quinta-feira, 18 de abril de 2013

|ESTUDO| A Bibliolatria dos Sikhs por seu "Livro-guru"


            

por Octavio da Cunha Botelho






O Harimandir Sahib, mais conhecido como Golden Temple, o
principal gurdwara (templo) sikh, com o Akal Takht ao fundo,
situados em Amritsar, no Punjab, Índia


            Se alguns acham que a admiração dos cristãos pela Bíblia é exagerada, certamente reconhecerão que esta não é tanta após conhecer a fanática adoração dos sikhs pelo seu livro sagrado, o Guru Granth Sahib. O Sikhismo é uma religião pouco conhecida no Brasil, mas já é considerada como uma das maiores religiões tradicionais da atualidade. Mesmo sendo desconhecida por aqui, será interessante conhecer este fenômeno de bibliolatria que, até o ponto que podemos comparar, é o exemplo mais extremista conhecido na história das religiões. A veneração e o zelo pelo seu livro sagrado são tão grandes, que algumas circunstâncias chegam a ser cômicas, sobretudo para as pessoas desacostumadas com os escrúpulos exóticos que cercam a sua adoração. A pompa e o protocolo de adoração pelo livro são práticas incomparáveis. Enfim, o tratamento é idêntico ao da veneração de um ídolo ou ao da reverência por um rei. 



O que é bibliolatria

            As definições variam de um dicionário para outro, de modo que aqui a palavra será utilizada no sentido etimológico da combinação dos termos gregos biblion (livro) e latreia (adoração), portanto: adoração a um livro, para diferenciar de bibliofilia (amor ao livro), este último no sentido de amor aos livros em geral; enquanto bibliolatria é a veneração pelo conjunto das mensagens de um livro em particular. Trata-se de um conceito próximo ao de idolatria (adoração a um ídolo), diferenciando-se quanto ao objeto de adoração. Sendo assim, um colecionador de livros pode ser um bibliófilo, mas não é um bibliolatra, do mesmo modo que um religioso que venera fanaticamente um livro sagrado é um bibliolatra, mas não é um bibliófilo. O fenômeno é mais comum no meio religioso, porém não é generalizado. Existiram muitas religiões antigas que não possuíram literatura escrita, preservando os ensinamentos apenas oralmente. Ademais, os místicos em geral (iogues, sufís, hesicastas, praticantes de Zen, etc.) atribuem menor importância às escrituras, pois, para eles o mais importante é a experiência obtida das práticas meditativas.           
Leitura da Torá com o uso do yad, a superfície das páginas não
pode ser tocada pelos dedos do leitor.
Portanto, o grau de bibliolatria varia de uma tradição religiosa para outra, conforme a importância atribuída às escrituras sagradas.  Existem os casos curiosos de religiões que floresceram, por alguns séculos, em sociedades culturalmente desenvolvidas, tais como as religiões grega e romana, mas não possuíram escrituras sagradas. Por outro lado, o Judaísmo e o Cristianismo iniciaram o registro de seus ensinamentos bem cedo, por isso ficaram conhecidos como “religiões do livro”. Os judeus e os cristãos são mencionados como “Povos do Livro” no Alcorão 4:153 e 159, 57:29, 59:01 e 11 (Haleem, 2005: 64-5, 361 e 365-6).
            Da mesma maneira que a veneração pelas escrituras sagradas, as críticas às mesmas também são recebidas de forma variada nas religiões. Enquanto o Cristianismo já puniu os hereges que ofendiam a Bíblia, durante o período da Inquisição, e os atuais mulçumanos radicais perseguem os ofensores do Alcorão, os hindus, por exemplo, sempre foram muito tolerantes diante das críticas de suas escrituras. Para eles, muito mais grave do que criticar as escrituras é desrespeitar um costume hindu ou um símbolo sagrado.

