Octavio da Cunha Botelho
(Obs: este estudo está disponível em versão mais atualizada em:
http://observadorcriticodasreligioes.wordpress.com/2014/01/02/a-linhagem-dos-dalai-lamas-2/)
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O Palácio Potala em Lhasa, construído pelo 5º Dalai Lama no século XVII, foi o centro do governo e a residência do Dalai Lama até 1959, atualmente aberto ao turismo |
Nunca na história do Tibete um Dalai Lama
teve tanta popularidade internacional como o atual, Tenzin Gyatso, o décimo quarto, cujo carisma o leva a ser bajulado
em todos os cantos por onde viaja. A ocupação chinesa do Tibete, o massacre de
seu povo e o exílio do seu líder comoveram o mundo e o transformaram numa
celebridade mundial.
Entretanto, por trás da sua habitual mensagem
de paz e de não violência está uma história de violência, que poucos conhecem,
a qual esclarece como os dalai lamas chegaram a terem tanto poder sobre o povo
tibetano. O breve estudo abaixo procura resumir estes esclarecimentos.
O isolamento do Tibete
Sobre a impenetrabilidade do Tibete,
Emil Schlagintweit, um dos primeiros a escrever, em forma de livro, sobre esta
região tão desconhecida dos ocidentais na época, observou em 1863: “pois
penetrar no Tibete sempre foi uma matéria de grande dificuldade, ambas, em
virtude dos obstáculos apresentados pelas grandes elevações do território, como
também pelos sentimentos ciumentos e hostis dos nativos para com os
estrangeiros” (Schlagintweit, 1863: 145). L. Austine Waddell, quem teve a rara
oportunidade de estar com os lamas tibetanos por várias vezes no século XIX
e.c., bem como permanecendo por longos períodos de tempo, aprendeu a língua
tibetana, tinha mais facilidades de penetrar nesta região quase impenetrável, em
virtude de ter sido um militar britânico (mesmo assim, nalgumas vezes teve de
entrar disfarçado), disse em 1895: “Tibete, a terra mística do Grande Lama
(Dalai Lama) ... é ainda o mais impenetrável país no mundo. Por trás de suas
barreiras de gelo, erguidas pela própria natureza, e quase intransponíveis,
seus sacerdotes guardam seus desfiladeiros cuidadosamente contra estrangeiros.
Poucos europeus entraram no Tibete, e nenhum, desde meio século atrás, alcançou
a cidade sagrada (Lhasa). Dos viajantes dos últimos tempos, que têm se atrevido
a entrar nesta terra obscura, após escalarem suas fronteiras e penetrarem em
seus desfiladeiros, enfiando-se nos desertos de neve, mesmo os mais intrépidos
fracassaram em ir além dos arredores da sua província central” (Waddell, 1972:
01-2; 1ª edição: 1895).
Tashilhumpo, fundado pelo 1º Dalai Lama no século XV, um dos quatro mais importantes mosteiros da seita Gelugpa |
De modo que, o Tibete foi uma região tão
fechada para o Ocidente, que os visitantes europeus, que a visitaram até o
final do século XIX, podem ser contados nos dedos. Veja em seguida os relatos
dos escritores que escreveram, na segunda metade do século XIX e no início do
século XX, sobre os pouquíssimos visitantes europeus que alcançaram Lhasa
(capital do Tibete). Curiosamente, os pioneiros foram missionários cristãos,
porém nenhuma missão alcançou êxito, pois os religiosos eram logo expulsos.
