sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

|RELIGIÃO & CINEMA| Flores do Oriente: Quando os Laicos São Heróis Solidários

por Octavio da Cunha Botelho

O ator Christian Bale vive o papel de um coveiro que finge ser um padre
 para ajudar um grupo de adolescentes de um convento em
Flores do Oriente (The Flowers of War, 2011), do diretor Zhang Yimou
            Este período do ano, em virtude da diminuição das ocupações profissionais, é favorável para assistir aqueles filmes que não puderam ser assistidos durante o ano. Então, na minha lista de pendências estava a obra Flores do Oriente (The Flowers of War, 2011), do talentoso cineasta chinês Zhang Yimou, autor dos consagrados Lanternas Vermelhas, Herói e Clã das Adagas Voadoras, quem considero ser um dos melhores diretores de filmes de arte da atualidade. O filme é baseado no livro 13 Flowers of Nanking (As 13 Flores de Nanquim) do autor Geling Yan, história passada durante a guerra Sino-japonesa, mais especificadamente, em um episódio historicamente conhecido como O Massacre de Nanquim, em 1937.
            Embora esta seja a produção de Zhang Yimou que mais se aproxima ao estilo hollywoodiano, os admiradores do seu trabalho não devem deixar de assisti-la. Com um orçamento abastado de US$ 94 milhões, o maior da história do cinema chinês, o resultado nas bilheterias foi lucrativo, uma vez que apenas no território chinês rendeu US$ 95 milhões. O filme estreou na China apenas poucos dias após o 74º aniversário do Massacre de Nanquim e nos primeiros quatro dias de exibição já tinha alcançado US$ 24 milhões em bilheteria.
            Tal como será visto abaixo, esta é uma história nem tão agradável para o público cristão, pois mesmo acontecendo no interior de um convento católico, os heróis não são personagens cristãos. Diferente do que o espectador cristão espera, são as adolescentes religiosas que são ajudadas e salvas por descrentes mundanos e irreverentes à religião no final do filme, após uma reviravolta no relacionamento entre eles. Daí a explicação para a grande arrecadação de bilheteria nos cinemas da China e uma bem menor arrecadação nos cinemas do Ocidente.
Estrelado pelo ator Christian Bale, que vive o papel do coveiro John Miller, um beberrão esperto e bon-vivant, encarregado de providenciar o sepultamento do padre Engelmann, antes de falecer ele era o líder de um convento de adolescentes na cidade de Nanquim, na China. Em meio a um intenso tiroteio entre as tropas japonesas e chinesas, com muita dificuldade, Miller consegue chegar até o seu destino para executar sua tarefa. Ao chegar lá, ele percebe a segurança do local, em virtude da neutralidade da Igreja Católica e dos ocidentais no conflito sino-japonês, então decide estender sua permanência. Sua decisão de partir é adiada ainda mais quando um grupo de prostitutas, em fuga de um bordel por conta da onda de violência e de estupros praticada pelos soldados japoneses, consegue pular o portão do convento e se refugiar no seu interior. Em vista do contraste no estilo de vida, elas logo entram em desentendimento com as adolescentes do convento, estas últimas não permitem que as prostitutas sequer utilizem o banheiro, dando início a um relacionamento hostil. Então, as prostitutas se escondem no porão. 
Um grupo de prostitutas se refugia em um convento a fim de fugir da
violência dos soldados japoneses, a diferença no estilo de vida
resulta imediatamente em conflitos com as internas.
           Comovido pelas situações das adolescentes e das prostitutas, o coveiro John Miller (Christian Bale) decide ajudar. Então, aproveitando-se da imunidade da igreja e o fato de ser um ocidental neutro no conflito, disfarça-se de padre, tornando-se o Father John, a fim de proteger ambos os grupos. O hostil relacionamento entre as adolescentes e as prostitutas começa a mudar quando um grupo de soldados japoneses consegue entrar no convento, então violenta e estupra algumas adolescentes, chegando a matar uma delas, o qual é ainda mais alterado com a tentativa de suicídio de algumas adolescentes em seguida. A partir de então, um novo relacionamento de afeto e de piedade entre o falso padre John, as prostitutas e as adolescente começa a se desenvolver, cuja culminação é um piedoso ato de solidariedade das prostitutas para ajudar as adolescentes temerosas de serem violentadas e estupradas pelos soldados japoneses. O final do filme é comovente e transmite uma interessante lição de humanismo e de solidariedade, sem invocar ideias e práticas cristãs.
            Agora, o leitor poderá estar perguntando em que este filme interessará ao cético e ao ateu para merecer um comentário em um espaço sobre crítica religiosa. Bem, o interessante desta história é que, embora aconteça em um ambiente cristão, ou seja, um convento, os heróis da solidariedade na história não são pessoas religiosas, senão um coveiro esperto e bon-vivant, que finge ser um padre para ajudar outras pessoas, e um grupo de prostitutas vaidosas que passa a se preocupar com o futuro das adolescentes, a fim de que as mesmas não tenham o mesmo destino abominável que cada uma teve, ou seja, de serem estuprada ainda na adolescência e daí serem levadas ao caminho da prostituição. Em suma, a lição que o filme deixa é a de que não é preciso ser religioso para sentir piedade e se entregar ao sacrifício pelo próximo em um ato de solidariedade, pois a experiência mundana é suficiente para levar alguém à sensatez de perceber a necessidade da piedade e da solidariedade em circunstâncias dolorosas. Em nenhum momento do filme alguém foi levado à sensatez de se ajudarem, em meio a uma angustiante guerra, em função de crenças cristãs ou de fé, ao contrário, o coveiro espertalhão usou da sua esperteza e as prostitutas das suas experiências de vida e da coragem, para auxiliarem o grupo cristão de adolescentes inocentes e ingênuas. Deus e a religião não são invocados nos momentos mais angustiantes de apuro e de sofrimento, mesmo estando todos eles no interior de um convento com uma enorme catedral, rodeados por uma violenta e aterrorizante guerra, diferentemente, tudo é resolvido a partir da sensibilização e da sensatez. A mensagem laica que o filme deixa é a de que deus e a religião são desnecessários até mesmo nos momentos de maior angustia no meio de uma guerra, ninguém rezou ou pediu a ajuda de deus, nem mesmo as adolescentes religiosas.
O ator Christian Bale ao lado do diretor Zhang Yimou
Em outras palavras, não é preciso ser cristão, acreditar em deus, ser batizado, ter recebido a primeira comunhão, frequentar igreja ou acreditar em um livro religioso para ser levado à pratica da piedade e da solidariedade; basta, ao contrário, apenas entender que elas são resultados da sensatez que qualquer laico pode descobrir quando percebe que a família, a sociedade, a humanidade ou mesmo qualquer grupo, sobretudo, em circunstâncias de dificuldade e de apuro, sobrevivem com mais paz e com mais justiça quando a solidariedade é praticada.  Enfim, a solidariedade não é uma virtude religiosa que fará o praticante ganhar o céu ou a benção de deus, mas sim uma solução sensata para a sobrevivência humana.  

