Octavio da Cunha Botelho
(Obs: este estudo está disponível em uma versão mais atualizada em:
http://observadorcriticodasreligioes.wordpress.com/2014/01/03/os-irmaos-de-jesus/)
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A discussão abaixo tem relações com
o assunto do artigo “A Mãe de Deus é
Filha de um Casal em Desespero” postado aqui em 16/05/2012, uma vez
que toca no assunto da perpétua virgindade de Maria, pois se confirmada a
existência dos irmãos de Jesus, como filhos de sua mãe, este dogma torna-se uma impossibilidade. As opiniões se dividem e o estudo seguinte procura apresentar os
argumentos prós e contras, a partir dos textos, sobretudos os canônicos, visto que
não existe confirmação, asseguradamente comprovada, fora das citações textuais,
da existência dos irmãos de Jesus. Assim, o artigo abaixo é, de certa maneira,
um estudo crítico-textual.
Numa época e numa região nas quais o
registro de eventos era muito precário, o estudo abaixo terá de se limitar às
poucas referências textuais dos autores de evangelhos (canônicos e apócrifos),
nem sempre fidedignas, para mostrar o que é possível crer de suas escassas e
dúbias informações, muitas vezes imprecisas e ambíguas que, em decorrência
destas imprecisões, abriram espaço para a manipulação de interpretações
teológicas, mais do que para a preocupação com a fidelidade histórica.
Uma controvérsia que
iniciou logo nos primeiros anos
O fato de Jesus ter tido ou não
irmãos e irmãs é uma discussão antiga. A controvérsia foi ardente nos primeiros
anos do Cristianismo, sobretudo a partir do instante em que o mito da eterna
virgindade de Maria começava a se firmar como um dogma consolidado da ortodoxia
cristã. Parece que o primeiro grupo a desaprovar foi a seita dos ebionitas, uma
corrente de judeus cristãos que sustentava a opinião de que Jesus era filho
biológico de José e Maria, portanto nem sequer aceitava a imaculada concepção
de Maria e o nascimento milagroso de seu filho. Por outro lado, o principal
personagem para a consolidação do dogma da perpétua virgindade de Maria foi
Jerônimo (347-420 e.c.), o autor da conhecida tradução latina da Bíblia
(Vulgata), através de sua obra Adversus
Helvidius (Contra Helvídio), mais comumente traduzida como The Perpetual Virginity of Blessed Mary (A
Perpétua Virgindade da Abençoada Maria), em razão de que ele aproveitou as
críticas a Helvídio para também desenvolver seus argumentos em favor da
perpétua virgindade de Maria (Fremantle, 1892: 334-46). Em virtude de seu
prestígio na ocasião, Jerônimo conseguiu persuadir muitos cristãos e seu ponto
de vista ajudou a consolidar ainda mais o dogma da eterna virgindade de Maria, cujo
reconhecimento foi homologado pelos concílios subsequentes.
Após Jerônimo, a discussão esfriou e
somente retornou à tona muitos séculos depois através dos autores protestantes ‘pós-reforma’,
uma vez que Lutero, Calvino, Zwingli e outros primeiros reformadores
protestantes reconheceram a perpétua virgindade de Maria. Atualmente, o quadro
é mais ou menos o seguinte, as igrejas que ainda aceitam o dogma da perpétua
virgindade de Maria (aeiparthenos –
sempre virgem, como é conhecida pelos devotos das igrejas Ortodoxa e Oriental) são:
a Igreja Católica, a Ortodoxa, a Anglicana, as Igrejas Orientais e alguns
grupos protestantes conservadores. As que não aceitam são muitas igrejas
protestantes, número extenso demais para ser enumerado aqui.
Os irmãos e as irmãs de
Jesus no Novo Testamento canônico
Quando este assunto surge, as
discussões são acaloradas, em razão das claras e explícitas referências aos
irmãos e às irmãs de Jesus nos textos canônicos, inclusive citação dos nomes
dos irmãos, sobretudo por conta dos argumentos impetuosos dos defensores da
Virgem Maria. A menção mais clara aparece num momento em que Jesus pregava para
um grupo de ouvintes que o aclamava, então um conterrâneo perguntou surpreso ao
ver a pregação de alguém familiar: “Não é este o filho do carpinteiro? Não é
Maria sua Mãe? Não são seus irmãos: Tiago, José, Simão e Judas? E suas irmãs,
não vivem todas entre nós? (Mt. 13:54-5 e Mc. 6:03).
