibição de entregar sua oferenda não era uma regra do Judaísmo
daquela época, daí a conclusão que este texto não foi composto por um autor
judeu, portanto não pode ser de autoria de Tiago, irmão de Jesus.
Bem, é interessante observar como um
homem pode se desesperar tanto por não ter um filho, e uma esposa se desesperar
tanto ao ponto de vestir roupas de luto antes mesmo de ter a evidência da morte
do marido. Isto chega a ser mais cômico do que significativamente religioso. Agora, será que eles sobreviveram por tempo
suficiente para saber que seu neto (Jesus) não quis ter filhos? Se por acaso
sobreviveram, será que Joaquim (avô de Jesus), que tanto se aborreceu por não
ter um filho e se sacrificou tanto para obtê-lo, aprovaria a decisão de seu
neto (Jesus) de não ter filho?
BIBLIOGRAFIA
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PLATT Jr., Rutherford H. The Lost Books of the Bible. New York: Alpha House, 1926.
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