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

|FATO QUE MERECE NOTA| Papa Francisco, a Personalidade do Ano (para o bem ou para o mal)

Octavio da Cunha Botelho

O papa Francisco escolhido como a
Personalidade do Ano, pelo critério de
escolha da revista, até Osama Bin Laden
mereceria a homenagem.
Ontem foi divulgada a notícia da escolha do papa Francisco como a Personalidade do Ano pela revista Time. Esta homenagem é concedida desde o ano de 1927 por esta prestigiada publicação norte americana. A justificativa para esta escolha foi que ele “mudou o tom, a percepção e o foco de uma das maiores instituições do mundo de forma extraordinária”, disse a revista.
Bem, para uma ideia do tanto que as escolhas dos candidatos para esta homenagem são polêmicas, veja em seguida quem foram os seus concorrentes. O segundo lugar ficou com Edward Snowden, aquele personagem controvertido que revelou o programa secreto de espionagem do governo norte americano. Outros candidatos na disputa foram Bashar Assad, o ditador da Síria que levou o seu país a um banho de sangue, Hassan Rouhani, o presidente do país que tem um regime religioso, a República Islâmica do Irã, e a cantora Miley Cyrus.
Agora, o mais curioso é o mérito desta homenagem, uma vez que, se for verdadeiro o critério utilizado para avaliar os candidatos, tal como noticiado pelo jornal O Globo Online, desta Quarta Feira, 11/12/13, “o papa foi escolhido pela prestigiada publicação americana como a pessoa que exerceu mais impacto sobre o mundo, para o bem ou para o mal, durante 2013”. Ora, se o critério de avaliação é o “impacto exercido no mundo, para o bem ou para o mal”, então o homenageado como a personalidade do ano de 2001, indubitavelmente, não poderia ser outra pessoa do que Osama Bin Laden. 
Afinal, qual o objetivo, bem como, mais significativamente, qual o mérito, desta homenagem, a qual pode ser concedida até para aqueles que fazem o mal?



segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

|SÁTIRA| Fé, a Preguiça do Intelecto

Octavio da Cunha Botelho


Caso a razão encontrasse a fé em uma livraria,  quais
recomendações de leitura aquela poderia sugerir para esta última?
            Estando um dia em uma livraria, a Razão casualmente se encontra com a Fé. Ao vê-la, se surpreende e lhe dirige a palavra: “olá senhora Fé, que surpresa vê-la em uma livraria, nunca nos encontramos aqui, é a sua primeira vez”? A Fé respondeu, “olá, que prazer em vê-la! Sim, senhora Razão, esta é a primeira vez que venho a uma livraria”. A Razão continuou: “que bom tê-la aqui, por ser a sua primeira vez, gostaria de lhe mostrar a livraria e, ao mesmo tempo, lhe sugerir algumas leituras”. A Fé respondeu: “Ó, senhora Razão, que gentileza sua, será um prazer”. Então, a Razão começou a caminhar e se deparou primeiramente com a seção de livros de Matemática e se dirigiu para a Fé e disse: “aqui senhora Fé, estes são os livros sobre Matemática, o que acha da ideia de adquirir alguns deles”? A Fé pegou alguns e começou a folheá-los. Depois de ler um tanto de suas páginas, reclamou: “hummm, senhora Razão, estes livros exigem muito esforço de raciocínio lógico e exato, não combinam com a minha natureza fantasiosa e imprecisa, estas leituras representam muito empenho intelectual para mim”. “Ok”, disse a razão, “então vamos para outra seção”.
            Em seguida, caminhando mais um pouco, encontram a seção de livros de Filosofia. Aí a Razão disse: “Aqui, senhora Fé, que tal estes livros”? A Fé então começou a folhear algumas páginas de certos livros e reagiu: “Êpa, estes livros exigem esforço de reflexão crítica, portanto não combinam com minha acomodada natureza condescendente”. “Tudo bem, senhora Fé”, disse a Razão, “vamos para outra seção”. Caminharam mais um pouco e encontraram a seção de livros de Ciências. Aí então a Razão perguntou: “que tal estes”? A Fé novamente leu trechos de alguns livros e reclamou: “Ahhh... estes livros exigem esforço investigativo com rigor metodológico, são muito cansativos para mim, pois contrariam minha natureza ingênua e comodista, ademais, não fui educada para tão grande esforço”.
            Daí, a Razão, já demonstrando sinais de impaciência, conduziu a Fé até a seção de Informática e dsse: “Olha, esta é uma das ciências mais importantes e utilizadas na atualidade, com certeza irá lhe agradar, que tal”? A Fé, mais uma vez, folheou alguns livros para logo desabafar: “Ah não! Estes livros exigem muito esforço racional e tecnológico, portanto incomodam minha preguiça congênita”. Então, pensando já estar sem opções de sugestões, a Razão não sabia mais o que indicar, até que, de repente, teve uma ideia. Daí, convidou a Fé para o outro lado da livraria e lhe disse: “olhe, esta é uma seção diferente de todas as outras, trata-se do setor de livros infantis, veja se lhe agrada”. Em seguida a Fé folheou algumas páginas dos livros e, diferente das outras vezes, se deteve mais na leitura até exclamar entusiasmada: “Maravilha, estes livros são formidáveis, me agradou muito, os temas me fazem lembrar os mitos e as lendas com os quais sempre estive envolvida e, ademais, é muito fácil de entender, por isso vou comprá-los”.
Com o aumento do secularismo no mundo, Deus
passou a ter cada vez menos o que fazer.
Então, começou a recolher muitos livros desta seção, porém, curiosamente, ela colocava dois exemplares do mesmo título na cesta de compras. Ao perceber isto a Razão observou: “Perdão, senhora Fé, mas você está selecionando dois exemplares do mesmo título, você não precisa fazer assim, basta um exemplar de cada”. Com isso a Fé respondeu: “Se fosse só para mim, sim, mas quero presentear o senhor Deus com alguns livros, quando retornar ao paraíso, por isso pretendo levar mais de um exemplar por título”. Surpreendida, a Razão perguntou: “Com todo respeito, senhora Fé, mas o senhor Deus irá ler estes livros infantis”? “Sim”, respondeu a Fé e continuou: “ele está muito ocioso nos últimos séculos, pois depois que aumentou o secularismo no mundo, com o crescimento do conhecimento científico e da tecnologia, bem como as mudanças na Moral e na Política, o senhor Deus não tem quase mais nada para fazer, de modo que preciso levar algo que ocupe o seu tempo, pois receio que ele entre em depressão com tanta ociosidade, por isso vou presenteá-lo com estes livros infantis”. “Mas”, interrompeu a Razão, “você acha que o senhor Deus vai gostar de livros infantis”? “Sim”, respondeu a Fé, “porque, além de ser um presente, será para ele um consolo também, uma vez que, lendo estas histórias infantis, ele poderá se recordar do período da infância da humanidade, quando ele era acreditado pela população em geral e tinha poder sobre todos. Ademais, ele precisa de algo para fazer, pois desde quando o triunfo do secularismo o aposentou, ele vem reclamando da falta de ocupação”. Dito isto, a Razão esboçou um sorriso amarelo e disse: “bem, melhor ler isto do que não fazer nada”.
            Então, as duas se encaminharam para o caixa e para o setor de empacotamento para finalizarem a compra. Chegando o momento de embrulhar os livros, a funcionária perguntou para a Fé: “prezada senhora, qual estampa infantil de papel de embrulho lhe agrada mais, esta ou aquela”? Com isso a Fé respondeu: “não precisar embrulhar com papel de presente para criança, estes livros são para adultos”. A funcionária surpreendida exclamou: “Ora, desde que trabalho aqui, esta é a primeira vez que vendemos livros infantis para adultos lerem”! “Sim”, disse a Fé: “sua surpresa é justificável, pois quando, em virtude da preguiça intelectual, não acompanhamos a evolução cultural, somos limitados a entender apenas aquilo que as culturas desenvolvidas têm de mais infantil, e isto é o que acontece comigo, pois ainda estou na infância cultural da humanidade”. 