O primeiro europeu a alcançar Lhasa, capital
do Tibete, foi o frade Odorico de Pordenne, por volta de 1328 (Landon, 1905:
05-6) ou 1330 (Waddell, 1972: 02). Em 1661, os jesuítas Albert Dorville e
Johann Gruher visitaram Lhasa em seus caminhos da China para a Índia. Depois, em
1706, os padres capuchinhos Josepho de Asculi e Francisco Maria de Toun
entraram em Lhasa desde Bengala. Em 1716, o jesuíta Ippolito Desideri a
alcançou vindo da Caxemira, permanecendo lá por cinco anos (1716-21). Ele foi o
primeiro ocidental a aprender a língua tibetana. Em 1741, uma missão capuchinha
conduzida por Horacio de La Penna, com cinco companheiros, chegou até Lhasa, no
entanto seus esforços em propagar a fé cristã teve pouco sucesso, embora tenha
sido recebida amavelmente pelas autoridades tibetanas. Entre os anos de 1774 e
1812 vieram os primeiros exploradores, George Bogle, um jovem escritor da East India Company, tenente Samuel
Turner e Thomas Manning, um excêntrico matemático e pesquisador oriental, todos
eles alcançaram, com relativo sucesso, o interior deste país de mistério. Os
subsequentes foram os missionários Evariste Huc e Joseph Gabet, os quais
alcançaram Lhasa em 1845, mas foram expulsos sete semanas depois da chegada
(Schlagintweit, 1863: 145-6; Waddell, 1972: 02 e para aprofundamento, ver:
Landon, 1905: 05-17). Bem, estes são os relatos dos que conseguiram, por outro
lado não sabemos quantos foram os que tentaram, mas morreram ou desapareceram
no caminho (Landon, 1905: 16).
A dificuldade para entrar no Tibete continuou
pelos anos seguintes. Nos anos 1850, todos os estrangeiros foram expulsos e as
fronteiras fechadas a todos de fora. Durante os anos 1923-49, o Tibete
desfrutou de uma independência de facto,
quando a China estava ocupada com guerras internas, com o movimento comunista e
com a Segunda Guerra Mundial, mesmo assim o Tibete continuou a manter limitados
contatos com o resto do mundo e Lhasa foi fechada aos estrangeiros. Porém,
apesar desta situação, alguns exploradores conseguiram penetrar naquelas
misteriosas terras naquele período. Desde então, foram possíveis descrições
mais acertadas sobre a cultura e a religião dos tibetanos, com os trabalhos
esclarecedores de W. W. Rockhill (1854-1914), Laurence Austine Waddell
(1854-1938 e Sir Charles Bell (1870-1945). Atualmente, a situação é muito
diferente, a região está aberta ao turismo, desde algumas décadas, o palácio Potala em Lhasa, antiga residência do
Dalai Lama, transformou-se em ponto turístico, até os antigos aposentos íntimos
do líder lamaísta podem ser visitados. No entanto, a prática do Budismo é atentamente
controlada pelas autoridades chinesas.
O resultado da introversão
tibetana
Drepung, outro dos quatro mais importantes mosteiros da seita Gelugpa, a corrente dominante no Tibete a partir do século XVII |
O isolamento do Tibete o manteve como
o grande baluarte da cultura supersticiosa no mundo, onde se podia encontrar o
maior cultivo das práticas mágicas. A cultura e a vida tibetanas testemunhadas
pelos que as conheceram no século XIX, E. Schlagintweit, W. W. Rockhill, L. A.
Waddell e Charles Bell lembram a retrógada mentalidade supersticiosa da Antiguidade
e da Idade Média, com seu devotado envolvimento com as práticas da feitiçaria,
do exorcismo, da bruxaria, da demonolatria, da adivinhação, da necromancia,
etc. (Waddell, 1972: 403-19, 450-500 e passim),
enfim, em outras palavras, o Tibete por muito tempo foi o “covil dos magos”.
Enquanto, no século XIX, a Europa e
outros países do mundo experimentavam as transformações da Revolução
Industrial, o Tibete se introvertia ainda mais, fechando suas fronteiras aos
estrangeiros, mergulhando mais fundo na sua obsoleta cultura supersticiosa.
Parece que grande engano dos
tibetanos, talvez estejam colhendo o que semearam, foi sempre pensar que a
característica étnica era o suficiente para caracterizar o conceito de Estado.