O ritual de leitura da Torá

            Quando avaliamos as coisas e as pessoas em geral, levamos em conta a comparação, ou seja, tomamos um item como referência para, então, compará-lo com outros e daí avaliarmos. Em outras palavras, sempre utilizamos um item de referência para avaliar os outros. Sendo assim, o ritual judeu da leitura da Torá (Kriat há-Torah), quando comparado com a extravagante veneração dos sikhs pelo seu livro sagrado, o Guru Granth Sahib, não chega a ser um ato de bibliolatria. Enquanto que, para aqueles que não conhecem as práticas sikhs, e mais ainda para um cético, este ritual judeu parecerá um exagerado ato de fanatismo por um livro. Enfim, conforme o item de comparação utilizado, o resultado da avaliação é alterado. Entretanto, mesmo assim, justifica mencioná-lo aqui, pois, excetuando os sikhs, trata-se da mais zelosa prática de adoração a uma escritura sagrada que temos conhecimento nas seis grandes religiões tradicionais (Cristianismo, Islamismo, Hinduísmo, Budismo, Judaísmo e Sikhismo) da atualidade. Trata-se de um ritual relativamente cerimonioso para a leitura da Torá (Kriat ha-Torah) na sinagoga, o qual acontece nas manhãs e nas tardes do culto de Sábado, nas manhãs de Segunda Feira e de Quinta Feira, nos festivais, nos dias de jejum e no mês de Rosh Chodesh. Refere-se à cerimônia de retirar o rolo do pergaminho da Torá (Sifrei Torah) da sua Arca, da leitura de seus trechos, com uma entoação especial, e a colocação de volta na Arca. A Torá é guardada numa escrivaninha ornamentada denominada Aron Kodesh (Arca), reservada exclusivamente para este fim. Em geral, orações são entoadas durante este procedimento. Em alguns seguimentos do Judaísmo, o rolo de pergaminho da Torá (Sifrei Torah) é erguido diante dos presentes antes da leitura, e em outros seguimentos é erguido após a leitura.           
O Kriat ha-Torah, o ritual de leitura da Torá
Não é qualquer exemplar e critério de ostentação da Torá que pode ser utilizado no ritual de leitura. O exemplar da Torá empregado no Kriat há-Torah geralmente tem dois rolos de pergaminho manuscrito, não pode ser um livro impresso em gráfica, com dois polos de madeira no interior, para servir de eixo, e também com dois cabos na parte inferior dos polos, a fim de facilitar o ato de desenrolar o pergaminho, pois o manuscrito não pode ser tocado pelas mãos impuras do devoto. Este é guardado em uma capa, geralmente de veludo, ricamente decorada. Depois de aberto, ele é colocado sobre um suporte, de modo que fique numa posição semi-vertical e, com isso, seja possível a leitura sem que os leitores toquem-no. Por não poder ser tocado, o ato de leitura é feito com a ajuda do yad (uma espécie de indicador, geralmente de prata), o qual evita que o leitor toque, com o dedo impuro, a superfície das páginas do pergaminho da Torá tão pura e sagrada para os judeus (Glinert, 1992: 122).

