quinta-feira, 28 de março de 2013

|ESTUDO| Jesus na Índia, uma Breve Análise das Fontes


por Octavio da Cunha Botelho

O santuário Roza Bal em Srinagar, na Caxemira,
onde está sepultado Yuz Asaf, quem a tradição
local e alguns autores identificam com Jesus
A vida de Jesus sem a crucificação e, consequentemente, sem a ressurreição, é algo inconcebível para a tradição cristã, ou melhor, mais do que isto, uma remoção da base da doutrina do Cristianismo, a qual foi construída a partir do crucial milagre da ressurreição, que está bem no coração da fé cristã. No entanto, não era assim nos primeiros anos do Cristianismo, quando diferentes correntes exegéticas disputavam a hegemonia ideológica da nova crença. Os gnósticos, com base no que é possível perceber a partir dos textos remanescentes e dos descobertos, por exemplo, não davam tanta importância para os fenômenos da crucificação e da ressurreição, tal como faziam os seguidores da corrente que se tornaria ortodoxa mais tarde, pois para eles, Jesus era mais um sábio do que um salvador, portanto a sua sabedoria era mais importante que os milagres e o fenômeno da ressurreição. Os textos gnósticos compostos no momento das aparições de Jesus após a morte não são para provar que ele alcançou o fantástico milagre de renascer entre os mortos, tal como o Cristianismo ortodoxo entende, mas sim para transmitir ensinamentos numa sublimidade que nenhum outro era capaz. Enfim, para os gnósticos as instruções são mais importantes que os milagres da ressurreição e das aparições póstumas. Um exemplo é o Pistis Sophia, um extenso texto gnóstico no qual Jesus transmite ensinamentos aos discípulos durante uma aparição após a morte.
Assim, o estudo abaixo trata de uma versão da vida de Jesus que desmorona todo o edifício da tradicional fé cristã, erguido, após muita luta e sangue, sobre os alicerces da crucificação e da ressurreição de Jesus, ou seja, a hipótese de que ele não tenha morrido na cruz, daí a magnitude da polêmica entre os religiosos.

O ímpeto fantasioso

O ímpeto pela fantasia é tão incontido nos religiosos que o processo de composição de novas lendas e mitos não tem fim, bem como o resgate de antigas lendas perdidas continua a atrair a curiosidade de muitos. Mesmo numa época predominantemente secular, tal como o século XX, novos relatos fantasiosos sobre as antigas religiões e seus líderes foram criados com a receptividade dos curiosos, sobretudo daqueles que procuram versões alternativas que, supostamente, preencham lacunas deixadas pelas grandes religiões tradicionais. No Ocidente, este interesse é alimentado, sobretudo, pelos esoteristas, pelos teósofos, pelos rosa-cruzes, pelos new agers e por outros, os quais estão sempre abertos e ávidos por novas revelações, por novos achados e por novas interpretações que satisfaçam os seus apetites por esclarecimentos suplementares ausentes nas religiões tradicionais, não importando, na maioria das vezes, o quão fantasiosa a nova revelação possa ser.
Com respeito ao Cristianismo, a continuidade do aparecimento de novos relatos, sobre a vida e os ensinamentos de Jesus, recebeu os nomes de “apócrifos modernos” ou de “boatos bíblicos” (Goodspeed, 1956). Se estas denominações são procedentes ou não, trata-se de um assunto discutível. A literatura sobre estas novas revelações e descobertas é extensa, de modo que o breve estudo abaixo se limitará aos recentes textos sobre a viagem e a estadia de Jesus na Índia.
Gravura reproduzindo Jesus no interior de um templo hindu
O assunto nunca foi seriamente encarado pelos acadêmicos. Com isso, não temos literatura acadêmica, apenas breves avaliações e comentários desaprovadores por estudiosos, os quais não se deram ao trabalho de aprofundar na questão. Porém, mesmo assim, será interessante tratar deste assunto aqui, pois embora não seja de interesse acadêmico, provoca muito reboliço na mídia e na população. Veja os exemplos do alvoroço provocado por filmes como a Última Tentação de Cristo (1988) e O Códico Da Vinci (2006), ambos a partir de livros, duas obras que tratam da sobrevivência de Jesus à crucificação.  

A lacuna nos evangelhos canônicos

            Os quatro textos oficiais omitem o relato da vida de Jesus dos 12 aos 30 anos de idade.  No máximo, o Evangelho de Lucas apenas menciona que ele foi levado ao templo na idade de 12 anos (Lucas 2:41), mais adiante é afirmado que ele inicia seu ministério na idade de cerca de 30 anos (Lucas 3:23), portanto um salto de 18 anos. Existem alguns evangelhos apócrifos da infância, porém nada foi registrado da sua adolescência e do início da sua vida adulta.  Esta lacuna deixa a curiosidade em saber da vida do nazareno durante este período. Os relatos sobre as suas viagens durante este período, sobretudo à Índia, são contestadas pelos oponentes com base em um episódio, nem tão esclarecedor, narrado nos evangelhos de Marcos e de Mateus, quando Jesus está iniciando seu trabalho de pregação e é visto por conterrâneos que se surpreendem com o seu discurso, então proferem a indagação: “Não é ele o carpinteiro, o filho de Maria...”? (Marcos 6:03 e Mateus 13:53). Existe uma diferença na redação destas duas passagens, na de Marcos, Jesus é mencionado como o ‘carpinteiro’ (gr: tekton; lat: faber), enquanto na de Mateus, é mencionado como o ‘filho do carpinteiro’ (gr: tektonos uios; lat: fabri filius). A alegação dos contestadores das viagens é que Jesus permaneceu em sua cidade, trabalhando como carpinteiro, durante este período, por isso a familiaridade de seus conterrâneos e a surpresa pela sua pregação. No entanto, a indagação dos conterrâneos não é suficiente para assegurar a sua invariável permanência, pois a frase “filho do carpinteiro” (tektonos uios) deixa uma margem para o fato de Jesus ser conhecido apenas como o filho de José, o carpinteiro, e não ter sido um carpinteiro de profissão, bem como a possibilidade de ter estado fora da região por algum período, portanto não trabalhou o tempo todo como carpinteiro em sua cidade.