Em virtude do seu isolamento, eles não acompanharam as transformações no
conceito de Estado que aconteciam na Europa, com as novas ideias de
Montesquieu, de Rousseau e da Revolução Francesa, eles pensavam que apenas a
propriedade étnica era suficiente para caracterizar a formação de um Estado. O
resultado foi que nunca conseguiram o reconhecimento internacional como um
estado independente. Enfim, os tibetanos não conheceram o conceito moderno de
Estado:
1- Território: o
Tibete nunca teve um território com fronteiras permanentes e claramente
definidas, pois ora estava fragmentado por feudos rivais ou invadido por
estrangeiros (mongóis, chineses e manchus).
2-
Povo: a
população sempre foi profundamente religiosa, na qual em cada província
predominava uma ou outra seita do Lamaísmo, conforme a época e a dominação
estrangeira. As seitas estavam sempre brigando entre si. Algumas seitas, ou
mesmo mosteiros, tinham até seus exércitos particulares (Richardson, 1962: 39).
3- Governo:
desde o século XVII, o Dalai Lama acumulou os poderes religiosos e políticos do
Tibete, porém ele é apenas o líder na hierarquia de uma das seitas do Budismo
Tibetano, a seita dominante, Gelugpa,
e não uma unanimidade. As outras seitas também possuem suas hierarquias com
seus líderes (Minmapa, Kargyupa, Sakyapa,
Kadampa, Karmapa, etc.). Portanto, para o conceito moderno de Estado, o
Tibete é uma região com um povo profundamente religioso governado por um líder
de uma seita budista dominante. Enfim, o Tibete é mais uma “grande igreja” com
poderes políticos e administrativos, do que um Estado.
Introdução e desenvolvimento
do Budismo no Tibete
Dos tantos países por onde o Budismo
se espalhou, o Tibete foi um dos últimos a recebê-lo e, mesmo assim, sua
penetração foi lenta, até alcançar uma implantação definitiva. Em virtude da
chagada tardia, a modalidade de Budismo recebida foi uma já heterogeneamente
desenvolvida na Índia, o Budismo Vajrayana
(o Veículo do Diamante).
Padmasambhava (sec. VIII e.c.), a seita Ninmapa o considera o verdadeiro introdutor do Budismo no Tibete |
Apesar de ser habitualmente
conhecido como um dos países mais fechados do mundo, o Tibete, assim como
outros países, também experimentou, no passado, sua época dourada, ou seja, durante
o seu período de abertura e de expansão territorial, o Império Tibetano da
dinastia Yar-Lung dos séculos VII e
VII e.c., quando expandiu suas fronteiras até algumas regiões da China, do
norte de Índia, do leste da Ásia Central, bem como incorporou o Nepal e o
Butão. Este foi o império do rei Song-Tsen
Gampo (604-650 e.c.), o maior personagem da história tibetana. No entanto,
este foi o único momento de glória imperial do Tibete, pois, em seguida
sucedeu-se uma fragmentação do seu território e um longo período de
subordinação e de domínio por forças estrangeiras (mongóis, chineses e manchus
revezaram o domínio por séculos.), intercalado por curtos períodos de
independência, de unificações parciais e de pequenas expansões, até a última
ocupação estrangeira, a dos chineses em 1949.
Com o aumento do seu poder militar, Song Tsen Gampo atormentou as fronteiras
da China, de maneira que o então imperador chinês, Tai Tsung, da dinastia T’sang,
ficou contente em chegar a um acordo com o jovem imperador tibetano e, para
consolidar a aliança, deu-lhe a mão de sua filha, a princesa Wencheng, em casamento no ano de 641
e.c. Dois anos antes, ele já tinha se casado com a filha do rei do Nepal, a
princesa Bhrikuti. Ambas as princesa
eram budistas devotas. O jovem imperador tibetano se interessou pelo Budismo e,
assim, enviou seu vassalo Thonmi Sambhoda
para estudar Sânscrito na Índia. Após seu retorno, um alfabeto tibetano foi
criado e a gramática foi codificada. Alguns textos budistas em Sânscrito foram
traduzidos para o tibetano neste período. O sistema de escrita auxiliou a criar
um sentido de comunidade cultural. Antes desta época (século VII e.c.), o
Tibete era uma região selvagem, a chegada do Budismo, então, civilizou o
Tibete.