O Sikhismo

            A religião não é muito conhecida no Brasil, mas para a surpresa de muitos, já se tornou a quinta religião com o séquito mais numeroso no mundo, atrás apenas do Cristianismo, do Islamismo, do Hinduísmo e do Budismo, portanto na frente até do Judaísmo, bem como internacionalizada, sobretudo em virtude da diáspora para os países de língua inglesa (EUA, Reino Unido e Canadá). Os números podem variar conforme a fonte, no entanto, levantamentos mais recentes revelam um total de 24 milhões de sikhs no mundo, sendo 16 milhões no Punjab indiano, mais 8 milhões no resto da Índia e no exterior (Singh, 2009: 08).
Mesmo não sendo uma religião proselitista, pois o Sikhismo é uma tradição étnica, o seu séquito tem crescido nos últimos anos, ao ponto de já ser considerada, pelos estudiosos, como uma das grandes religiões da atualidade (Shackle, 2002: 70-85 e Nesbitt, 2007: 118-67). Apesar de ser uma religião étnica, os sikhs eventualmente aceitam convertidos. Não é muito intelectualizada, portanto não possui uma teologia complexa como o Cristianismo, o Islamismo ou o Judaísmo, tampouco uma extensa literatura exegética como o Hinduísmo e o Budismo.
Imagem do Guru Nanak Dev (1469-1539), fundador
do Sikhismo
Sikhismo é uma religião monoteísta fundada no século XVI e.c. O fundador foi Guru Nanak Dev, nascido em uma família da alta casta hindu do Punjab, Índia, em 1469. Ele foi instruído na tradição hindu por um mestre da sua aldeia, bem como também frequentou uma escola mulçumana, onde adquiriu uma quantidade de conhecimento dos ensinamentos islâmicos e alguma informação sobre as línguas árabe e persa. Por volta da idade de dezesseis anos, Nanak tornou-se um contador na residência de um importante oficial muçulmano na aldeia de Sultanapur. Ele reuniu em torno de si um grupo de seguidores que costumavam banharem-se juntos em um rio antes do amanhecer todos os dias, e se encontravam em sua casa à noite para cantar canções religiosas que ele tinha composto. Um dia ele não retornou para casa após o banho matinal. Seus amigos encontraram suas roupas nas margens do rio e dragaram a água na tentativa de encontrar seu corpo. Três dias depois, Nanak reapareceu. Ele disse: “não há nem hindu nem mulçumano, assim qual caminho devo escolher? Eu devo seguir o caminho de deus. Deus não é hindu nem muçulmano, e o caminho que eu sigo é deus”. Mais tarde ele explicou que, durante o tempo em que estava desaparecido, ele tinha sido levado até a presença de deus, onde ele tinha recebido uma taça de néctar e uma mensagem de deus para sair pelo mundo para ensinar a repetição do nome de deus e as práticas da caridade, da meditação e da adoração.
Nanak viajou muito para divulgar sua mensagem religiosa. Ele realizou quatro viagens, visitando Assam no leste, Sri Lanka no sul, Ladakh e Tibete no norte, e Meca, Medina e Bagdá no oeste. Os seguidores de Nanak começaram a se autodenominarem de sikhs (discípulos). Nanak enfatizava que havia somente um deus. Embora ele observada a sua revelação como transcendendo o Hinduísmo e o Islamismo, seus ensinamentos incluíam ideias hindus tais como a lei do karma, a reencarnação e a suprema realidade do mundo. Ele reforçava que o único papel de guru era a necessidade de conduzir as pessoas até deus. Ele estimulava seus seguidores a meditar, a adorar deus e a cantar hinos de louvor.
De acordo com o Sikhismo, o propósito supremo da religião á a união com deus através de sua presença na alma humana. Recebendo a graça divina deste modo, os seres humanos ficam livres do ciclo de nascimentos e renascimentos, e então passa para além da morte para alcançar um reino infinito e eterno de bem aventurança. O ensinamento de Nanak oferece um claro e simples caminho para a salvação. Meditando no divino nome, os seres humanos são purificados de suas impurezas e se tornam aptos a ascender, cada vez mais, até que eles alcancem a união com o ser eterno. Os sikhs sustentam que o sofrimento no mundo surge como resultado da separação entre a humanidade e deus (Lewis, 2001: 239-40). Em suma, o Sikhismo é uma mistura simplificada de Hinduísmo e Islamismo.
Guru Gobind Singh (1666-1708), o décimo guru, encerrou a
 linhagem dos gurus humanos e nomeou o
Guru Granth Sahib como o 11º guru.
Perto do fim da sua vida, Nanak assegurou que os seus ensinamentos não morreriam, mas sobreviveriam e se tornariam uma religião. Ele então indicou um sucessor, deixando de lado os seus dois filhos, os quais ele considerou inapropriados para a sucessão. O indicado foi Lehna, depois batizado de Guru Angad Dev, quem se tornou o segundo guru da linhagem dos dez gurus sikhs, todos eles altamente reverenciados no Sikhismo, veja a relação abaixo:
1º- Guru Nanak Dev (1469-1539)
2º- Guru Angad Dev (1504-1552 e.c.) – guru 1539-52 e.c.
3º- Guru Amar Das (1479-1574 e.c.) – guru 1552-74 e.c.
4º- Guru Ram Das (1534-1581 e.c.) – guru 1574-81 e.c.
5º- Guru Arjan Dev (1563-1606 e.c.) – guru 1581-1606 e.c.
6º- Guru Hargobind (1595-1644 e.c.) – guru 1606-44 e.c.
7º- Guru Har Rai (1630-1661 e.c.) – guru 1644-61 e.c.
8º- Guru Krishan (1656-1664 e.c.) – guru 1661-64 e.c.
9º- Guru Tegh Bahadur (1621-1675 e.c.) – guru 1664-75 e.c.
10º Guru Gobind Singh (1666-1708 e.c.) – guru 1675-1708 e.c. (Field, 1914: 09-35; Scott, 1930: 17-33; Lewis, 2001: 240-1; Cole, 2005: 19-43 e Singh, 2009: 34)
Esta é a linhagem dos dez gurus humanos da tradição sikh, pois o 11º guru, nomeado pelo 10º guru, Gobind Singh, logo antes da sua morte em 1708 e.c., não é humano, mais sim um livro, o texto sagrado dos sikhs, o Guru Granth Sahib, o qual passou a ser o guru eterno (Mann, 2001: 03). Por isso a palavra guru foi acrescida ao título do livro. Um fato muito excepcional e curioso na história das religiões: um livro dando prosseguimento a uma linhagem de gurus humanos. Em virtude disto, a admiração e a adoração dos sikhs pelo seu “livro-guru” é excepcional e sobrepuja à de qualquer outra religião. O zelo é tanto que, como será visto mais adiante, poderia ser chamado de bibliolatria.