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

|ESTUDO| O Polêmico Beijo de Jesus na [...] de Maria Madalena

Octavio da Cunha Botelho


(Obs: este estudo está disponível em versão mais atualizada em:
http://observadorcriticodasreligioes.wordpress.com/2014/01/01/o-polemico-beijo-de-jesus-na-de-maria-madalena/)

          
Considerações iniciais

  
Vitral de uma igreja reproduzindo um contato
afetuoso entre Jesus e Maria Madalena
          A ideia de um Jesus casado era um assunto adormecido, para quase todos os cristãos, até o lançamento do livro de ficção O Código Da Vinci (Da Vinci Code - 2003) de Dan Brown, bem como do filme homônimo (2006), do diretor Ron Howard, estrelado por Tom Hanks, os quais introduziram na discussão popular uma polêmica que antes só circulava entre os acadêmicos e os pesquisadores. Mesmo não sendo um livro de história, a publicação desencadeou discussões entre cristãos e ateus, e uma vez que a fonte literária do tema, o Evangelho de Felipe, um texto gnóstico descoberto em Nag Hammadi, no Egito, em 1945, não é popularmente conhecida, os curiosos ficaram desorientados sobre o que era de fonte evangélica e o que era produto da imaginação de Dan Brown em seu livro. A hipótese de um Jesus casado, tal como imaginada na obra, extraída de apenas uma das vertentes interpretativas deste controvertido evangelho gnóstico, tornou-se intrigante para o público mais curioso, quer cristão ou cético, levando muitas pessoas à curiosidade sobre o que se falava de Jesus fora dos evangelhos canônicos nos primeiros anos do Cristianismo.
            Tão intrigante quanto a hipótese de um Jesus casado e com descendentes é a passagem, neste texto apócrifo, onde é mencionado um “beijo de Jesus na [...] de Maria Madalena”, bem como a menção desta como a “companheira” de Jesus. O trecho entre colchetes da frase representa a parte danificada do manuscrito, e por ser este o único existente, não é possível consultar outro para saber onde é dado este beijo de Jesus em Maria Madalena, se é na “boca”, tal como a maioria dos tradutores e intérpretes sugere, ou em outra parte do corpo, tal como interpretam outros.
            Polêmicas religiosas são sempre carregadas de emotividade, quando cada parte na discussão, quer a favor ou contra, projeta seus sentimentos e ideologias em seus argumentos. De modo que, conspiradores contra o Cristianismo se deleitam em citar esta passagem, interpretando o beijo como que na boca, portanto tendo um sentido erótico, para denunciar o caráter estritamente humano e sucumbente à tentação de Jesus. Enquanto que, por outro lado, os cristãos procuram encontrar sentidos que levem ao entendimento de que este beijo não é um beijo puramente carnal, mas sim espiritual e metafórico, conforme o significado esotérico atribuído pelos gnósticos valentinianos, esta última interpretação é bem recebida e alimentada, sobretudo, pelos esoteristas. Sendo assim, o breve estudo abaixo tentará mostrar ao leitor a situação da discussão sobre este assunto na atualidade.    

