quarta-feira, 16 de maio de 2012

|ESTUDO| A Mãe de Deus é Filha de um Casal em Desespero


Octavio da Cunha Botelho

A intenção era postar o artigo abaixo até o Dia das Mães no último domingo, mas o acúmulo de outras tarefas impossibilitou a sua finalização até aquela data. Trata-se de um breve estudo sobre as fontes de informações da Virgem Maria, a Mãe de Deus, como também é conhecida. Poucos cristãos e ocidentais sabem que ela é muito mais mencionada nos textos extra-canônicos e no Alcorão, do que nos próprios evangelhos canônicos. O livro sagrado dos muçulmanos, por exemplo, possui até um capítulo (sura XIX) com o nome de Maryam (Maria). A razão para encontramos tantas representações artísticas de Maria, inexistentes nos breves relatos canônicos, é que muitas delas foram extraídas das lendas e das tradições registradas nos evangelhos apócrifos, sobretudo no Protoevangelho de Tiago. A partir deste último texto, por fim, serão analisadas brevemente as circunstâncias desesperadoras que precederam o nascimento de Maria.

Maria, a Mãe de Deus, nos Evangelhos Canônicos

            Ela é conhecida pelas denominações de a Virgem Maria, a Mãe de Deus, Nossa Senhora, a Rainha do Céu, Madonna e Theotokos (a Geradora de Deus, pelos seguidores das igrejas ortodoxas e orientais). Também, recebeu nomes conforme a ocorrência de supostos milagres em certas regiões, cujos mais conhecidos são: Nossa Senhora Aparecida no Brasil, Virgem de Guadalupe no México, Nossa Senhora de Fátima em Portugal, Virgem de Lourdes na França e Santa Brigite na Irlanda. Sua imagem foi motivo de uma prolífera produção artística, sobretudo a partir da Idade Média. No entanto, sua veneração não é hegemônica em todo o Cristianismo. Os protestantes atribuem respeito, mas dão pouca importância para a sua devoção. As correntes que a veneram são: o Catolicismo, as Igrejas Ortodoxa, Oriental e Anglicana, e até certo ponto os espíritas kardecistas. Os primeiros concílios cristãos estabeleceram uma hierarquia para a adoração (dulia, hyperdulia e latria), ou seja, dulia (veneração) é própria para os anjos, hyperdulia (hiperveneração) é própria para a Virgem Maria e latria (adoração) é somente para Jesus (Miegge, 1955: 180). A ratificação para a veneração da Virgem Maria pelos católicos aconteceu no Segundo Concílio de Nicéia em 787 e.c., e a ratificação pelos ortodoxos no Sínodo de Constantinopla em 842 e.c., numa época quando as duas igrejas (católica e ortodoxa) estavam começando a se separarem, por isso as decisões independentes.
            Nos primeiros séculos do Cristianismo, foi influente na disseminação a prática dos Kollyridians, uma obscura seita cristã que substituía a deusa pagã por Maria e oferecia sacrifícios a ela. Esta seita desapareceu logo quando a veneração de Maria se tornou universalmente aceita na Igreja (Benko, 2004: 18).
            Consequentemente, depois de Jesus, a figura mais venerada no Cristianismo é a Virgem Maria, entretanto, é um fato curioso observa a brevidade do seu relato nos evangelhos canônicos. A passagem mais extensa está no Evangelho de Lucas (I:26-56), com outras breves menções aqui e ali nos quatro evangelhos. De modo que, muito do que se conservou sobre Maria foi extraído das tradições que circulavam, nos primeiros anos do Cristianismo, fora dos textos canônicos e, destas tradições, o relato escrito mais extenso foi preservado no Protoevangelho de Tiago, um texto apócrifo do século II e.c. (Elliott, 1993: 49 e Ehrman, 2003: 63), o qual será analisado abaixo.