Gurdwara, o templo sikh

           
O interior de um gurdwara (templo sikh)
Assim como os judeus têm a sinagoga, os mulçumanos a mesquita e os cristãos a igreja, os sikhs têm o gurdwara. Este é o nome dado ao templo sikh. Trata-se da combinação das palavras na língua punjabigur” (mestre) e “dwara” (portão), portanto “portão para o mestre” (Singh, 2009: 98). O local onde os sikhs realizam suas congregações, sobretudo a leitura (em voz alta) do Guru Granth Sahib, bem como as cerimônias de casamento, de batismo, etc. O que caracteriza o gurdwara, acima de tudo, é a presença do Guru Granth Sahib no seu interior ou, mais especificadamente, na posição central do dabar sahib (hall de oração), sobre um takhat (trono) ricamente ornamentado. Nas palavras de W. Owen Cole: “Um traço determina se um lugar é um gurdwara ou não, que é a presença do Guru Granth Sahib, a escritura sikh” (Cole, 2004: 13). Tal como será visto mais adiante, o eterno livro-guru não pode ser colocado em qualquer lugar e de qualquer jeito, pois existe uma série de requisitos de ornamentação e de pompa para acolhê-lo. Em suma, o Guru Granth Sahib é o pivô da adoração sikh.
            O principal gurdwara é o Harimandir Sahib, mais conhecido como Golden Temple, na cidade de Amrtisar, no estado do Punjab, Índia. Sua beleza o transformou em um dos cartões postais deste país asiático e local de atração de milhares de turistas. Sem dúvida, uma das mais belas obras da arquitetura sacra do mundo. Enfim, o Sikhismo está entre as religiões mais fastuosas do mundo (Singh, 2009: 98-108).