As palavras irmãos e irmãs no texto
grego consultado desta passagem são: adelfoi,
que Jerônimo traduziu na Vulgata como fratres,
e adelfai (Vulgata: sorores) respectivamente. Na tentativa
de defender a eterna divindade de Maria, Jerônimo argumentou que estes irmãos e
irmãs de Jesus não são filhos de Maria, sua mãe, mas de outra Maria, mulher de
Cléofas (Fremantle, 1892: 340-1), a qual estava presente junto a Jesus
crucificado, com Maria mãe de Jesus e Maria Madalena (Jo. 19:25). Existe nesta
passagem uma confusão de Marias. Outro argumento muito utilizado, pelos
defensores da perpétua virgindade de Maria, é o de que estes irmãos e irmãs
são, na verdade, primos de Jesus, quer sejam pelo lado do seu pai ou da sua
mãe. Na seguinte passagem do Evangelho de João: “Junto à cruz de Jesus estavam
de pé sua mãe, a irmã de sua mãe, Maria, mulher de Cléofas e Maria Madalena”
(Jo. 19:25), é mencionada que Maria, mãe de Jesus, tinha uma irmã, mas a
passagem é confusa, nem sequer os textos em grego e em latim auxiliam no
esclarecimento, uma vez que não é possível saber qual frase é sujeito ou
aposto. Ou seja, se a frase “Maria, mulher de Cléofas” é aposto de “a irmã de
sua mãe”, pois sendo assim, Maria, a mãe de Jesus, teria uma irmã com o mesmo
nome, fato muito improvável, de modo que o mais provável é que sejam pessoas
distintas. Mesmo assim, alguns autores até acreditam que Maria, a mãe de Jesus,
teve uma irmã, também chamada Maria, e que as passagens com a menção dos nomes
dos irmãos de Jesus (Mt. 13:54-5 e Mc. 6:03) se referem aos seus primos, ou
seja, aos filhos da Maria irmã da Maria, mãe de Jesus. O que os intérpretes
cristãos não são capazes de inventar para defender suas crenças ridículas!
Outro argumento é o de que a antiga
língua aramaica, a qual era falada na época, não possuía uma palavra específica
para primos, de modo que era usada uma palavra mais genérica que incluía ambos,
primo e irmão no seu significado. Os textos grego e latino não observaram esta
homogeneidade. A língua grega possui uma palavra para primo (anepsios) e outra para irmão (adelfos), de maneira que os tradutores
gregos traduziram como adelfoi
(irmãos). Esta palavra grega adelfoi
(irmãos) só pode ser no sentido de irmãos de sangue, uma vez que é formada de “a” (mesmo) e “delphys” (útero), portanto o significado etimológico é “do mesmo
útero”. Bart D. Ehrman é da opinião de que Jesus teve irmãos, filhos de Maria
(Ehrman, 1999: 99). O argumento da inexistência de uma palavra específica para
primo na língua aramaica é fraco, uma vez que na época e na região já existia o
senso e a especificação dos membros da família era necessária. E caso não o
tivesse, teriam de importar do grego ou do latim para o seu vocabulário, a fim
de usar nos sensos. Ademais, no vocabulário de qualquer língua, quer sejam até as
mais primitivas, os nomes de familiares são os primeiros a surgirem, por se
tratar de um uso tão frequente. Portanto, é impossível que uma língua com
tantos falantes, que já tinha até escrita, não tivesse uma palavra para diferenciar
um primo de um irmão.
Ainda outro argumento é o de que estes não
eram irmãos de sangue de Jesus, mas sim irmãos no sentido afetivo de
partidários. Segundo os defensores desta hipótese, era comum naquela região
chamar um colega de irmão, algo como uma denominação coletiva, para incentivar
o espírito de coleguismo, entre membros de um grupo de colegionários. Porém, o
argumento não se encaixa na passagem acima, uma vez que ela diferencia a mãe,
os irmãos e as irmãs de Jesus, do contrário poderia ter agrupado todos (mãe,
irmãos e irmãs) sob a denominação coletiva de irmãos. Também, uma passagem do Evangelho
de João contraria este argumento, quando seus irmãos disseram a Jesus na
tentativa de evitá-lo: “Parte daqui e vai para a Judéia, a fim de que também os
seus discípulos vejam as obras que fazes. Pois quem deseja ser conhecido em
público não faz coisa alguma ocultamente. Já que fazes estas coisas, revela-se
ao mundo. Com efeito, nem mesmo os seus irmãos acreditavam nele” (Jo. 7:03-5).