Os anos perdidos e a sobrevivência à crucificação

            O período da vida de Jesus omitido nos relatos bíblicos é conhecido como “os anos perdidos” ou “os anos desconhecidos” (Notovitch, 1916; Dowling, 1947; Prophet, 1987; Kerster, 2001 e Ahmad, 2003), isto é, a fase dos 12 aos 30 anos, quando alguns autores alegam que o nazareno esteve com os essênios, ou visitou a Bretanha, ou viajou pelo Oriente (Índia, Tibete, Egito, Pérsia, Grécia, Japão, etc.), aprendendo com os sábios ou ensinando ao povo. Outra alegação é a de que ele não morreu na cruz (Alcorão 4:157 e Ahmad, 2003: 57-62), sendo então substituído por outra pessoa no momento da crucificação, a qual foi crucificada em seu lugar, ou também, sobreviveu à crucificação, não chegando a morrer, mas apenas sofreu um desmaio (Ahmad, 2003: 17), este último caso é conhecido como “hipótese do desmaio”. Então, em seguida, partiu em viagem para o Oriente, onde faleceu nestas terras distantes em idade avançada (Ahmad, 2003: passim), ou até mesmo que Jesus visitou as regiões orientais tanto na sua juventude como depois da sobrevivência à crucificação (Kersten, 2001). Os mórmons acreditam que Jesus realizou aparições na América depois da sua morte. Dentre todas estas especulações, o estudo aqui se limitará à hipótese de sua viagem à Índia, do contrário este estudo se tornaria muito extenso, em vista do grande número de relatos delirantes.

O despertar do interesse

           
O mosteiro de Hemis, Ladak, Caxemira, onde Notovitch
 alegou ter anotado a tradução do manuscrito de A Vida
Desconhecida de Jesus.
O assunto acima estava adormecido até 1887, quando o jornalista russo Nicolas Notovitch, durante uma viagem à Índia, visitou a região do Ladak, no estado da Caxemira, Índia, onde predomina a cultura do Budismo Tibetano, por isso o Ladak é apelidado de “Pequeno Tibete”. Após uma fratura na perna, ele teve de ser assistido por monges do mosteiro budista de Hemis, nesta região, fato que lhe obrigou a estender sua permanência. Na ocasião, ele foi informado da existência de um manuscrito desconhecido com o nome de “A Vida do Santo Issa, o Melhor dos Filhos do Homem” guardado na biblioteca deste mosteiro. Issa é o nome atribuído a Jesus no Alcorão (3:45 e 5:75). Então, com a ajuda de um intérprete, anotou as traduções para, assim, publicá-las depois em Paris com o título de “La Vie Inconneu de Jésus Christ” (A Vida Desconhecida de Jesus Cristo), em 1894. A edição inglesa apareceu logo em seguida, com o nome de “The Unknown Life of Jesus Christ”, em 1895 (Notovitch, 1916: 08-9). O livro, certamente, provocou um alvoroço no meio intelectual. As opiniões se dividiram entre os que acreditaram na publicação de Notovitch e os que perceberam nela uma fraude. O primeiro a contestar foi o então prestigiado orientalista F. Max Müller, no jornal inglês The Nineteenth Century, em Outubro de 1894, onde ele denunciou a descoberta de Notovitch como uma fraude, bem como suspeitou até mesmo da visita deste jornalista russo ao mosteiro de Hemis no Ladak (Kerster, 2001: 10). Outro ataque, desta vez de um professor do Government College de Agra, Índia, J. Archibald Douglas, cuja visita ao Ladak em 1895, o levou a investigar a autenticidade da descoberta de Notovitch. Seu relato foi publicado em Abril de 1896 no Orientalischen Bibliografie com o título de “Documentos provam a fraude de Notovitch”. Outra publicação do The Nineteenth Century, em 1896, contém a afirmação de J. A. Douglas, durante sua visita ao mosteiro Hemis, de que o abade, ao conhecer a publicação de Notovitch, respondeu que “tudo era mentira” (Kerster, 2001: 11). 
            Em 1956, Edgar J Goodspeed usou o primeiro capítulo de seu livro Famous Biblical Hoaxes or Modern Apocrypha (Famosos Boatos Bíblicos ou Apócrifos Modernos) para demonstrar a fraude de Nicolas Notovitch. Mais recentemente, o conhecido e dedicado pesquisador bíblico Bart D. Ehrman escreveu: “Hoje não há um único pesquisador reconhecido no planeta que tenha dúvida sobre a matéria. A história inteira foi inventada por Notovitch, que ganhou muito dinheiro e uma substancial soma de notoriedade por seu boato” (Ehrman, 2011: 282-3). Para James R. Lewis, tudo é uma forja (Lewis, 2003: 79s). 
            Por outro lado, Nicolas Notovitch também teve defensores, naturalmente da parte de um esoterista, de um místico, e de uma que se autoproclamava vidente (Kersten, 2001: 01-18; Abhedananda, 1987 e Prophet, 1987: 92-120 respectivamente). Enfim, somente estas modalidades de pessoas acreditaram em Notovitch. O fato é que, o manuscrito, do qual Notovich retirou suas anotações traduzidas, nunca foi mostrado publicamente, nem sequer uma cópia, sendo assim, nunca foi entregue para o escrutínio de pesquisadores acadêmicos com conhecimento em Crítica Textual e em Filologia, para a avaliação da sua autenticidade, do seu significado e da sua credibilidade como documento histórico.

“A Vida Desconhecida de Jesus Cristo” de Nicolas Notovitch

            Agora, deixando de lado a questão se a publicação de Notovitch é autêntica ou uma fraude, ou seja, se o tal manuscrito realmente existe, se ele esteve no mosteiro de Hemis, se o tal manuscrito lhe foi mostrado, se ele de fato anotou as traduções ditadas pelo tradutor, etc., uma vez que a dúvida não foi esclarecida até hoje, a análise do próprio conteúdo da publicação poderá ser mais útil para o julgamento da autenticidade.
           