O Guru Granth Sahib, o livro-guru

            Ele é a mais alta autoridade espiritual no Sikhismo e é tratado como se fosse um guru vivo, o qual possui, invariavelmente, 1430 páginas de extensão e está escrito em versos. É um extenso livro de poesia rítmica. A rigor, trata-se de uma compilação de hinos e poesias devocionais dos cinco primeiros gurus, do nono guru, dos poetas sikhs e os Bhagat Bani, das composições dos poetas Kabir, Baba Farid e Ravidas. O texto atravessou um longo processo de acréscimos, à medida que um guru acrescia as suas composições às dos gurus anteriores já então canonizadas. A compilação final foi feita pelo décimo guru Gobind Singh, em 1708 e.c. (Cole, 2004: 78).  
            Antes do estabelecimento deste livro como o 11º guru, o texto se chamava Adi Granth (Livro Original). Gobind Singh, após fazer mais uns acréscimos e decretá-lo o 11º guru, colocando então um fim à linhagem humana dos gurus sikhs, denominou o livro de Guru Granth Sahib (Livro do Deus Mestre), assim, com esta decisão inusitada, elevou o status do Adi Granth de mero livro sagrado para o de livro-guru. Parece que o nome anterior de Adi Granth foi dado pelo 5º guru Arjan Dev, o qual foi o primeiro grande compilador, nos anos de 1603-4, quando compilou os hinos dos gurus anteriores. O que o levou a se apressar na compilação de uma versão canonizada foi o fato seu pai, o guru Ram Das, o quarto guru, ter excluído seus dois filhos mais velhos e escolhido seu filho mais novo, Arjan, como sucessor. Porém, aconteceu que, o irmão mais velho de Arjan e seu filho estavam compondo hinos em nome de Guru Nanak. Então, Arjan temeu que as composições de seus predecessores fossem confundidas e, daí se apressou em compilar uma versão autorizada do Adi Granth, o qual mais tarde se chamaria Guru Granth Sahib (Singh, 2009: 39).
O Guru Granth Sahib, o livro-guru dos sikhs, tem que ter
rigorosamente 1.430 páginas e é publicado por uma única
gráfica no mundo
            Este livro-guru reúne mais de 5.200 hinos e mais de 400 dísticos (versos com duas linhas) de autoria dos gurus sikhs, dos santos-poetas e dos sufís islâmicos. As contribuições estão distribuídas da seguinte maneira: Guru Nanak 974 hinos; Guru Angad 62 hinos; Guru Amar Das 907 hinos; Guru Ram Das 638 hinos; Guru Arjan 2.218 hinos; Guru Tegh Bahadur 59 hinos e mais 56 dísticos (versos em duas linhas) acrescentados por Guru Gobind Singh. Os santos-poetas contribuíram com 409 hinos e 373 dísticos, os sufís islâmicos com um número bem menor. O principal colaborador entre os santos-poetas foi o poeta Kabir com 292 hinos e 243 dísticos (Singh, 2009: 39).  
            A língua na qual está registrado o Guru Granth Sahib é uma mistura de dialetos falados no norte da Índia no período medieval, cujo nome é Sant Bhasha (Língua Sagrada). Gurinder Singh Mann explica que “é uma espécie de língua franca usada pelos santos-poetas medievais do norte da Índia”. E continua: “Mas, o amplo horizonte de colaboradores ao texto produziu uma complexa mistura de dialetos regionais. Os gurus sikhs usaram a língua punjabi em muitos de seus hinos, mas, tal como os outros colaboradores, eles também usaram elementos do Apabhramsha (um dialeto tardio do sânscrito), a Braj Bhasha (a língua da região Braj em trono de Mathura), a Hindi (a língua falada em Delhi) e uma punjabi fortemente influenciada pela língua persa. Tudo isto faz do Adi Granth (depois denominado Guru Granth Sahib) um rico repertório de dialetos que eram prevalecentes no norte da Índia medieval” (Mann, 2001: 05). Quanto ao alfabeto, no qual esta língua foi registrada no Guru Granth Sahib, G. Singh Mann esclarece: “Desde o início, os manuscritos sikhs foram registrados em uma escrita distinta, a Gurumukhi (literalmente, ‘da boca do guru’), a qual contêm trinta e cinco letras. A escrita já existia numa forma elementar antes que os sikhs apropriassem dela para registrar seus escritos e, durante o processo, modificaram as formas de diversos de seus caracteres e desenvolveram um complexo sistema para o seu uso. Os sikhs atribuem a ela um alto grau de santidade. Para Guru Nanak, o status da Gurumukhi para os sikhs corresponde a aquele da árabe e da Devanagari, as escritas sagradas dos mulçumanos e dos hindus respectivamente” (Mann, 2001: 05).
            A leitura do livro-guru dos sikhs é tão estimada, que existe um cargo especial para tal tarefa, o Granthi (leitor, o qual às vezes exerce também a função de zelador da Gurdwara). Diferente de outras religiões tradicionais, qualquer pessoa pode lê-lo e ser um granthi (leitor) do Guru Granth Sahib, inclusive mulheres (Cole, 2004: 13). A leitura é feita em voz alta, em ritmo melodioso e acompanhada de instrumentos musicais, portanto, estritamente falando, o livro não é apenas lido em voz alta, mais sim cantado.