Quando seus irmãos dizem “a fim que seus discípulos vejam as obras que fazes”,
eles mesmos estão se excluindo do grupo de discípulos de Jesus, portanto não
podiam ser irmãos no sentido de partidários, pior ainda a frase final: “nem
mesmo os seus irmãos acreditavam nele (Jesus)”. Ainda mais, em outra passagem é
feita a diferenciação entre seus irmãos e seus discípulos: “Depois disto desceu
para Cafarnaum, com sua mãe, seus irmãos e seus discípulos...” (Jo. 2:12).
Outras passagens dos evangelhos onde
os irmãos de Jesus são mencionados são as seguintes: “Chegaram sua mãe e irmãos
e estando do lado de fora, mandaram chamá-lo. Ora, a multidão estava sentada ao
redor dele, e disseram-lhe; tua mãe e teus irmãos estão aí fora e te procuram”
(Mc. 3:31-3, também Mt. 12:46-50 e Lc. 8:19-21).
Fora dos evangelhos, os irmãos são
mencionados nos Atos dos Apóstolos: “Todos eles perseveraram unanimemente na
oração, juntamente com as mulheres, entre elas, Maria, mãe de Jesus, e os
irmãos dele” (Ac. 1:14). Na Epístola aos Gálatas, Paulo relata que, quando
esteve em Jerusalém: “Dos apóstolos não vi mais nenhum, a não ser Tiago, irmão
do senhor” (Gl. 1:19).
Os irmãos de Jesus nos
apócrifos e na obra de Flávio Josefo
O argumento de que os irmãos de
Jesus eram filhos de um casamento anterior de José, pode ter sua origem na
tradição registrada no Protoevangelho de Tiago, quando o pai de Jesus sente-se
envergonhado em tomar Maria como esposa por isso afirmou: “Tenho filhos e sou
velho, enquanto que ela é uma menina; não gostaria de ser objeto de zombarias
por parte dos filhos de Israel” (IX, 02 – Elliott, 1993: 61). O Evangelho de
Tomé menciona uma passagem semelhante à de Mateus 12:46-50: “Os discípulos
disseram a ele (Jesus): Teus irmãos e tua mãe estão lá fora...” (Dito 99 –
Elliott, 1993: 146 e Robinson, 2007: 124).
A morte por apedrejamento do irmão
de Jesus, Tiago, é mencionada numa passagem da obra Antiguidade dos Judeus de Flávio Josefo (37-100 e.c.). Esta é a
menção mais próxima dos eventos do Novo Testamento, de algum irmão de Jesus,
fora dos relatos cristãos: “então ele reuniu o Sanhedrin dos juízes e trouxe diante dele o irmão de Jesus chamado
Cristo, cujo nome era Tiago, e alguns outros. Quando ele os tinha acusado como
infratores da lei, ele entregou-os para serem apedrejados” (Ant. of the Jews,
XX: 09: 01 – Van Voorst, 2000: 83). De modo que, o historiador Josefo
acreditava que Jesus teve irmãos.
A passagem mais
intrigante
O maior embaraço dos defensores da
perpétua virgindade de Maria está na seguinte passagem do Evangelho de Mateus:
“E, sem que ele (José) a tivesse conhecido, ela (Maria) deu a luz o seu filho primogênito, que recebeu o nome de
Jesus” (Mt. 1:25, ver também Lc: 2:07). A palavra primogênito no texto grego
consultado é prototokos (nascido
primeiro – gerado primeiro), a qual Jerônimo traduziu na Vulgata como primogenitum. A passagem deixa o sentido
de que Jesus foi o primeiro filho (primogênito) de Maria, a qual teve outros em
seguida. Portanto, em vista disto, é curioso observar a grande quantidade de
traduções da Bíblia que omitem a palavra primogênito nesta passagem em suas
edições, cuja redação do trecho final fica assim: “ela deu a luz o seu filho,
que recebeu o nome de Jesus”.
Agora, é curioso também saber por que
os copistas cristãos, que fizeram tantas outras alterações (tanto voluntárias
como involuntárias) durante o processo de copiar os manuscritos cristãos no
passado (ver: Ehrman, 2006), não retiraram do texto a palavra primogênito, uma
vez que o dogma da perpetua virgindade de Maria era defendido pela corrente dominante
e a palavra era polêmica. Surpreendentemente, foi mantida nos manuscritos
gregos e na Vulgata.