Entretanto, este primeiro impulso
não foi suficiente para fazer o Budismo decolar, a nova religião importada
ainda sofria muita oposição da nativa religião xamânica Bon. No século seguinte, novo impulso foi dado pelo imperador Thri Song de Tsen (742-98 e.c.) quando
este convidou monges budistas da Índia para ensinarem no seu país. Então, foi
neste período que chegou ao Tibete, em 747 e.c., o monge tântrico Padmasambhava, o qual seria posteriormente
envolvido em muitos relatos lendários (Waddell, 1972: 24-8; 380-2 e Evans-Wentz,
2000b: 101-92), um professor da escola budista de Nalanda, norte da Índia. A seita Minmapa o considera como o verdadeiro introdutor do Budismo no
Tibete. Também, importante foi a vinda do erudito monge budista Santarakshita, nesta mesma época. Este
último ordenou os primeiros monges tibetanos após a construção do primeiro
mosteiro budista em Samye, no ano de
775 e.c. Neste período foram feitas ainda mais traduções de textos budistas
para o tibetano.
Tsong Khapa, o fundador da seita Gelugpa no século XIV e.c. |
Entretanto,
no século seguinte, quase tudo foi por água abaixo com a perseguição aos
budistas empreendida pelo imperador apóstata Lang-Darma, quem governou a partir de 836 e.c., bem como com o seu
assassinato em 842 e.c. Uma guerra civil eclodiu e o império desintegrou-se,
perdendo, com isso, seu poder militar e político. Lang-Darma foi o último imperador. Em seguida, segui-se um período
de hibernação do Budismo Tibetano até o final do século X e início do século
XI.
Com a queda do Império, perdeu-se também uma
liderança central no Budismo Tibetano e, consequentemente, o sistema monástico
enfraqueceu-se, abrindo as portas para o aumento das práticas tântricas por
praticantes que não eram monges, geralmente adeptos casados. Sucedeu-se, então,
um choque de opiniões entre os defensores da vida monástica, com base nos sutras do Mahayana, os quais acusavam os tântricos de deformarem o
ensinamento do Dharma; e os
tântricos, por sua vez, insistiam que não era necessária a vida monástica,
considerando esta como inferior às práticas tântricas.
Para solucionar este conflito, o então rei do
Tibete Ocidental, Ye-Shay-o, defensor
do reestabelecimento do monasticismo, convidou o monge indiano Atisha (982-1054 e.c.) para residir no
Tibete, o qual chegou em 1038 e.c. Ele foi o primeiro grande reformador do
Budismo Tibetano. Atisha entusiasmou
os tibetanos com seus ensinamentos e forneceu a base para a solução do conflito
entre as práticas monásticas e tântricas, ele incluiu ambas em sua síntese. Seu
discípulo, Drom-Don-ba (1005-64
e.c.), enfatizou o monasticismo e a prática do aspecto exotérico do Budismo.
Esta ênfase o levou a fundar, em 1050 e.c., a seita Kadampa, a precursora da grande seita Gelugpa, esta última foi fundada pelo grande reformador tibetano Tsong Khapa (1357-1417 e.c.), em 1407
e.c., a corrente dominante do Budismo Tibetano até os dias de hoje.
A partir, então, do século XI, inicia-se uma
efervescência no Budismo Tibetano, com o surgimento de muitos reformadores e a
multiplicação de novas seitas, o que torna muito extenso expor todo o assunto
aqui. Para conhecer um esquema geral das sitas do Budismo Tibetano, consultar a
obra Tibetan Buddhism de L. A. Waddell, p. 55, onde as correntes são divididas
em: reformadas (Gelugpa e Kadampa), semi reformadas (Kargyupa, Karmapa, Sakyapa e outras) e
as não reformadas (sobretudo Minmapa). Para
aprofundamento na história do Budismo no Tibete, ver: Waddell, 1972: 18-53;
Conze: 1996: 104-6 e 127-38; Obermiller, 1996: 181s; Dreyfus, 2003: 17-31 e
Wayman: 2006: 250-6.