O Evangelho de Felipe

            Enquanto alguns textos gnósticos já eram conhecidos através de manuscritos em Grego e em Latim, quer na íntegra ou em fragmentos, o texto do Evangelho de Felipe, por sua vez, não era do nosso conhecimento antes da descoberta da coleção de códices de Nag Hammadi, em 1945, no Egito, portanto é o único manuscrito existente, constante do Códice II, fólios 51-86, da coleção acima (Ehrman, 2003: 38). Existem duas traduções inglesas mais conhecidas, a de Wesley W. Isenberg (2007: 126-43) e a de David Cartlidge (Ehrman, 2003: 38-44). Alguns autores atribuem o texto à corrente valentiniana do Gnosticismo (Tripolitis, 2002: 133n; Schaberg, 2004: 151 e Isenberg, 2007: 126), uma vertente gnóstica fundada pelo mestre gnóstico Valentino (séculos II e III e.c.). Pouco se sabe sobre sua vida, a partir dos heresiólogos cristãos, apenas que ele nasceu e foi educado em Alexandria, por volta de 140 e.c. foi para Roma como um mestre cristão e chegou a ser bem sucedido. Valentino foi nomeado para o bispado, mas foi preterido em favor de Pio, o Mártir. Logo em seguida, ele rompeu com a comunidade cristã e foi considerado um herege. Então criou sua própria linha de interpretação cristã a partir do pensamento gnóstico (Tripolitis, 2002: 132-3).
Página do manuscrito do Evangelho de 
Felipe mostrando os trechos danificados
            Trata-se de um texto extremamente enigmático e carregado de simbolismos gnósticos, cujo entendimento só é possível à luz de uma exegese esotérica. Somado a uma redação desconexa e desencadeada, através de proclamações resumidas, bem como aos trechos danificados do manuscrito, o resultado é um texto de difícil compreensão (Ehrman, 2003: 38 e Isenberg, 2007: 126-7). Quanto à data da compilação, Bart D. Ehrman sugere: “É difícil determinar a data desta obra, mas foi provavelmente compilada durante o terceiro século, embora ela utilize de fontes mais antigas” (Ehrman, 2003: 38). O manuscrito é certamente uma tradução de um original grego (Isenberg, 2007: 128). O título, Evangelho de Felipe, pode derivar meramente do fato de que Felipe é o nome do único apóstolo mencionado nele (Isenberg, 2007: 128 e 138).
Do modo que se apresenta, o Evangelho de Felipe parece ser mais uma compilação do que uma composição original e uniforme. Wesley W. Isenberg analisa na introdução da sua tradução: “O Evangelho de Felipe é uma compilação de declarações (...)”. As “poucas palavras e histórias sobre Jesus, entretanto, não estão organizadas em um tipo de quadro narrativo algum, como aqueles encontrados nos evangelhos do Novo Testamento. De fato, o Evangelho de Felipe não está organizado na forma que poderia ser convenientemente esboçado. Apesar de conseguir manter alguma continuidade através da associação de ideias, a linha de pensamento se apresenta com divagações e desconexões. Mudanças radicais de assunto são comuns”. Sobre a coerência ele aponta que: “a coerência é provável que seja mais coincidente do que planejada”. E continua: “É possível que o compilador desta coleção tenha desmembrado propositadamente o que antes eram parágrafos completos de pensamento e distribuído as partes fragmentadas em vários lugares da obra” (Isenberg, 2007, 126-7). Enfim, a sua leitura nos deixa a impressão de que o texto do Evangelho de Felipe está mais para uma ‘colcha de retalhos’ do que uma composição uniforme e concatenada.