O zelo na publicação do Guru Granth Sahib

            O cuidado dos sikhs pela preservação da fidelidade da redação do seu livro-guru sagrado é tão minucioso, que a tarefa de publicá-lo é uma exclusividade da comunidade sikh. Ninguém pode traduzi-lo ou editá-lo sem a expressa autorização do Parlamento dos Sikhs (Shiromani Gurdwara Parbandhak Committee-SGPC), um órgão responsável pela administração dos gurdwaras (templos sikhs) e por outros assuntos da comunidade sikh. Não é como a Bíblia, cuja publicação é feita por centenas de editoras cristãs espalhadas pelo mundo. Ao contrário, só existe uma editora oficial do Guru Granth Sahib, a qual funciona no interior do Gurdwara Ramsar Sahib, Amrtisar, Índia, embora a ocorrência de publicações clandestinas seja flagrante, inclusive na Internet.
O Guru Granth Sahib sendo carregado sobre a cabeça, durante
o ritual de cremação do livro (Agan Bhet Seva)
Toda edição tem que ter exatamente 1.430 páginas, qualquer publicação diferente deste número é considerada ilegítima. No caso de defeito de páginas durante o processo de impressão, parece inacreditável, mas a admiração pelo livro é tamanha que, os responsáveis pela publicação realizam uma cerimônia de cremação, conhecida como Agan Bhet Seva, para as páginas danificadas, ou seja, aquelas rejeitadas que não serão aproveitadas, uma vez que as páginas danificadas não podem ser descartadas desrespeitosa e informalmente, em virtude da sacralidade do livro, daí a necessidade de uma cerimônia de cremação para as páginas descartadas. Esta cerimônia também é efetuada no caso de exemplares envelhecidos que precisam ser desfeitos. Isto é o que se pode chamar de admiração extremada por um livro.
O cuidado com a preservação da redação é também rigoroso, nada pode ser alterado ou omitido no texto, quer seja nas frases, nas palavras, na pontuação, na gramática, no significado, tampouco a troca por sinônimos sem a autorização do SGPC (Mann, 2001: 125-9). A reprodução precisa ser rigorosamente idêntica. Alterações, só com a autorização do SGPC. Todo este cuidado para manter a originalidade do texto. Entretanto, apesar de todo este rigor, algumas poucas traduções já foram autorizadas pelo SGPC (Cole, 2004: 83-5).

A bibliolatria pelo livro-guru

            A admiração e o zelo dos sikhs pela sua escritura sagrada são incomparáveis, não existe paralelo na história das religiões. Todo devoto deve aproximar-se ao Guru Granth Sahib com a cabeça coberta e os pés descalços, bem como curvar-se, em algumas ocasiões tocando a testa no chão, em sinal de reverência. Quer num gurdwara publico ou doméstico, o livro tem de ser colocado numa posição central, na qual permaneça como o principal objeto de veneração no templo. Não pode ser colocado num local onde exista um piso superior, pois ninguém poder caminhar acima do livro sagrado, portanto gurdwaras (público e doméstico) não podem funcionar em prédios e em sobrados. Durante os cultos, todos os devotos, exceto o granthi (leitor), devem permanecer sentados no cão, uma vez que ninguém pode permanecer com a cabeça numa altura superior a do livro sagrado. Assim também, quando está sendo transportado, o mesmo tem que ser levado sobre a cabeça em cima de um pano de seda (rumala) ou de uma almofada, pois, do mesmo modo, o livro não pode permanecer abaixo das cabeças dos devotos. 
Luxuoso Takht (trono) que abriga o Guru Granth Sahib no
interior de um gurdwara 
             Ademais, no interior do gurdwara, o livro-guru não pode ser colocado em qualquer lugar e de qualquer jeito, pois existe uma série de exigências, zelos e protocolos para a sua instalação e o seu uso. O livro sagrado é colocado no centro da gurdwara, com todos os atributos de realeza, sobre uma luxuosa plataforma (manji sahib), também denominada de takht (trono), coberta por um ornamentado dossel (palki sahib), este último cercado por ricas cortinas dos quatro lados e, então o livro-guru é colocado sob um luxuoso pano de seda (rumala), para protegê-lo do calor, da poeira e da poluição, quando não está sendo lido.  Durante o ato de leitura do Guru Granth Sahib em cerimônias públicas, um devoto abana o livro com um abanador (chaur) para limpar o ar e protegê-lo de insetos e da poeira.  
            Em geral o culto sikh termina com a abertura ao acaso do livro-guru em uma página e a leitura do hino encontrado no topo da página esquerda que foi aberta, esta prática é denominada hukam, e tem um significado oracular.




Zelo e protocolos que devem ser observados diante do livro-guru


a)    Para o oficiante do culto ao Guru Granth Sahib
- A cabeça deve permanecer coberta o tempo todo
- Os sapatos devem permanecer no lado de fora do salão de culto
- Observar padrões básicos de higiene
- Se o oficiante tiver que ir ao toilet, terá de banhar-se e trocar de roupa antes de retornar para a continuação do culto
- Quando estiver lendo o livro sagrado, o granthi (leitor|) deve cobrir a boca, com um fino pano, para não lançar saliva sobre o mesmo
- Não pode beber e comer durante o culto
- Não se pode fazer conversas paralelas durante o culto.