Nicolas Notovitch despertou o interesse
pela hipótese da viagem de Jesus à Índia
Notovitch afirmou que a sua publicação de “A Vida Desconhecida de Jesus Cristo” não é uma tradução integral do manuscrito que lhe foi mostrado no mosteiro de Hemis, mas sim uma coletânea de notas que ele efetuou conforme o tradutor lhe foi ditando. Estas anotações em algumas passagens coincidem e em outras divergem dos relatos do Antigo e Novo Testamentos. Com respeito a Jesus, chamado de Issa neste texto, ele já era um admirado pregador na idade de treze anos, quando sua casa era frequentada por ricos e nobres, os quais disputavam o jovem Issa (Jesus) como genro (Notovitch, 1916: 106-7). Mas Issa não se interessou por este destino e, clandestinamente, deixou a casa dos pais para, na companhia de mercadores, viajar em direção a Sindh (Índia), para “se aperfeiçoar na divina palavra e estudar as leis dos grandes Budas” (idem, p. 107). Chegando lá, ele primeiro esteve com os adoradores do deus Jaina (os jainistas não adoram nenhum deus), mas logo em seguida os abandonou e se dirigiu para a província de Orissa (nordeste da Índia). Lá encontrou os brâmanes, os quais lhe ensinaram a ler e a compreender os Vedas (os brâmanes nunca ensinavam os Vedas aos estrangeiros no passado), a realizar curas pela oração e a expulsar demônios. Ele permaneceu seis anos em algumas cidades, inclusive Benares, na companhia dos vaishyas e dos sudras, as castas mais baixas do Hinduísmo (idem, p. 108). Então, Issa passou a ensinar o que tinha prendido dos Vedas aos membros das castas mais baixas, o que provocou a imediata ira dos brâmanes de dos kshatriyas (as castas mais altas), uma vez que a lei hindu (Dharma Shastra) restringe o ensino védico aos vaishyas e proíbe totalmente aos sudras. Em seguida, Issa (Jesus) negou a divina origem dos Vedas e dos Puranas (os pesquisadores ainda não têm certeza se os Puranas já tinham sido compostos naquela época, sobretudo na forma em que se apresentam hoje), bem como desestimulou a adoração aos deuses hindus e começou a fazer uma pregação com base na doutrina bíblica, falou até do Juízo Final aos vaishyas e aos sudras (para quem conhece o Hinduísmo, esta seria, se fosse verdade, uma cena cômica).
            Ao saberem deste discurso de Issa, os brâmanes ordenaram que ele fosse assassinado (essa reação não é comum na história do Hinduísmo). Porém, antes disto, Issa ficou sabendo e fugiu para o Nepal, onde aprendeu a língua Páli e estudou os Sutras (sermões) de Buda (idem p. 113) – ainda é dúvida se a língua Páli era conhecida naquela época no local. Depois deixou esta região em direção ao Ocidente, onde continuou pregando em seu caminho até chegar de volta à Israel com 29 anos de idade (idem, p. 123). Na passagem pela sua terra natal (idem p. 123-46), alguns episódios coincidem e outros divergem do Novo Testamento. Seria muito extenso mencioná-los todos aqui, porém os mais curiosos são os fatos que Issa também é crucificado e a tumba é encontrada vazia depois de três dias, mas não por Maria Madalena, e sim pela multidão (idem, p. 146), então o texto termina aqui. De maneira que não menciona a ressurreição e nem as aparições póstumas de Issa aos discípulos. Bem, se o relato acima não é crível, é, pelo menos, cômico em alguns trechos.           
O templo de Jagannatha em Puri, no estado de
Orissa, Índia; a alegação de que Jesus esteve
aqui é anacrônica
Outro livro sobre a viagem de Jesus à Índia, nesta mesma fase da sua vida, é a fantasiosa obra de Levi Dowling “The Aquarian Gospel of Jesus the Christ” (O Evangelho Aquariano de Jesus, o Cristo), primeira edição em 1908, com a diferença que este não foi escrito a partir de algum manuscrito antigo, mas sim de experiências de clarividência. Em linhas gerais, o trecho sobre a viagem a Índia (p. 47-65) ora coincide ora diverge da narrativa do livro de Notovitch, com alguns acréscimos ainda mais cômicos e a especificação de mais detalhes. Afirma-se aí que Jesus esteve e estudou em Jagannath, na cidade de Puri, no estado de Orissa, Índia, um templo Vishnuista do Hinduísmo, famoso por seu festival anual da carruagem (Ratha Yatra). Este relato é tão absurdo que, segundo a história e as pesquisas arqueológicas, este templo só foi construído durante a dinastia Ganga Oriental (séculos XI-XV e.c.), mais precisamente, iniciado pelo rei Ananga Bhima Deva em 1174 e.c. e finalizado em 1198 e.c., portanto o templo ainda não existia na época de Jesus.

Jesus na Índia após a crucificação

           
H. Mirza Ghulam Ahmad (1835-1908)
foi o principal divulgador da identificação
de Yuz Asaf e Jesus
Outro momento que é alegado que Jesus esteve na Índia, mas não na fase dos 12 aos 30 anos de idade, como tratado acima, e sim no período após a crucificação, com o argumento que ele sobreviveu à crucificação. A tradição de que ele não morreu na cruz é antiga, uma das fontes mais antigas é a seguinte passagem do Alcorão 4:157 “e disseram: Nós matamos o Messias, Jesus, o filho de Maria, o Mensageiro de deus. (Quando na verdade) eles não o mataram, nem o crucificaram, embora pareceu assim para eles. Aqueles que discordaram sobre ele (se morreu ou não) estão em dúvida, sem nenhum conhecimento, somente suposição, eles certamente não o mataram” (Haleem, 2005: 65). Ainda na tradição islâmica, H. M. Ghulam Ahmad menciona alguns Hadiths (ditos de Maomé), da coleção conhecida como Kanz-ul-Ummal, de que Jesus viveu até a idade avançada de 125 anos, viajou por muitas partes do mundo e ficou conhecido como o “profeta viajante” (Ahrmad, 2003: 62-3). Este autor, que é o fundador do movimento islâmico reformista Ahrmadiyya Muslim Jamat, é um dos primeiros e mais ardentes defensores da tese de que Jesus sobreviveu à crucificação, viajou para a Índia para encontrar as tribos de Israel e, o que é também surpreendente, do argumento de que o profeta Yuz Asaf, enterrado no santuário de Roza Bal, na cidade de Srinagar, Caxemira, é o próprio Jesus. Ele foi o principal divulgador desta tradição de Roza Bal, através do seu livro, publicado em 1908 na língua urdu “Misih Hindustan Mein”, depois publicado em inglês pela primeira vez em 1944, com o título de “Jesus in India”.
H. Mirza Ghulam Ahmad influenciou outros autores, inclusive esoteristas ocidentais, os quais acreditaram na sua argumentação. Em suma, para ele Jesus sobreviveu à crucificação, viveu na Índia por muitos anos, que ele é Yuz Asaf e está sepultado no santuário de Roza Bal em Srinagar, Caxemira.

Jesus no Bhavishya Purana

            Os Puranas são textos em sânscrito que fazem parte de uma coleção de contos dos tempos antigos da Índia. Estão entre as mais importantes e influentes escrituras do Hinduísmo. Existem 18 Puranas principais, conhecidos como Maha Puranas (Grande Puranas), e o Bhavishya Purana está entre eles. Diferente dos demais, o Bhavishya Purana trata, além dos habituais tópicos comuns nos outros puranas, de profecias sobre o futuro (bhavishya), portanto, em alguns trechos, é um purana profético.
            O que existe de excepcional neste purana é a referência a Jesus, mencionado como Isha Putra (filho de deus), a partir dos termos Isa e Issa dos textos islâmicos, no episódio do diálogo com o rei Salivahana (também conhecido como Gautamiputra Shatakarni), pertencente à dinastia Shatavahana, que reinou de 78 a 102 e.c. (portanto contemporâneo com o período da sobrevivência de Jesus à crucificação), cuja capital do reino era Ujjain, no atual estado de Madhya Pradesh, na Índia Central.  Este diálogo aparece no Pratisarga Parva do Chaturyuga Kanda do Dwitiya Adhyayah, no capítulo 19, versos 17-32. Abaixo um resumo deste trecho.
            O texto inicia informando que uma vez um poderoso rei, chamado Salivahana, alcançou muitas conquistas, o qual subjulgou os Shakas, os Cinas, o povo de Roma, os descendentes de Khuru e o povo de Bahikaus. Em seguida estabeleceu as fronteiras do país dos arianos e a dos Mlecchas (estrangeiros impuros). O país dos arianos era conhecido como Sindusthan, o qual se transformou em um grande país (versos 17-21).
           