A companheira de Jesus

            O grau de relacionamento e de intimidade entre Jesus e Maria Madalena vem sendo objeto de ardentes discussões desde a publicação do evangelho acima. Um trecho corrompido do manuscrito é cercado de polêmica e de discussão. Com a destruição pelo tempo, algumas frases estão mutiladas, deixando um mistério intrigante. O trecho é o seguinte (as lacunas entre colchetes são as partes danificadas do manuscrito): “E a companheira de [...] Maria Madalena [...] ela mais que aos discípulos, beijá-la na sua [...]”. Para tornar este trecho mais claro, as duas traduções inglesas mais utilizadas preencheram as lacunas da seguinte maneira: “E a companheira de [...] Maria Madalena [... amava] ela mais que a [todos] os discípulos, [e costumava] beijá-la [frequentemente] na sua [... boca]” (Isenberg, 2007, 134). E na tradução de David Cartlidge e David Dungan, utilizada por Bart D. Ehrman: “e a consorte de Cristo é Maria Madalena. O [senhor amava Maria] mais que todos os discípulos, e ele a beijava na [boca muitas vezes]” (Ehrman, 2003: 42).
Cena de um filme na qual Jesus e Maria Madalena
trocam olhares amorosos
Antes de analisar a questão do beijo, a referência à Maria Madalena como ‘companheira’ ou como ‘consorte’ de Jesus merece consideração aqui. Uma vez que muitos manuscritos gnósticos de Nag Hammadi são traduções de textos gregos para a língua copta, os pesquisadores apontam que estas palavras são traduções da palavra copta hotre, e esta, por sua vez, também traduzida da palavra grega koinonos. Jane Schaberg explica: “O termo grego koinonos tem um amplo horizonte de significados na Bíblia e em outros textos: parceira de casamento, participante, cooperadora na evangelização, companheira de fé, parceira de negócio, camarada e amiga” (Schaberg, 2004: 152). Então, o significado da palavra koinosos é um tanto genérico, por isso os tradutores a traduziram pelos termos “companheira” ou “consorte”, os quais, por sua vez, podem ser uma companheira de fé, de matrimônio, de negócio, de viagem ou de amizade. Porém, J. Schaberg observa que, em outra passagem anterior, do mesmo evangelho, é mencionado que “havia três Marias que sempre andavam com o Mestre, Maria sua mãe, sua irmã e Madalena, aquela a quem era chamada de sua companheira” (Isenberg, 2007: 132). O curioso desta passagem é que as três Marias “andavam com o Mestre”, mas apenas Madalena é chamada de companheira (koinosos), sinalizando para o fato de que ela era uma companheira diferenciada (Schaberg, 2004, 152). Por isso, J. Schaberg assinala: “Ela não é chamada de a ‘companheira’ do Senhor em nenhum outro lugar na existente literatura gnóstica, e ninguém mais é chamada de sua ‘companheira’” (Schaberg, 2004: 152). Já no Evangelho de Maria Madalena, ela é mencionada como aquela “que o Salvador amava mais que a todas as mulheres” (Wilson, 2007: 442), e não como companheira (koinosos), pelo menos nos fragmentos restantes deste texto, o qual está muito mutilado.
Assim, a natureza precisa do relacionamento de Jesus com Maria Madalena não é possível de ser identificada com clareza, em vista da linguagem ambígua e enigmática deste evangelho gnóstico. Por toda a análise de Jane Schaberg sobre esta passagem (p. 151-5), somente são apresentadas hipóteses para o que o autor (que está mais para um compilador) tentou mencionar com a palavra ‘companheira’.

O beijo de Jesus na [...] de Maria Madalena

            Alguns autores procuram preencher esta lacuna a partir de dados de outros trechos do mesmo Evangelho de Felipe, texto que só existe em uma única cópia manuscrita, ou seja, no Códice II da Coleção de Nag Hammadi, portanto não é possível recorrer a outro manuscrito para suprir as lacunas. Ademais, além de muito multilado, trata-se de uma compilação desconexa, onde nem sempre é possível se ter certeza de que outro trecho seria a interpretação apropriada para explicar determinada passagem corrompida ou enigmática. Sendo assim, tudo que já foi sugerido até agora não passa de conjectura para tentar encontrar o sentido das passagens obscuras.
 