 Maria no Alcorão

            Curiosamente, ela é muito mais mencionada no Alcorão do que nos evangelhos canônicos, são 34 referências diretas ou indiretas, reunindo uma quantidade de informações muito maior que a do Novo Testamento. O livro sagrado dos mulçumanos possui até um capítulo (sura) com o nome de Maryam (Maria), sura XIX, com 98 versos, mas o relato sobre Maria vai apenas até o verso 36. Também, a sura III, Al-Imran (a Família de Imran), versos 35-51, relata resumidamente o nascimento milagroso de Maria até os primeiros anos da vida de Jesus. Assim, o Alcorão admite a virgindade de Maria e reconhece Jesus como um profeta enviado por deus, mas não o reconhece como o Messias: “Cristo, o filho de Maria, não foi nada mais que um apóstolo, muitos foram os apóstolos que passaram antes dele...” (V:75 – Ali, 1934: 266). Jesus é conhecido como Isa no Alcorão, onde é mencionado 25 vezes através da expressão “Isa Ibn Maryam” - Isa, o filho de Maria (III:42-59; V:75; IV:157-9 e 171; V:72-5 e 110-7). Maria é altamente estimada no Alcorão: “... os anjos disseram: Ó Maria, Deus tem te escolhido e te purificado, te escolhido acima das mulheres de todas as nações” (III:42 – Ali, 1934: 134 e Challita, 2002: 29). Daí que o Alcorão reconhece o dogma da imaculada concepção: “Ela (Maria) disse: Ó Senhor! Como poderei ter um filho quando nenhum homem me tocou? Ele (o Senhor) disse: Que assim seja. Deus cria o que lhe deseja. Quando ele decreta um plano, ele apenas diz: que seja, e assim é” (III:47 – Ali, 1934: 135 e Challita, 2002: 29). Ela foi alimentada por deus durante sua permanência no templo no período da sua infância e adolescência (III:37 – Ali, 1934: 132 e Challita, 2002: 29), já no Protoevangelho de Tiago é mencionado que ela foi alimentada por um anjo (VIII: 01).
            Apesar de não ser possível confirmar com absoluta certeza a historicidade de todos os dados registrados nos livros sagrados, mesmo assim Anwar Hekmat aponta alguns erros históricos e cronológicos nas passagens sobre Maria no livro sagrado dos muçulmanos. Na passagem XIX:28 (“Ó irmã de Arão...”), Maria é mencionada como irmã de Arão, para Hekmat “isto é um erro, Maria não teve um irmão com o nome de Arão, na verdade, ela não teve nenhum irmão. Parece que neste caso Maomé confundiu as tradições judias e cristãs. Ele pode ter ouvido falar que a irmã de Arão e Moisés era chamada Miriam (Maryam em árabe) e enganadamente pensou que Miriam era a mesma pessoa que a mãe de Jesus” (Hekmat, 1997: 11). Em seguida prossegue: “Um erro similar acontece no capítulo três do Alcorão. Aqui a mãe de Maria (a mãe de Jesus) é descrita como a esposa de Imran (III:35). Todo cristão sabe que a mãe de Maria (Ana) não foi esposa de Imran. Nestes casos, Maomé claramente cometeu erros cronológicos” (Hekmat, 1997:11). No Protoevangelho de Tiago o nome do pai de Maria é Joaquim.
            A possibilidade de Maomé cometer erros é muito evidente, uma vez que era analfabeto e tudo que conheceu foi extraído das suspeitas revelações do arcanjo Gabriel e das conversas com outras pessoas, muitas delas também analfabetas ou semianalfabetas. A região na qual ele viveu era muito primitiva culturalmente na época, de modo que o índice de analfabetismo era muito alto. A região estava localizada na periferia do Império Bizantino, portanto distante e desprovida de intercâmbios com os grandes centros culturais da época (Constantinopla, Roma, Alexandria e outros). Hekmat conclui com as seguintes críticas mordazes contra Maomé e o Alcorão: “É praticamente impossível atribuir tais erros a um homem alfabetizado e inteligente, ainda mais a uma divindade infalível. Alguns versos do Alcorão são tão repugnantes à lógica e ao raciocínio que só poderiam ser atribuído a uma pessoa analfabeta e fanática, que se retirou em seu próprio mundo pequeno, desprovido de senso comum e ignorante das condições sociais de seus países vizinhos contemporâneos” (Hekmat, 1997: 11-2).
            Existe outra passagem do Alcorão até certo ponto cômica, extraída do Evangelho Árabe da Infância (Platt, 1926: 38 e Elliott, 1993: 102), na qual Jesus, ainda bebê no berço, fala com outras pessoas ao seu redor (Alcorão, XIX: 30-3).
Parece que as fontes das tradições sobre Maria incluídas no Alcorão são as registradas no Protoevangelho de Tiago, no Evangelho Árabe da Infância, no Evangelho de Pseudo-Mateus e no De Nativitate Marie (Sobre o Nascimento de Maria), os dois últimos são composições latinas mais tardias, porém todos são textos apócrifos. A fonte de todos eles é provável que seja o Protoevangelho de Tiago.

Maria no Protoevangelho de Tiago

            Este foi um dos mais importantes e influentes dentre os evangelhos apócrifos, haja visto pelos mais de cem manuscritos ainda existentes (Elliott, 1993: 48 e Ehrman, 2008: 306). O texto é chamado de “Protoevangelho” porque narra eventos anteriores ao nascimento e a infância de Jesus, ou seja, ao nascimento e a infância de Maria, mãe de Jesus. Sua influência foi grande na arte medieval, de maneira que muitos motivos de Maria e o menino Jesus, que não reproduzem as descrições dos evangelhos canônicos, são inspirados nas lendas e nas tradições registradas neste evangelho. Apesar da atribuição da autoria a Tiago no próprio título do evangelho, sua autoria é desconhecida. Especialistas datam sua composição na segunda metade do século II e.c. (Elliott, 1993: 49 e Ehrman: 2008: 305), pois foi mencionado por Justino (morto em 165 e.c.) e por Celso (que escreveu em 170 e.c.). Bart D. Erhman o considera uma falsificação da proto-ortodoxia cristã (Ehrman, 2008: 303). Deste exemplo é possível dimensionar o tamanho da extravagância que era a composição de textos fabulosos naquela época, pois até a ortodoxia incipiente rejeitava as composições de seus próprios partidários, de forma que este evangelho não foi reconhecido como canônico.
            A atribuição da autoria deste evangelho a Tiago, irmão de Jesus, foi a principal razão para o não reconhecimento deste texto como canônico por Jerônimo, o estudioso mais influente do século IV, pois este fato contrariava o então incipiente dogma da perpétua virgindade de Maria. Com isso, o texto foi banido do Cristianismo latino, daí a razão para o desaparecimento dos manuscritos em Latim, mas continuou popular no Cristianismo Oriental, como evidencia o grande número de manuscritos gregos (Ehrman, 2008: 306).
            Tal como os demais evangelhos, o Protoevangelho de Tiago justapõe relatos históricos e mitos criados pelos primeiros cristãos.