A heterogeneidade do Budismo
Tibetano
Quatro camadas se integram e se
sobrepõem no Lamaísmo:
1ª camada:
relativa à corrente do Hinayana
(Pequeno Veículo, recebe este nome porque sua embarcação (yana) abriga poucos pretendentes, os quais precisam ser monges e
passar por austeras disciplinas para alcançarem o Nirvana) os ensinamentos básicos de Buda, o monasticismo. Esta é a
visão budista que gira principalmente em torno das três categorias: Samsara, Karma e Nirvana. Na
tradição tibetana, estas ideias e práticas budistas raramente são autossuficientes,
ao invés, elas são combinadas com a segunda camada.
2ª camada: as
ideias e as práticas nos sutras
(sermões) do Budismo Mahayana (Grande
Veículo, recebe este nome porque sua embarcação (yana) abriga muitos pretendestes, não precisa ser monge para
alcançar o Nirvana e está aberto a
todos) que propõe o ideal do Bodhisattwa,
a renúncia ao Nirvana para auxiliar
os outros a alcançarem o budado. Isto exige a prática da conduta à Libertação,
que consiste na prática de: moralidade, concentração, insight, compaixão e o
caminho conhecido como “Veículo da Perfeição” (Paramitayana). Esta é a parte exotérica do Budismo Tibetano.
3ª camada:
consiste nos textos esotéricos, as ideias e as práticas encontradas no Tantras, os quais ensinam o cominho
secreto, o Mantra Secreto, ou Vajrayana
(Veiculo do Diamante, recebe este nome porque sua embarcação (yana) abriga os ensinamentos do Hinayana, do Mahayana e dos Tantras).
O objetivo da prática tântrica é ativar o potencial interno do discípulo para
apressar a conquista do Nirvana.
4ª camada: o
Budismo Tibetano não está limitado a estas três correntes canônicas. Existe uma
grande quantidade de práticas populares tratando de: possessão, exorcismo,
adivinhação, cura, adoração de demônios, invocação de elementos da natureza e
de espíritos, busca de riqueza e de poder, etc. Este é o substrato xamânico da
nativa religião Bon, o qual nunca se
desgarrou da tradição budista do Tibete (Dreyfus, 2003: 18-20).
A linhagem dos Dalai Lamas
Poderá ser novidade para muitos, mas
Dalai Lama não é o nome de uma pessoa, senão o nome de um cargo de líder
religioso, assim como é o nome Papa no Catolicismo, o nome Patriarca na Igreja
Ortodoxa e o nome Califa no Islamismo. O nome do atual Dalai Lama é Tenzin Gyatso (1935- , nome religioso),
ele é o décimo quarto Dalai Lama, seu nome de família é. O nome Gyatso (oceano em tibetano) acompanha os
nomes de todos os Dalais, exceto o primeiro, Gendun Drup (1391-1474 e.c.), tal como será visto em seguida.
A história dos Dalai Lamas começa em 1578
e.c., quando Sonam Gyatso (então
abade do mosteiro Gelugpa de Drepung, quem depois se tornaria o
terceiro Dalai Lama) visitou a Mongólia, por ser um brilhante erudito e um
hábil missionário, converteu ao Budismo o líder mongol, Altan Khan, juntamente com um grande número de seus seguidores. Este
último, por sua vez, concedeu a Sonam
Gyatso o título de “Dalai”
(oceano em mongol), uma tradução da palavra “Gyatso” (oceano em tibetano, no sentido de “oceano de conhecimento”).