Os códices dos manuscritos de Nag Hammadi foram
encontrados encapados por couro
          No caso da passagem: “E a companheira de [...] Maria Madalena [...] ela mais que aos discípulos, beijá-la na sua [...]”, Wesley Isenberg, David Cartlidge e David Dungan sugeriram, em suas traduções, preencher a lacuna com a palavra “boca”, resultando em: “beijá-la na [boca frequentemente ou muitas vezes]” (Isenberg, 2007: 134 e Ehrman, 2003: 42). Esta é a palavra mais sugerida, porém outros autores afirmam que outras palavras da língua copta também se encaixam perfeitamente no espaço corrompido do manuscrito, tais como: “face”, “pés”, “testa”, “lábios” e “mão” (Schaberg, 2004: 154), portanto o beijo poderia acontecer em qualquer uma destas partes do corpo. Entretanto, Jane Schaberg acredita que “evidência interna indica que boca possa ser a melhor escolha” (Schaberg, 2004: 154), e se justifica com uma passagem anterior do mesmo Evangelho de Felipe (59: 1-6): “É por ser prometido ao lugar celestial que o homem [recebe] o alimento [...] dele pela boca. [E assim] veio a palavra daquele lugar (dizendo) que seriam alimentados pela boca e se tornariam perfeitos. Sendo ela através de um beijo que o Perfeito concebe e dá a luz. Por esse motivo, nós nos beijamos uns aos outros. Recebemos  a concepção da graça que está no meio de nós” (Isenberg, 2007: 132). A passagem não é absolutamente clara, mas transmite a ideia que os gnósticos concebiam uma forma de alimentação (transmissão) espiritual através da boca, por isso os discípulos se beijavam, de modo que o beijo poderia significar uma maneira de transmissão de espiritualidade. Esta autora associa este episódio a uma passagem do Evangelho de João (20: 22): “E tendo ele (Jesus ressuscitado) dito isto, ele soprou (gr: enefusesen kai; lat: insufflavit) sobre eles (discípulos) e disse-lhes: receba o Espírito Santo” (Schaberg, 2004: 154). A relação entre estas duas passagens não me parece procedente, uma vez que beijo na boca como transmissão espiritual poderia ser muito diferente do significado de sopro espiritual, este último é utilizado em outras tradições religiosas diferente do Cristianismo, sobretudo como transmissão de poder espiritual nas iniciações, enquanto beijo espiritual na boca é uma singularidade deste evangelho gnóstico.
            Mesmo que não exista esta relação entre estas duas passagens, não implica que a passagem do Evangelho de Felipe não tenha um significado metafórico. Karen L. King explica: “Embora o texto nunca negue que a discussão de beijar possa ter um sentido literal, a passagem (acima) mostra que beijar claramente tem um significado metafórico” (King, 1993; 631n). E continua; “Existem três possíveis compreensões de beijar e elas não são mutuamente exclusivas: (1) referência a ensinar através da palavra; (2) uma metáfora para uma íntima e pessoal recepção da palavra de ensinamento; e (3) a prática cristã do beijo de companheirismo. Talvez a menção de Maria e o Salvador se beijando refere-se a um ou a todos estes sentidos do termo. Se este for o caso, isto poderia implicar que Maria tinha aceito e compreendido o ensinamento do Salvador particularmente bem, e por esta razão ele a amava. Os outros discípulos, sendo menos avançados espiritualmente, confundiram a natureza desta afeição e são ciumentos” (King, 1993: 631n e Schaberg, 2004: 154). De todas as tentativas de explicar esta passagem do beijo, consultadas durante a preparação deste estudo, a de K. L. King acima parece ser a menos conjectural.

A Câmara Nupcial

            Até a descoberta do Evangelho de Felipe, as referências à Câmara Nupcial, do Gnosticismo Valentiniano, eram conhecidas apenas através das obras dos heresiólogos (autores de tratados de heresia: Tertuliano, Irineu de Lyon, etc.). As menções, em muitas passagens, à Câmara Nupcial neste evangelho gnóstico, foi o traço que levou os estudiosos a conectá-lo à corrente valentiniana do Gnosticismo. Apesar das tantas menções, o preciso significado desta Câmara Nupcial, neste texto gnóstico, não está absolutamente claro, daí que pesquisadores continuam a vasculharem as obras dos antigos heresiólogos, sobretudos os que defendem a opinião do beijo ritual. De modo que, ainda persiste um acalorado debate sobre a questão de que se este beijo de Jesus é um beijo erótico na boca, entre amantes, ou trata-se de um beijo físico que simboliza o beijo espiritual durante o ritual da Câmara Nupcial.
            A partir das referências no Evangelho de Felipe, bem como as citações reunidas por April D. Deconigk a partir dos heresiólogos cristãos, estas mostram que não se trata de uma câmara física ou material, senão de uma câmara celestial, “na qual todas as almas salvas seriam transformadas em corpos perfeitos” (Deconigk, 2011: 45-6), ou onde “assim como o marido e esposa se unem na câmara nupcial, também a reunião efetuada por Cristo acontecerá na Câmara Nupcial, a sacramentada, onde a pessoa recebe a antecipação e a garantia da derradeira união com um parceiro celestialmente angelical” (Isenberg, 2007: 127). Agora, o curioso é que, segundo o Evangelho de Felipe, a Câmara Nupcial não é para todos: “uma Câmara Nupcial não é para os animais, nem para os escravos, nem para as mulheres corrompidas, mas para os homens livres e as imaculadas” (Isenberg, 2007: 136). A discriminação entre escravos e homens livres acima é intrigante, pois sinaliza para o sentido de que os valentinianos aprovavam o regime de escravatura. Mais adiante: “A redenção é o ‘sagrado do sagrado’. ‘O sagrado dos mais sagrados’ é a câmara nupcial” (Idem: 136). E “de fato, aqueles que foram unidos na câmara nupcial jamais serão separados. Consequentemente, Eva se separou de Adão porque não foi unida na câmara nupcial, que a unia com ele” (idem, 137). Também: “Aquele que foi ungido possui tudo. Possui a ressurreição, a luz, a cruz e o Espírito Santo. O Pai o ofereceu isto na câmara nupcial” (Idem: 138). E no último parágrafo deste evangelho: “Se alguém se tornar um filho da câmara nupcial, ele receberá a luz. Se esta pessoa não a receber enquanto estiver aqui, não será capaz de recebê-la no outro lugar. Aquele que recebe esta luz não será visto, nem poderá ser detido. E ninguém será capaz de atormentar uma pessoa como esta, mesmo enquanto ela habitar no mundo” (Idem, 143).