Jerônimo, em sua tentativa de
defender o dogma da perpétua virgindade, argumentou que: “Nossa posição é esta:
cada filho unigênito é um filho primogênito, mas nem todo primogênito é um
unigênito. Por primogênito nós entendemos não só aquele que é sucedido por outros,
mas aquele que não tem predecessor” (Fremantle, 1892: 339). Ele encontrou um
duplo sentido para a palavra primogênito, ou seja, não é só um primeiro filho
de uma série de outros, mas, sobretudo o que é o mais importante para ele, um
primeiro filho que não tem predecessor. Quando comparado com o uso mais comum
da palavra primogênito, esta interpretação de Jerônimo parece mais um jogo
linguístico, pois é muito incomum alguém utilizar a palavra primogênito para um
filho, quando este não é sucedido por outros. Mesmo assim, com a descoberta
deste duplo sentido, a astúcia de Jerônimo funcionou e com isso foi convincente
na época.
Algumas reflexões
finais
Este assunto é muito debatido entre
cristãos católicos, que ainda sustentam a eterna virgindade de Maria, e
cristãos protestantes que não reconhecem tal dogma. De maneira que, o estudo
acima se assemelha, em parte, aos argumentos contestatórios apresentados pelos
protestantes. Longe disto, este estudo não pretende defender nenhum dos lados,
apenas mostrar como uma crença perdura, mesmo diante de tantas passagens adversas
nas escritoras. Estritamente falando, os protestantes contestam o mito da
perpétua virgindade, mas, ao mesmo tempo, com base em seu princípio da Sola Scriptura (só pela escritura, isto
é, a Bíblia) acreditam em outros mitos, tão ingênuos como este; por exemplo, o
mito da imaculada concepção de Maria, só porque está na Bíblia, enquanto o mito
da perpétua virgindade de Maria, foi extraído, pelos primeiros cristãos, das
tradições paralelas às escrituras que foram homologadas nos concílios.
O Movimento Protestante do século XVI
contestou e retirou muitos dogmas e crenças tradicionais de suas
interpretações, mas conservou sua confiança literal no texto da Bíblia, com
isso se prenderam ao princípio da Sola
Scriptura, uma vez que na época não existiam ainda os estudos críticos das
escrituras (Alta Critica e Crítica Textual), tal com nos dias de hoje. Pois se
existissem, os protestantes teriam de protestar também tanto contra a hostil e repugnante
batalha no processo de formação da Bíblia (Ehrman, 2008), como também as
incontáveis alterações efetuadas pelos copistas de manuscritos, mesmo depois da
sua formação (Ehrman, 2006).
Daí que, como resultado decepcionante deste
estudo, o protesto mais sensato que um protestante poderá fazer é tornar-se um
cético, tal como Bart D. Ehrman (ex-protestante com graduação em Teologia na
Universidade de Princeton), o mais dedicado pesquisador de manuscritos bíblicos
e da história inicial do Cristianismo da atualidade, o qual, depois de muita
pesquisa, chegou a seguinte conclusão: “A Bíblia, feita todas as contas, é um
livro inteiramente humano” (Ehrman, 2006: 22).
Bibliografia
EHRMAN, Bart D. Jesus:
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University Press, 1999.
_________________ O Que Jesus Disse? O Que Jesus Não
Disse? Quem Mudou a Bíblia e Por Quê. Rio de Janeiro: Prestígio Editorial,
2006.
________________ Lost
Christianities: The Battle for Scripture and the Faiths We Never Knew. New York/Oxford: Oxford
University Press, 2003. Versão brasileira: Evangelhos
Perdidos: As Batalhas pela Escritura e os Cristianismos que Não Chegamos a Conhecer. Rio
de Janeiro/São Paulo: Editora Record, 2008.
ELLIOTT, J. K. The
Apocryphal New Testament: A Collection of Apocryphal Christian Literature in an
English Translation. Oxford: Clarendon Press, 1993.
FREMANTLE, W. H. (tr.). The Perpetual Virginity of Blessed Mary em The Principal Works of St. Jerome (Nicene and Post-Nicene Fathers of the Christian Church, Series II,
Vol. VI). Edinburg: T&T Clark, 1892, p. 334-46 (Reimpressão digital: Grand
Rapids: Wm. B. Eerdmans Publishing Company, p. 758-78).
ROBINSON, James M. (ed.). The Nag
Hammadi Library in English. Leiden:
E. J. Brill, 1988. Edição brasileira: A
Biblioteca de Nag Hammadi. São Paulo: Madras Editora, 2007.
VAN VOORST, Robert. Jesus Outside the New Testament: An Introduction to the Ancient Evidence. Grand Rapids/Cambridge: W. B.
Eerdmans, 2000.