Depois, o título de Dalai Lama foi retrospectivamente concedido aos abades dos
mosteiros de Drepung que antecederam Sonam Gyatso, estes foram, Gedun Truppa (1391-1474), sobrinho de Tsong Khapa, e Gedun Gyatso (1475-1542), de modo que, os dois primeiros Dalai
Lamas receberam o título postumamente. Sonam
Gyatso afirmou que ele era a reencarnação dos dois abades anteriores de Drepung (Gedun Truppa e Gedun Gyatso),
aproveitando-se do então emergente sistema de lamas reencarnados (tulku, o qual acontece com a
transferência da consciência de um mestre falecido para um recém-nascido), já
utilizado por outras seitas lamaístas (Sakyapa,
Karmapa, etc.) para assegurar a
continuidade da linhagem e evitar que os bens dos mosteiros caíssem nas mãos de
aproveitadores, a fim de, então, introduzir na seita Gelugpa, a linhagem de mestres reencarnados (tulku). Daí, a partir de então, todo Dalai Lama é a reencarnação de
todos os Dalai Lamas anteriores, os quais, por sua vez, são conjuntamente a
reencarnação de Avalokiteshwara, o Bodhisatwa da compaixão. O importante
mosteiro Gelugpa de Tashilhumpo foi fundado por Gedun Truppa (o primeiro Dalai Lama) em
1445 e.c. Após o terceiro Dalai Lama (Sonam
Gyatso), o mosteiro de Tashilhumpo
passou a ter a sua própria linhagem de líderes, conhecidos como Panchen Lamas, paralelamente à linhagem
dos Dalai Lamas. A linhagem dos Panchen
Lamas (ou Tashi Lamas) são a
segunda em autoridade na hierarquia da seita Gelugpa, após a linhagem dos Dalai Lamas, e também utilizam o
sistema de mestres reencarnados (ver a lista da linhagem em: Waddell, 1972: 236
e para os relatos dos primeiros Dalai Lamas, ver: Richardson, 1962: 40-1 e
Wayman, 2006: 253-4).
O 5º Dalai Lama, Logsang Gyatso (1617--82), aclamado pelos tibetanos como "O Grande Quinto" |
Após a morte do terceiro Dalai Lama, Sonam Gyatso, o seu sucessor, Yonten Gyatso (1589-1617 e.c.) foi
suspeitamente encontrado, não por acaso, num dos bisnetos de Altan Khan, uma eficiente estratégia
política para consolidar a aliança entre a seita Gelugpa e os mongóis, o que nos leva a suspeitar da honestidade do
sistema de reencarnação de mestres (transferência de consciência de um mestre
falecido para uma criança recém-nascida), já dotado pela seita Gelugpa (Wayman 2006; 254). Este fato
consolidou a supremacia da seita Gelugpa,
primado que, desde o século XVI, vigora até os dias de hoje. Porém, esta
aproximação entre a seita Gelugpa e
os mongóis provocou a revolta das seitas rivais, sobretudo da seita Karmapa, destronada pelos Gelugpas, então, apoiada pelo rei de Tsang (Tibete Central), desfechou um
ataque contra os mosteiros Gelugpas
de Drepung e Sera e o jovem Dalai Lama foi forçado a fugir. Os Gelugpas buscaram ajuda dos seus aliados
mongóis, mas estes últimos não interviram imediatamente, e o Dalai Lama acabou
morrendo com a idade de 25 anos de idade (Wayman, 2006: 254).
O quinto Dalai Lama, Ngawang Lobsang Gyatso (1617-1682 e.c.), foi o mais admirado de
todos, por isso os tibetanos atribuíram-lhe o título de “O Grande Quinto”. Ele
aliou-se com o líder mongol Gushri Khan
(o grande patrono da ordem Gelugpa) que
derrotou o rei Tsang, depois de uma
guerra sangrenta de demorada, assim destituindo o poder militar dos Karmapas e, em seguida devolveu a
liderança ao Dalai Lama, o qual expandiu o seu poder por todo o Tibete. O 5º
Dalai Lama foi colocado no trono, como o líder religioso e temporal do Tibete,
em 1642 e.c., e Gushri Khan
ofereceu-lhe suas conquistas do Tibete Central e Oriental como presente.
Diante desta nova situação, o antigo palácio
de Ganden, no mosteiro de Drepung, não servia mais aos propósitos
do novo estado, uma vez que o palácio não podia ser considerado a capital
política do Tibete. Então, iniciou-se a construção do palácio de Potala em 1645
e.c., cuja conclusão em 1649 e.c., transferiu a sede do governo para
Lhasa.