b)    Quando estiver na proximidade do livro-guru
- A cabeça deve estar coberta
- Os sapatos removidos
- Quando o livro sagrado passar, deve-se demonstrar respeito e reverência

c)    O ambiente
-  -O livro-guru deve ser colocado sempre em um cômodo separado, bem ventilado e independente
- O chão, as paredes e o teto devem estar limpos e lavados, bem como decorados
- O livro sagrado deve ser colocado em uma manji sahib (plataforma luxuosa) ou num takht (trono)
- Um dossel (palki sahib) deve sempre ser colocado sobre o livro-guru
- Um pano apropriado deve ser colocado no trono (takht) do livro, no verão, um pano fino, no inverno, um pano mais quente

d)    O transporte
- O livro-guru só pode ser transportado sobre a cabeça
- Quando transportado, cinco servidores (singhs) acompanham o livro-guru.
- Estes servidores (singhs) devem permanecer descalços
- Um dos servidores deve abanar (chaur sahib seva) o livro-guru
- Outro servidor deve ir à frente espargindo água ou pétalas de flores molhadas sobre o livro
- O servidor (singh) principal, o qual carrega o livro, deve colocar um pano de seda (rumala) sobre o turbante antes de cuidadosamente colocar o livro-guru sobre sua cabeça.
- A todo o momento o livro-guru deve estar coberto com uma rumala (pano de seda)
- Os outros dois servidores cantam ao lado do servidor principal, um do lado esquerdo e o outro do lado direito
- Durante o trajeto, gongos e outros instrumentos musicais devem ser tocados, ou a entoação de cantos
- Quando transportado de carro, carregar o livro-guru sobre a cabeça ou no colo, em cada caso, um limpo rumala deve ser colocado abaixo do livro

e)    Outras regras
- O livro-guru nunca deve ser guardado em armários e em guarda-louças
- Ninguém deve se sentar acima da altura de onde o livro-guru está instalado
- À noite, o livro-guru deve ser colocado numa cama separada ou num pequeno dossel independentes.

Obras consultadas

COLE, W. Owen. Understanding Sikhism. Edinburgh: Dunedin Academic Press, 2004.
CUNNINGHAN, Joseph Davey. A History of the Sikhs: From the Origin of the Nation to Battles of the Sutlej. Humphrey: Oxford University Press, 1918.
FIELD, Dorothy. The Religion of the Sikhs. London: John Murray, 1914.
GLINERT, Lewis. The Joy of Hebrew. London/New York: Oxford University Press, 1992, p. 122.
HALEEM, M. A. S. Abdel. The Qur´an. London/New York: Oxford University Press, 2005.
LEWIS, James R. Odd Gods; New Religions and the Cult Controversy. Amherst: Prometheus Books, 2001, p. 239-56.  
MACAULIFFE, Max Arthur. The Sikh Religion: Its Gurus, Sacred Writtings and Authors (6 volumes). Oxford: Clarendon Press, 1909.
MANN, Gurinder Singh. The Making of Sikh Scripture. London/New York: Oxford University Press, 2001.
MCLEOD, W. H. Discord in the Sikh Panth em The Journal of the American Oriental Society, vol. 119, issue 03, July-September 1999, p. 381.
NESBITT, Eleanor. Sikhism em Ethical Issues in Six Religious Traditions. Peggy Morgam and Clive Lawton (eds.). Edinburgh: Edinburgh University Press, 2007, p. 118-67.
SCOTT, George Batley. Religion and Short History of the Sikhs: 1469 to 1930. London: The Mitre Press, 1930.
SHACKLE, Christopher. Sikhism em Religion in the Modern World: Traditions and Transformations. Linda Woodhead et. al. (eds). London: Routledge, 2002, p. 70-85.
SINGH, Nikky-Guninder Kaur. Sikhism. New York: Chelsea House Publishers, 2009.


Website:
O Guru Granth Sahib em inglês: http://www.sacred-texts.com/skh/granth/index.htm

2 comentários:

  1. Waheguru ji ka khalsa Waheguru ji ki fateh
    Sou Ratandeep Kaur, brasileira sikh
    Em nome dos sikhs sou grata .......
    Matéria de grande valor .......
    ਵਾਹਿਗੁਰੂ ਜੀ ਕਾ ਖਾਲਸਾ ਵਾਹਿਗੁਰੂ ਜੀ ਕੀ ਫਤਿਹ

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    1. Olá, sou Brasileiro também, queria saber um pouco mais sobre a religião, e queria muito ler o livro, onde posso encontrá-lo o livro !?

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