Moeda cunhada com o perfil do rei Salivahana 
(r.78-102 e.c.), com quem Jesus teve um diálogo, 
tal como narrado no Bhavishya Purana
Uma vez o rei Salivahana dirigiu-se para o oeste, na direção de Hunadesha (região perto da montanha Kailasa no Tibete Ocidental). Aí, o rei avistou um auspicioso homem que vivia numa montanha. A pele deste homem era dourada e suas roupas brancas (verso 22). Então, o rei lhe perguntou: “Quem és tu, senhor”? O Homem respondeu: “Você deveria saber que eu sou Isha Putra, o filho de deus”, e completou: “eu sou filho de uma virgem” (verso 23). “Eu sou o expositor da religião dos Mlecchas e eu me prendo estritamente à verdade absoluta”. Ao ouvir isto o rei indagou: “Quais são os princípios de acordo com sua opinião” (verso 24)? Após ouvir esta pergunta de Salivahana, Isha Putra (Jesus) disse: “Ó rei, quando a destruição da verdade ocorreu, eu, Masiha, o profeta, vim para este país de um povo degradado, onde não há regras e leis. Então, ao encontrar esta temerosa condição irreligiosa dos bárbaros, a qual se espalha desde o país dos Mlecchas, eu decidi assumir o papel de profeta deste povo” (versos 25-6). Então, em seguida, Isha Putra (Jesus) expôs os princípios da sua religião ao rei, através de tópicos da religião hindu (versos 27-9). No fim do discurso (verso 30), Isha Putra afirma que se tornou o Isha Masiha (Jesus, o Messias).
            Após ouvir estas comoventes palavras e prestar reverência a aquele homem, o qual é adorado pelos bárbaros, o rei humildemente pediu a ele para permanecer na terra horrível dos Mlecchas (estrangeiros impuros).
            Primeiro é preciso esclarecer que o Bhavisha Purana é um texto cercado de desconfianças, uma vez que, das quatro edições disponíveis atualmente, nenhuma coincide uma com a outra em muitos pontos. Por isso, Maurice Winternitz observa que “o texto preservado até nós em forma manuscrita certamente não é a antiga obra, a qual é citada no Apastambiya Dharmasutra” e que Th. Aufrecht o “tem exposto como uma fraude literária” (Winternitz, 1990, 541).  As fraudes não são difíceis de serem percebidas, pois se mostram através de clamorosas falhas históricas e anacrônicas. Logo no início é afirmado que o rei Salivahara (r. 78-102 e.c.) derrotou os Shakas, os Cinas (chineses), o povo de Roma, os descendentes de Khuru (os persas) e o povo de Bahikaus (bactrinianos-gregos). Historicamente falando, dos povos relacionados, o rei Salivahana (Gautamiputra Shatakarni), na verdade, derrotou apenas os Shakas (Keay, 2000, 131). Os outros povos derrotados pelo rei Salivahana, conhecidos na história, são os Yavanas e os Pahlavas, porém não são mencionados no texto em questão. Não existe nenhum registro na história indiana no qual os chineses travaram uma batalha com os indianos no passado. Também, os indianos nunca guerrearam com os romanos, apenas com os gregos, na época de Alexandre, o Grande. Ademais, não existe prova de que os gregos chegaram até a região de Ujjain, a capital Shatavahana na Índia Central, a ocupação grega na Índia se limitou à região noroeste.           
Jesus na posição de meditação, bem no
estilo yoga
Ainda mais, existe uma forte suspeita de que este trecho do Bhavishya Purana seja uma interpolação acrescida por missionários cristãos, durante o período da ocupação britânica na Índia, com o objetivo de converter os hindus das classes mais instruídas, uma vez que sabemos que alguns sacerdotes aprenderam a língua sânscrita, e esta foi uma estratégia para tentar aproximar o Cristianismo do Hinduísmo e, consequentemente, com isso, facilitar as conversões. A pista para esta suspeita é o fato de que todas as edições existentes deste texto são do período a partir da colonização britânica. Outra indicação é o fato de que, os tópicos dos puranas são geralmente repetidos em vários puranas, às vezes alterando apenas os personagens ou pequenas mudanças na redação, enquanto que, este episódio sobre Isha (Jesus) não aparece nos demais puranas, somente no Bhavisya Purana, então a suspeita de que seja uma interpolação por missionários cristãos na Índia. O pedido do rei Salivahana para permanecer na região dos Mlecchas, no final do relato, após se comover com a exposição de Isha Putra (Jesus), sinaliza bem para isto.

            Outra curiosidade é a diferença entre as quatro edições conhecidas, uma tem 5 capítulos, outra tem 4, uma outra tem 3 e ainda uma outra tem apenas 1 capítulo. Também, o conteúdo em cada uma das 4 versões diverge em muitos graus, algumas têm mais versos, enquanto outras têm menos, embora todas elas mencionam Jesus (Isha Putra), porém, com redações diferentes. Aqui foi utilizada, para este estudo, a edição da Venkateswara Press, Mumbai, 1917.         
            A exposição dos princípios da religião dos Mlecchas por Jesus (Isha Putra) ao rei Salivahana (versos 27-9) parece uma pregação proferida pela boca de um guru hindu, com tópicos tais como: prescrição da prática de japa (repetição de mantras), menção do Surya Mandala (diagrama do deus Sol para adoração dos hindus) e da dhyana (meditação).
            Enfim, para encerrar, se para um cristão tradicional a ideia de uma vida de Jesus sobrevivendo à crucificação, portanto sem ressurreição, já é percebida como um desmoronamento da fé cristã, imagine então o choque que será ao saber de um Jesus pregando doutrinas e prática hindus.