O desespero dos pais de Maria

            O Protoevangelho de Tiago inicia narrando os eventos, muito provavelmente mitológicos, que antecederam o nascimento de Maria. Seu pai, Joaquim, era um homem rico, mas o casal não tinha filhos, uma vez que sua esposa, Ana, era estéril.  Chegado o dia da grande festa do Senhor, Joaquim se preparava para fazer sua oferenda, quando um homem chamado Ruben tomou-lhe a frente e disse; “Não te é lícito oferecer tuas dádivas, enquanto não tiveres gerado um rebento em Israel” (I: 02).
            Joaquim ficou imensamente aborrecido com o ocorrido. Seu aborrecimento foi tanto que ele se dirigiu aos arquivos para saber se ele era o único que não tinha gerado filho em seu povoado.  Ao descobrir que somente ele não tinha gerado descendentes, ficou ainda mais aborrecido e entrou em desespero (I: 03). O tormento foi tanto que não regressou para sua casa a fim de encontrar sua mulher, retirando para o deserto. Ali armou uma tenda e jejuou por quarenta dias e quarenta noites, dizendo a si mesmo: “Não sairei daqui, nem sequer para comer e beber, até que o Senhor meu Deus me visite, que minhas preces me sirvam de comida e de bebida” (I: 04).
             Ao saber disto, sua mulher, Ana, também entrou em paranoia. Considerando seu marido como um morto, vestiu roupas de luto e passou a se lamentar dizendo: “Chorarei minha viuvez e minha esterilidade” (II: 01). Após um período de tormento, um anjo apareceu para ambos e lhes informou que deus ouviu suas preces e que Ana teria uma criança. A esta criança foi dado o nome de Maria. De modo que, a avó de Jesus (Ana), tal como sua mãe (Maria), também teve concepção milagrosa. Daí em diante o texto assemelha-se a um conto de fadas.
            Agora, especialistas e historiadores observam que a proibição de entregar sua oferenda não era uma regra do Judaísmo daquela época, daí a conclusão que este texto não foi composto por um autor judeu, portanto não pode ser de autoria de Tiago, irmão de Jesus.
            Bem, é interessante observar como um homem pode se desesperar tanto por não ter um filho, e uma esposa se desesperar tanto ao ponto de vestir roupas de luto antes mesmo de ter a evidência da morte do marido. Isto chega a ser mais cômico do que significativamente religioso.      Agora, será que eles sobreviveram por tempo suficiente para saber que seu neto (Jesus) não quis ter filhos? Se por acaso sobreviveram, será que Joaquim (avô de Jesus), que tanto se aborreceu por não ter um filho e se sacrificou tanto para obtê-lo, aprovaria a decisão de seu neto (Jesus) de não ter filho?

BIBLIOGRAFIA

ALI. A. Yusuf (tr.). The Holy Qur’an. Lahore: Tahrike Tarsile Qur’an, 1934.
BENKO, S. The Virgin Goddess: Studies in the Pagan and Christian Roots of Mariology. Boston/Leiden: Brill, 2004.
CHALLITA, Mansour (tr.). O Alcorão. Rio de Janeiro: ACIGI, 2002.  
EHRMAN, Bart D.(tr.) Lost Scriptures: Books that did not make it into the New Testament. New York: Oxford University Press, 2003.
_______________ Lost Christianities: The Battle for Scripture and the Faiths We Never Knew. New York/Oxford: Oxford University Press, 2003. Versão brasileira: Evangelhos Perdidos: As Batalhas pela Escritura e os Cristianismos que Não Chegamos a Conhecer. Rio de Janeiro/São Paulo: Editora Record, 2008, p.303-6.
ELLIOTT, J. K. (tr.) The Apocryphal New Testament: A Collection of Apocryphal Christian Literature in an English Translation. Oxford: Clarendon Press, 1993.
HEKMAT, Anwar. Women and the Koran: The Status of Women in Islam. Amherst: Prometheus Books, 1997.
MIEGGE, Giovanne. The Virgin Mary: The Roman Catholic Marian Doctine. Philadelphia: The Westminster Press, 1955.
PLATT Jr., Rutherford H. The Lost Books of the Bible. New York: Alpha  House, 1926.

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