Entretanto, mais uma vez, a escolha sucessória
de um Dalai Lama está cercada de suspeita. Sabemos que, um dos sinais
utilizados pelos lamas tibetanos para reconhecer que uma criança é a
reencarnação de um lama falecido é pelo reconhecimento dos objetos pessoais
utilizados por este último. O próprio “Grande Quinto” denunciou depois a
fraude, sobre o seu teste de identificação de objetos, em um de seus escritos:
“O oficial Tsawa Kachu do palácio Ganden (no mosteiro Drepung) mostrou-me
estátuas e rosários (que pertenceram ao quarto Dalai Lama e outros lamas), mas eu fui incapaz de distingui-los.
Quando ele deixou o quarto, eu o ouvi dizer aos outros do lado de fora que eu
tinha passado no teste. Mais tarde, quando ele tornou-se meu tutor, ele sempre
me censurava e dizia: você precisa se esforçar, visto que você foi incapaz de
reconhecer os objetos” (Karmay, 2005: 12). Esta denúncia é perturbadora, porém o
autor do artigo, Samten G. Karmay, não cita a fonte do registro de onde ele retirou
a citação. Todos os outros livros consultados, quando tratam deste Dalai Lama,
não mencionam esta denúncia.
O Sexto Dalai Lama, Tsangyang Gyatso (1683-1706), foi o mais exótico de todos. Em razão
da sua vida libertina e de poeta (foi o único compositor de versos líricos do
Tibete), foi deposto, preso e assassinado em 1706, com apenas 23 anos de idade (Waddell,
1972: 234 e Wayman, 2006: 262).
Os próximos dalai lamas, do sétimo ao décimo
segundo, nenhum chegou até a maturidade. O sétimo Dalai Lama, Kelzang Gyatso (1708-1757) morreu aos 49
anos de idade, porém exerceu o cargo por pouco tempo, uma vez que foi exilado
por muitos anos e só conseguiu assumir no final da sua vida; o oitavo, Jamphel Gyatso (1758-1804), morreu aos
46 anos. Pior ainda foram os quatro próximos, o nono, Lungtok Gyatso (1805-1815) morreu aos 10 anos de idade; o décimo, Tsultrin Gyatso (1816-1837) aos 21 anos;
o décimo primeiro, Khendrup Gyatso
(1838-1856) aos 18 anos e o décimo segundo, Trimley
Gyatso (1857-1875) aos 22 anos de idade, todos sob fortes suspeitas de
terem sido assassinados (Richardson, 1962: 59 e Waddell, 1972: 234-5).
O 13º Dalai Lama, Thubten Gyatso (1876-1933), introduziu importantes inovações no Tibete |
O décimo terceiro Dalai Lama, Thubten Gyatso (1876-1933) interrompeu
esta sequência de mortes prematuras e viveu até os 57 anos de idade, foi capaz
de exercer o cargo por 38 anos, porém intercalados com períodos de permanência
no exílio, para fugir das invasões britânica (1904-1909) e chinesa (1910-1913).
Ele foi o primeiro Dalai Lama a perceber a importância das relações
estrangeiras. Após seu retorno do exílio em 1913, introduziu algumas inovações
no Tibete: o primeiro selo postal, a célula de dinheiro em papel, a polícia,
etc. Neste mesmo ano, declarou independência da China e padronizou a bandeira
tibetana, a qual é utilizada até os dias de hoje pelos militantes do movimento
de independência do Tibete. Seu principal empenho foi evitar a dominação
estrangeira no Tibete, embora com pouco sucesso, uma vez que os chineses, os
britânicos e os russos cobiçavam a região.
O próximo, o décimo quarto, é o atual Dalai
Lama, Tenzin Gyatso (1935-). De todos
os líderes tibetanos, é o único que não necessita de apresentação, pois foi o
primeiro Dalai Lama a se transformar em celebridade mundial. Notícias sobre ele
estão sempre nos noticiários de todos os países do mundo. Para onde vai, ele é recebido
por um séquito de admiradores e de bajuladores. Recebeu o Prêmio Nobel da Paz
em 1989. Ele residiu no Tibete até 1959, após o fracassado levante tibetano
contra a ocupação chinesa, desde então ele vive em Dharamsala, Índia, onde formou um Governo Tibetano no Exílio.