Obras consultadas

ABHEDANANDA, Swami. Journey into Kashmir and Tibet: with the Life of Jesus by Nicolas Notovitch. Calcutta: Ramakrishna Vedanta Math, 1987.
AHMAD, H. M. Ghulam. Jesus in India: Jesus’s Deliverance from the Cross & Journey to India. Tilford: Islam International Publication, 2003, (1st edition, 1908).
BHAVISHYA MAHAPURANA (Sanskrit Edition). Mumbai: Venkateswara Press, 1917.
DOWLING, Levi H. The Aquarian Gospel of Jesus the Christ. London: L. N. Fowler & Co. Ltd, 1947 (first published, 1908).
EHRMAN, Bart D. Forged: Writing in the Name of God. Why the Bible’s Author’s Are Not Who We Think They Are. New York: Harper/Collins, 2011.
GOODSPEED, Edgar J. Famous Biblical Hoaxes or Modern Apocrypha. Grand Rapids: Baker Book House, 1956.
GREEN, Joel B. Crucifixion em The Cambridge Companion to Jesus. Markus Bockmeuhl (ed.).  Cambridge: Cambridge University Press, 2001, p. 87-101.
HALEEM, M. A. S. Abdel (tr.). The Qur’an. Oxford/New York: Oxford University Press, 2005.
KEAY, John. India: a History. London: HarperCollins Publishers, 2000.
KERSTEN, Holger. Jesus Lived in India: His Unknown Life Before and After the Crucifixion. New Delhi: Penguin Books, 2001.
LEWIS, James R. Legitimating New Religions. New Brunswick: Rutgers University Press, 2003. p. 73-88. 
NOTOVITCH, Nicolas. The Unknown Live of Jesus Christ. Chicago: Indo-American Book Company, 1916, (primeira edição francesa, 1894).
PROPHET, Elizabeth Clare. The Lost Years of Jesus: Documentary Evidence of Jesus’ 17-years Journey to the East. Gardiner: Summit Publications, 1987.
WINTERNITZ, Maurice. A History of Indian Literature, vol. I. Delhi: Motilal Banarsidass, 1990.

quinta-feira, 14 de março de 2013

|ESTUDO| A Nova Imagem de Maria Madalena e a Rivalidade com o Apóstolo Pedro


Octavio da Cunha Botelho

Gravura reproduzindo o episódio da pecadora arrependida
           Ela foi identificada com a pecadora arrependida na passagem de Lucas 07:36-50, depois conjeturalmente interpretada como prostituta, ainda nos primeiros séculos do Cristianismo. A oficialização aconteceu através da Homilia XXIII do papa Gregório, o Grande, em Setembro de 591 e.c. (Schlumpf, 2000: 12). Entretanto, em nenhuma passagem dos evangelhos canônicos ela é explicitamente mencionada como uma prostituta. Mesmo assim, esta imagem equivocada perdurou por mais de 15 séculos, deixando, durante este período, uma definitiva influência na literatura, nas artes e até no cinema do século XX.  Filmes recentes como A Última Tentação de Cristo de Martin Scorsese e A Paixão de Cristo de Mel Gibson, o musical Jesus Superstar de Andrew Lloyd Webber e o livro O Evangelho Segundo Jesus Cristo de José Saramago ainda a representam como uma prostituta. Entretanto, como será visto mais adiante, esta identificação nunca foi uma unanimidade no Cristianismo. Em certas correntes, por exemplo, ela é elogiada como a “apóstola dos apóstolos” (apostola apostorum), em virtude da sua privilegiada tarefa de levar a mensagem da ressurreição de Jesus aos outros apóstolos (D’Angelo, 1999, 106).
            Karen L. King esclarece: “A redescoberta do Evangelho de Maria agora fornece direta evidência dos argumentos do Cristianismo inicial em favor da liderança de mulheres, e nos permite ver que as opiniões que excluíam mulheres eram nada menos que um lado de uma questão ardentemente debatida” (King, 1993: 601). De modo que, o breve estudo abaixo mostrará como a imagem de Maria Madalena vem sendo apagada e, simultaneamente, restaurada com outras formas e com outro colorido pelos historiadores, sobretudo após a descoberta da coleção de textos gnósticos em Nag Hammadi, em 1945, a qual lançou uma nova luz sobre a história inicial do Cristianismo, e a partir do mais cuidadoso exame dos próprios evangelhos canônicos.

O poder da descoberta
           
Dentre as incontáveis derrotas que a Religião sofreu, ao longo da história, em seu confronto com as inovadoras concepções científicas, a descoberta tem sido um dos fatos que golpeou mais fortemente as tradicionais doutrinas religiosas. Um achado, em virtude da concretude da prova, é capaz de calar, quando contradiz, dezenas de profecias, de inspirações, de teorias e de especulações. Assim, dentro do mundo da cultura cristã, a descoberta da coleção de códices de textos gnósticos, nos arredores da aldeia de Nag Hammadi, Egito, em 1945, convocou os historiadores a repensarem a história inicial do Cristianismo. Trata-se de uma coleção de escritos do século IV e.c., tão extensa que alguns autores a denominam de Biblioteca de Nag Hammadi (Robinson, 2007), de 13 códices (volumes encadernados), cuidadosamente encapados em couro, e mais 52 textos avulsos, muitos encontrados em bom estado de conservação, após cerca de 1.500 anos soterrados. Excluindo os tratados em duplicidade, são 45 trabalhos em língua copta, alguns até então desconhecidos, porém outros já conhecidos anteriormente, na íntegra ou em fragmentos, embora não inclua alguns importantes textos gnósticos, tais como o Pistis Sophia e o Evangelho de Judas.
Os códices de Nag Hammadi, Egito, uma das mais
fantásticas descobertas arqueológicas do século XX
Os efeitos culturais e históricos desta descoberta, apesar de ainda estarem em curso, já provocaram muitas alterações nas mentes dos historiadores. O primeiro efeito foi o reconhecimento do novo panorama de que, a partir da descoberta desta extensa coleção de textos, não é mais prudente estudar o Cristianismo sem levar em conta a imensa quantidade de textos apócrifos disponíveis na atualidade, uma vez que o número destes últimos é muito maior que o dos textos do Novo Testamento; confirmando, assim, a suposição dos historiadores de que, na época do Concílio de Nicéia, em 325 e.c., existiam mais de 50 evangelhos diferentes.

A versão conforme o interesse da comunidade

Outro efeito foi a confirmação de que, tal como alguns já supunham, os evangelhos, tanto canônicos como apócrifos, foram escritos, algumas décadas após a morte de Jesus por autores desconhecidos, com o determinado objetivo de atender às agendas e aos programas de doutrinação e de propaganda das diferentes comunidades cristãs, muitas delas ideologicamente rivais entre si, enfim, para atender as necessidades, os interesses e as preocupações da época e de certas localidades. Nas palavras de Mary R. D’Angelo: “a imagem de Jesus em si varia muito entre os evangelhos. Os escritores dos evangelhos procuraram reapresentar Jesus para fazê-lo novamente presente e ativo nas comunidades para quem eles escreviam. (...) Assim, o Jesus dos evangelhos atua e fala para as comunidades do fim do primeiro século e do início do segundo século. Os ditos de Jesus foram revisados para se ajustarem as suas necessidades, e as perguntas e as objeções, que são colocadas a ele, frequentemente articulam as questões que as comunidades estavam confrontando” (D’Angelo, 1999: 106).
O estudo seguinte mostrará uma ocorrência que é comum na composição dos textos religiosos, isto é, a de que os compositores e os compiladores destes escritos não são historiadores, mas sim adeptos e admiradores, portanto não se preocupam em narrar os fatos fielmente tal como eles acontecem na realidade. Com efeito, a prioridade da composição ou da compilação religiosas é transmitir o que a agenda ou o programa de doutrinação e de propagada de uma religião emergente deseja que o ouvinte ou o leitor acredite. Por isso, as composições estão sempre carregadas de pretensões persuasivas, exortativas e catequéticas, bem como as narrativas recheadas de mitos e de ficções. Enfim, o mais importante é a persuasão, isto é, para os religiosos em geral, a verdade é o convencimento e a crença, e não a realidade em si mesma. Em outras palavras: se convenceu, então basta, é verdade.

A confusão de Marias nos Evangelhos Canônicos

            O nome Maria parece ter sido muito popular na época de Jesus. As Marias mencionadas nos evangelhos canônicos são:
- Maria de Nazaré, a mãe de Jesus
- Maria da Betânia, a irmã de Marta e Lázaro (Lucas 10:38-42 e João 12:03-11)
- Maria Madalena (Lucas 8:02; Marcos 15:40 e 47, e 16:01)
- Maria, a esposa de Cléofas (João 19:25)
- Maria, mãe de José (Marcos 15:47)
- Maria, mãe de Tiago (Marcos 16:01)
- Maria, mãe de Tiago e de José (Marcos 15:40), às vezes duvidosamente identificada com a Mãe de Jesus (Marcos 6:03)
- a outra Maria, mencionada em Mateus 28:01
- Salomé, depois conhecida como Maria Salomé nas lendas medievais (Marcos 15:40 e 16:01) e
- a pecadora arrependida, identificada depois no Cristianismo Ocidental com Maria Madalena (Lucas 7:36-50).
Maria da Betânia ungindo os pés de Jesus, ela
também foi confundida com Maria Madalena
            Excluindo Maria, mãe de Jesus, a identificação e a distinção de uma Maria com outra, nas passagens dos Evangelhos Canônicos, dependem, em muitos casos, de interpretações, muitas vezes conjeturais, em vista da imprecisão e da vagueza das citações. Ademais, as interpretações variam conforme as diferentes correntes do Cristianismo. Por exemplo, o Catolicismo Ocidental identificou Maria Madalena com a pecadora arrependida, a qual chorou aos pés de Jesus e enxugou-lhes com os seus cabelos, bem como os beijou e os ungiu com bálsamo, numa passagem que aparece apenas em Lucas 7:36. Esta identificação pode ter sido motivada pelo fato de que no capítulo seguinte, Maria Madalena, de quem Jesus expulsou sete demônios, é incluída, logo em seguida, como uma de suas companheiras (Lucas 8:02). Ela foi também vista como uma prostituta arrependida pelo Catolicismo Europeu. Identificou-se Maria Madalena também com Maria da Betânia, irmã de Marta e de Lázaro, que pode ser acontecido em razão da semelhança do episódio da pecadora arrependida (Lucas 7:36-50) com a passagem na qual Maria da Betânia, irmã de Marta e de Lázaro, durante um jantar em sua casa, tomou um vaso de bálsamo e “ungiu os pés de Jesus e os enxugou com os seus cabelos” (João 11:02 e 12:03). Em uma lenda denominada “O Nascimento da Abençoada Virgem Maria”, que circulou pela Idade Média, Maria Salomé é identificada com Maria, a mãe de Tiago e de José (De Voragine, 2012: 536). Outras intérpretes pensam que Maria Madalena foi uma espécie de ‘bode expiatório’, isto é, “ela é a essência composta de muitas outras mulheres que possuem o nome de Maria, e os atos e crimes de mais de uma Maria foram atribuídos a ela” (Rushing, 1994: 45).
            O Cristianismo Ortodoxo do Oriente nunca aceitou a identificação de Maria Madalena com a pecadora arrependida ou a prostituta penitente. Nesta vertente, ela sempre foi vista como uma virtuosa companheira de Jesus, a qual, juntamente com outras, lhe assistia em suas despesas e lhe acompanhava nas viagens (Lucas 8:01-04).