Agora, o intrigante é que ele é um insistente
pregador da paz e da não violência, à maneira gandhiana, no entanto, quando
observamos, no breve estudo acima e, mais detalhadamente, através de um estudo
da história do Tibete, a maneira violenta e sangrenta com a qual a sua seita
lamaísta, a ordem Gelugpa, construiu
e manteve a supremacia sobre as outras seitas rivais, nos tornamos perplexos. O
primado da ordem Gelugpa sobre as
outras rivais, no período do quinto Dalai Lama, foi obtido com muita violência
e com muito sangue e graças à aliança com um sanguinário líder mongol, Gushri Khan.
Uma reflexão descontraída
O surpreendente, e até certo ponto intrigante,
é a atribuição do titulo de Gyatso
(oceano, em tibetano, no sentido de oceano de conhecimento) e Dalai (oceano, em mongol) para quase
todos os líderes da seita Gelugpa,
exceto o primeiro Dalai Lama. O curioso é que ambas as regiões (Tibete e
Mongólia) não são banhadas pelo oceano. Pelo que se percebe do temperamento
fechado dos tibetanos e a aversão pelos estrangeiros, é certo que quase a
totalidade da população tibetana, por todos os séculos, nunca viu o mar, pois os
tibetanos não costumavam viajar para longe. As praias mais próximas do Tibete
estão nas regiões de Bangladesh e da província de Bengala na Índia, a muitas dezenas
de kilometros de distância. Na época da atribuição do título (século XVI), não
existiam a fotografia, o cinema e o vídeo, para que a imagem do oceano pudesse
ser conhecida, pelo menos, através de reprodução. Talvez o primeiro Dalai Lama
a ver o oceano seja o atual, uma vez que vive no exílio e viaja muito. Então,
seria curioso saber a razão que levou um povo, que vive tão distante do mar, a
atribuir o título importante de Oceano (Gyatso) para o seu maior líder.
O 14º e atual Dalai Lama, Tenzin Gyatso (1935-), transformou-se numa celebridade mundial |
Então, um leitor espirituoso deste
estudo, poderá estar imaginando como poderá ser este oceano no qual viveram os
Dalai Lamas. Pelas lutas violentas e o derramamento de sangue, nas disputas por
poder e pela supremacia, tal como descritas acima, ele será imaginativamente
levado a pensar que se trata de um oceano habitado por tubarões predadores, no
qual cada um, com a ajuda de seu cardume, procura manter a soberania em suas
águas e conquistar o poder sobre as dos outros, a fim de alcançar domínio sobre
todo o oceano. Esta foi a briga entre as
seitas tibetanas durante séculos.
Quanto à localização deste oceano,
este mesmo leitor imaginará que, com tanto derramamento de sangue em busca de
poder, certamente esta região não será o Oceano Pacífico, então, a região
oceânica mais provável deverá ser o Mar Vermelho. Os períodos de exílio de
alguns Dalai Lamas e os seus sofrimentos devem ter acontecido no Cabo das
Tormentas e as misteriosas mortes prematuras dos Dalai Lamas IX ao XII, bem
como o desaparecimento misterioso do quinto Dalai Lama (sua morte foi ocultada
por alguns anos pelo regente tibetano na época) devem ter acontecido na região
do Triângulo das Bermudas.
Enfim, aqueles que ouvem as
pregações de paz e de não violência do atual Dalai Lama, Tenzin Gyatso, e não conhecem a história tibetana, sobretudos os
admiradores e os bajuladores, não são capazes de imaginar que, por trás desta
mensagem pacífica, se esconde uma história de sangrentas lutas de sua seita, a Gelugpa, a fim de alcançar a supremacia
sobre as outras correntes, até se tornar a ordem dominante do Budismo Tibetano.
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