Maria Madalena nos evangelhos canônicos

            Pouco mencionada nos trechos iniciais dos quatro evangelhos, apenas em Lucas 8:02, ela torna-se personagem proeminente nos episódios da crucificação, do sepultamento e da ressurreição de Jesus, bem como foi encarregada do anúncio da ressurreição aos apóstolos. Enquanto os apóstolos tinham se escondido, temendo serem aprisionados pelos soldados romanos, (Pedro negou Jesus três vezes de tanto medo), ela, por sua vez, estava corajosamente no pé da cruz de Jesus, acompanhada de outras mulheres, durante a crucificação (Mateus 27:56; Marcos 15:40 e João 19:25). Também, acompanhou o ato de sepultamento (Mateus 27:61 e Marcos 15:47). E, foi a primeira a testemunhar a tumba vazia e o evento da ressurreição (Mateus 28:01; Marcos 16:01 e João 20:01). Mais ainda, foi a primeira a ver Jesus ressuscitado (Mateus 28:09; Marcos 16:09 e João 20:11-17) e encarregada por ele de anunciar a sua ressurreição aos apóstolos (Mateus 28:08-10 e João 20:14-18). Depois destes episódios, os quatro evangelhos silenciam-se sobre Maria Madalena.
Maria Madalena reproduzida como
a prostituta arrependida 
            Aqui começa o tratamento das questões polêmicas deste estudo. O motivo para o silêncio é apontado pelos críticos, sobretudo as feministas, como uma tentativa de encobrir a proeminência de Maria Madalena entre os companheiros e companheiras de Jesus, por parte dos autores dos relatos e dos compiladores da corrente patriarcal, no momento da composição dos evangelhos que, no futuro, se tornariam canônicos. Segundo alguns intérpretes, as mulheres podem ter tido posição de destaque no ministério e sido apóstolas de Jesus (D’Angelo, 1999: 106). Em virtude do encobrimento e da manipulação textual, as pistas para tal condição são difíceis de serem percebidas nos evangelhos canônicos e um exemplo de manipulação, dentre tantos outros, é apontado pelas feministas nos doze versos finais do Evangelho de Marcos. Este é considerado pela maioria dos pesquisadores como o primeiro a ser composto, talvez logo após a queda do Segundo Templo, em 70 e.c., portanto cerca de 40 anos após a morte de Jesus (D’Angelo, 1999: 106), e serviu de base para a composição dos evangelhos de Mateus e de Lucas (Ehrman, 2006: 145-6). A pesquisa da Crítica Textual tem revelado que o Evangelho de Marcos, o mais antigo, originalmente terminava em 16:08, portanto os doze últimos versos (16:09-20) são acréscimos posteriores por copistas e por revisores dos manuscritos na Antiguidade. Segundo Bart D. Ehrman, estes “versículos estão ausentes em dois de nossos mais antigos e melhores manuscritos do Evangelho de Marcos, além de ausentes em outros importantes testemunhos; o estilo de escrita é diferente do estilo que encontramos em todo o restante de Marcos; a transição entre essa passagem e a anterior é de difícil entendimento (por exemplo, Maria Madalena é apresentada no versículo 9 como se ainda não tivesse sido mencionada, mesmo tendo sido discutida nos versículos anteriores; há mais um problema com o grego que faz a transição ainda  mais complicada); e há um grande número de palavras e frases na passagem que não são encontradas em nenhum outro lugar em Marcos. Em suma, as evidências são suficientes para convencer quase todos os pesquisadores textuais de que esses versículos são um acréscimo a Marcos” (Ehrman, 2006: 77).
            Ehrman aponta o motivo para o acréscimo deste apêndice sumário no Evangelho de Marcos (16:09-20) ao fato do seu final parecer abrupto demais e que o deixava sem conclusão, permanecendo as dúvidas se os discípulos nunca souberam da ressurreição, se Jesus nunca apareceu para eles, etc. Para resolver o problema os copistas acrescentaram um fim (Ehrman 2006: 77). Por outro lado, as intérpretes feministas atribuem o motivo da inclusão deste apêndice sumário ao fato de que, sem ele, ficaria para a posteridade a ideia de que o Jesus ressuscitado apareceu somente para as mulheres, deixando os apóstolos numa posição desprivilegiada, bem como favorecendo as comunidades rivais que apoiavam o apostolado feminino. Sandra M. Rushing vai mais longe ao afirmar que “a história de Maria Madalena foi distorcida, criando a maior falsificação histórica do Ocidente, em favor do patriarcalismo, a qual teve a maior influência no lugar da mulher na Igreja” (Rushing, 1994: 46).
Ela foi a primeira a encontrar a tumba vazia
             Feministas procuram encontrar passagens nos evangelhos canônicos que podem desvelar o fato de que mulheres exerceram papéis de apóstolas e até de líderes no círculo de Jesus (D’Angelo, 1999: 105-28). Porém, as pistas são muito imprecisas e problemáticas, sobretudo se, de fato, os autores dos evangelhos canônicos eram partidários da cultura patriarcal, daí procuram encobrir, o máximo possível, as posições proeminentes das mulheres, para então não favorecer as alegações rivais que proclamavam o ministério feminino no apostolado. Dentre as muitas pistas apontadas por Mary R. D’Angelo, está o significado da palavra grega diakoneo, geralmente traduzida como “tendo servido”, no sentido de assistir, ajudar ou servir, em Marcos 15;41; mas que feministas interpretam como uma tarefa de ministério (grego: diakonia, latim: ministerium), tal como em Lucas 10:40, alegando assim que mulheres foram apóstolas de Jesus, e não apenas o serviam e o suportavam em suas despesas Lucas 8:01-3). Esta autora vai mais longe ao afirmar que “é possível que João 20:19-31 foi acrescentado precisamente para eliminar a impressão de que a definitiva interpretação da partida de Jesus foi dada apenas através de uma mulher. Ainda mais notadamente, o apêndice ao evangelho, o qual foi provavelmente suprido por um membro tardio da comunidade, especificadamente para definir os relativos papéis de Pedro e o discípulo amado, não menciona Maria Madalena” (D’Angelo, 1999: 112).

Maria Madalena nos textos gnósticos

            Se nos evangelhos canônicos as referências ao apostolado feminino e a proeminência de Maria Madalena são omitidas, ou talvez muito vagas, nos evangelhos gnósticos estas menções são abundantes e explícitas. No Evangelho de Felipe, por exemplo, é mencionado que “a companheira de [Jesus é] Maria Madalena. [Ele] amava ela mais que a todos os discípulos...”. Logo em seguida os discípulos perguntam a Jesus: “Por que tu a amas mais do que a todos nós? O Salvador respondeu a eles: Por que eu não vos amo como ela? Quando um cego e aquele que vê estão juntos na escuridão, eles não são diferentes um do outro. Quando vem a luz, então aquele que vê verá a luz, e aquele que é cego permanecerá na escuridão” (Ehrman, 2003: 42 e Isenberg, 2007: 134).
Gravura reproduzindo Maria Madalena
pregando
            No Pistis Sophia, outro texto gnóstico em forma de diálogo entre Jesus e seus discípulos, das 64 perguntas, 39 foram feitas por mulheres, incluindo uma Maria e uma Marta (talvez a irmã de Maria da Betânia), que a maioria dos intérpretes identifica com Maria Madalena, demonstrando que as mulheres não eram apenas ajudantes e sustentadoras das despesas de Jesus, tal como nos evangelhos canônicos, mas também participavam ativamente no ensinamento e no apostolado. Dentre outras menções e elogios, Maria é assim elogiada por Jesus neste texto: “Maria, tu a abençoada, quem eu aperfeiçoei em todos os mistérios das alturas (...), tu, cujo coração ascendeu ao reino do céu mais que todos os teus irmãos” (Capítulo 17 – Mead, 1921: 20) e mais adiante: “Bem dito Maria, pois tu és abençoada ante todas as mulheres na Terra, porque tu deves ser a plenitude de todas as plenitudes e a perfeição de todas as perfeições” (Capítulo 19 – Mead, 1921: 22).



A proeminência de Maria Madalena e a rivalidade com Pedro

            Alguns textos gnósticos são transparentes quanto à proeminência de Maria Madalena e à resultante rivalidade com os apóstolos, sobretudo com Pedro. Daí que é possível conhecer as tensões ocorrentes nas comunidades emergentes. Um exemplo pode ser visto no parágrafo 114 do Evangelho de Tomé (encontrado em Nag Hammadi), onde Simão Pedro diz a Jesus: “Permite que Maria nos deixe, pois as mulheres não são dignas da vida”. Em seguida a estranha resposta de Jesus: “Eu mesmo devo guiá-la para fazer dela um homem, para que ela também possa se tornar um espírito vivo semelhante a vós homens. Pois, cada mulher que fizer dela mesma um homem, entrará no reino do céu” (Ehrman, 2003: 28 e Lambdin, 2007: 125). Neste mesmo evangelho, o qual é em forma de diálogo com os discípulos, Maria participa com uma pergunta no parágrafo 21 (Ehrman, 2003: 22 e Lambdin, 2007: 118). Sandra M. Rushing resume: “Dos relatos no Evangelho de Tomé, no Evangelho de Felipe e no Evangelho de Maria, torna-se evidente que Pedro, de todos os discípulos, foi o mais ofendido com o especial relacionamento de Maria Madalena com Jesus” (Rushing, 1994: 52).

O Evangelho de Maria

            Estritamente falando, o Evangelho de Maria já era conhecido antes da descoberta do manuscrito copta em Nag Hammadi, no ano de 1945, através de dois fragmentos de manuscritos em grego do terceiro século e.c., com apenas uma página cada um (Ehrman, 2003: 35). Karen L. King fala de outro fragmento copta que foi comprado no Cairo por Carl Schmidt e trazido para Berlim em 1896, depois publicado por Walter Till em 1955. Ela observa também que existem consideráveis diferenças entre as versões grega e copta deste evangelho (King, 1993: 602 e 2007: 442). O manuscrito encontrado na coleção de Nag Hammadi também está fragmentado, das 18 páginas, apenas 8 estão preservadas, estão faltando as páginas 01-06 e 11-14. Pesquisadores afirmam que a versão copta é uma tradução de um texto originalmente composto em grego no século II e.c. (Ehrman, 2003: 35 e King, 2007: 442).
Apesar da falta, o restante do texto é intrigante, uma vez que mostra Maria, que a maioria dos pesquisadores aponta ser Maria Madalena (em nenhum trecho o nome Madalena é mencionado), numa posição de destaque e até mesmo de liderança entre os apóstolos, a quem Jesus revelou ensinamentos secretos que foram ocultados dos outros discípulos. Por isso, na página 10, Pedro solicita à Maria “Irmã, nós sabemos que o Salvador amava a ti mais que a todas as mulheres. Diga-nos as palavras do Salvador que mais te recordas – as quais tu sabes, mas nós não sabemos, nem ouvimos falar delas”. Em seguida Maria responde: “O que a vós está oculto, eu vos proclamarei”. Então, ela passa a descrever uma visão que teve de Jesus. (King, 1993: 611-2; MacRae, 2007: 443, Erhman, 2003: 36). A prática de transmitir ensinamentos secretos é habitual no Gnosticismo, por exemplo, no Evangelho de Judas, outro texto gnóstico, mas que não foi encontrado em Nag Hammadi, Judas é um discípulo de confiança de Jesus que recebe instruções secretas, por isso é encarregado de entregá-lo às autoridades. Este evangelho termina neste episódio, portanto os episódios da prisão, do julgamento, da crucificação, do sepultamento e da ressurreição são omitidos (Meyer, 2006).
A atriz Monica Bellucci no papel de Maria
Madalena em cena de A Paixão de Cristo
Como mencionado na página 9, o Evangelho de Maria é um dialogo pós-ressurreição de Jesus com seus discípulos, ou seja, mais uma aparição aos apóstolos. Mais do que em qualquer outro texto cristão, neste a proeminência e o privilégio de Maria Madalena são explícitos. No entanto, estas prerrogativas não eram aceitas e recebidas com simpatia por todos os apóstolos, de modo que este evangelho reproduz as tensões e os conflitos da época. O clima se agrava a partir da página 17 quando, logo após o relato de Maria da sua visão e dos ensinamentos recebidos de Jesus, André a contesta da seguinte maneira: “Dizei o que desejeis dizer sobre o que ela disse. Eu pelo menos não acredito que o Salvador disse isto. Pois, certamente, esses ensinamentos são ideias estranhas”. Em seguida, Pedro entra na discussão e questiona: “Ele realmente falou com uma mulher sem o nosso conhecimento e não abertamente conosco? Vamos todos mudar de posição e ouvi-la? Ele preferiu a ela a nós?” Então Maria lamentou e disse a Pedro “Meu irmão Pedro, o que pensas? Tu crês que eu mesma inventei essas coisas no meu coração, ou que esteja mentindo sobre o Salvador?” Daí Levi interfere para acalmar o clima: “Pedro, tu sempre foste o exaltado. Agora eu te vejo opondo a uma mulher como adversários. Mas se o Salvador a fez digna, quem és tu de fato para rejeitá-la? Certamente o Salvador a conhece muito bem. Por isso ele a amava mais do a nós” (King, 1993: 613-7; Ehrman, 2003: 37 e MacRae, 2007: 444).
Bem, o bate boca acima reflete algumas das tensões do Cristianismo do século II, no qual Pedro e André representam as posições ortodoxas que negam a validade da revelação esotérica e rejeitam a autoridade da mulher no ensinamento. O Evangelho de Maria ataca ambas as posições de frente por meio da figura de Maria Madalena. Ela é a amada do Salvador, possuidora do conhecimento secreto e do ensinamento superior àqueles da tradição apostólica pública.

Reflexão final

            Enquanto os cristãos, os teólogos e as feministas discutem qual posição dever ser a verdadeira, ou seja, se Maria Madalena realmente teve uma posição de liderança no apostolado ou não, para o pesquisador é difícil tomar uma decisão quanto a qual lado se inclinar. O que é possível dizer com absoluta certeza é apenas que os textos cristãos, tanto canônicos como apócrifos, foram compostos cercados de um clima de rivalidade e de conflito ideológico, que influenciou determinantemente nas escolhas dos relatos e dos ensinamentos de Jesus, para atender à agenda doutrinária da comunidade a qual pertencia o compositor ou o compilador do texto. Enfim, não é prudente confiar totalmente em nenhum dos lados, tal como os cristãos têm feito por cerca de dois mil anos, os quais suportam o lado tradicional; tampouco aprovar o entusiasmo dos esoteristas contemporâneos, os quais enxergam nos textos gnósticos a redescoberta do verdadeiro Cristianismo. 
Portanto, a tarefa de identificar o que é histórico e o que é manipulação é difícil e está ainda em andamento, com alguns sucessos já alcançados. Assim como existe o projeto “Em Busca do Jesus Histórico”, alguns pesquisadores já iniciaram o projeto “Em Busca da Madalena Histórica” e os resultados iniciais já são esclarecedores. Em suma, quanto mais confirmação histórica e crítica, e menos crença e especulação, nos resultados das pesquisas, melhor serão para o público interessado no assunto.


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