A visão valentiniana da concepção

O mestre gnóstico Valentino
(séculos II e III e.c.)
            Conforme a maneira de ser lido e interpretado, o Evangelho de Felipe poderá ser chocante para o cristão convencional, uma vez que o texto trata abundantemente de casamento, de sexo, de procriação e até de adultério. Algumas passagens chegam a ser cômicas, tal como a seguinte explicação sobre a “hereditariedade do adultério”: “As crianças que uma mulher gera são semelhantes ao marido que ela ama. Se o marido a ama, então eles (os filhos) são semelhantes ao marido. Se for uma adúltera, então (os filhos) são semelhantes ao adúltero. Frequentemente, se uma mulher dorme com o seu marido sem necessidade, enquanto seu coração está com o adúltero, com quem ela geralmente mantém relações sexuais, a criança que ela gerar será semelhante ao adúltero” (Isenberg, 2007: 140 e Deconigk, 2011: 42). Isto porque, para os gnósticos valentinianos, a concepção era um fenômeno determinante nos destinos das almas que desciam até este mundo, daí que a procriação é um tema importante para esta vertente gnóstica. Recheado de simbolismos, estes gnósticos tentavam explicar o fenômeno da procriação em seu sentido carnal, celestial e soteriológico. Eles a explicavam assim: “a substância anímica e psíquica eram pré-existentes e, de fato, pré-cósmica. Após o Demiurgo ter criado os corpos psíquicos e físicos, Sofia (o Logos) implantava sementes anímicas neles, aparentemente com a ajuda de um anjo ou do espírito santo”. E mais: “a alma entra no útero, que foi preparado para a concepção pela purificação [menstruação] e é introduzida (no útero) por um daqueles anjos destinados a supervisionar o nascimento, os quais conhecem antecipadamente o momento da concepção para estimular a mulher para a relação sexual, e quando a semente foi depositada, de certa maneira, a Pneuma que está na semente é adaptada, e esta participa da formação (do embrião)” (Deconigk, 2011: 44). April Deconigk explica: “Os anjos, (...), incentivavam a mulher a ter relação sexual com seu marido quando o momento da concepção se aproximava. Após o sêmen ter sido expelido no útero, os anjos então depositavam a alma no momento da concepção. Na verdade, a esterilidade é devido à ausência de intervenção angélica, não ao problema com qualquer um dos pais” (Deconigk, 2011: 45).
            Assim, para os gnósticos valentinianos, a maneira de se fazer sexo, ou seja, a concepção, era de suma importância para o destino dos corpos que nasciam neste mundo inferior. Isto é, os modos puros ou impuros de concepção carnal refletiam nos modos de concepção celestial, consequentemente afetando o nascimento das almas, daí a razão para a criação de tantos símbolos e tantas metáforas para representar a concepção celestial, e a Câmara Nupcial foi um deles.

Considerações finais

            Do breve estudo acima, é possível perceber que uma solução consensual e definitiva sobre a polêmica deste beijo de Jesus em Maria Madalena está longe de ser alcançada. O estado danificado do manuscrito, bem como a redação desconexa, confusa e enigmática do texto do Evangelho de Felipe, somado ao tão pouco que sabemos sobre a corrente valentiniana do Gnosticismo, tudo isto, de certa maneira, contribui para adiar a solução da polêmica. Mesmo assim, algum certo avanço no esclarecimento do assunto já foi alcançado, o que é melhor do que se nada tivesse sido feito até agora. Com o prosseguimento dos estudos e, quem sabe, a descoberta de mais manuscritos gnósticos, o enigma venha a ser resolvido no futuro.
            Apesar de toda a controvérsia, uma ideia é possível ser extraída com certeza do estudo dos textos gnósticos e de outros evangelhos apócrifos: de que o Cristianismo dos primeiros séculos estava mergulhado em imenso mar de interpretações divergentes e rivais, quando cada comunidade compunha seus próprios evangelhos e elaborava suas interpretações de acordo com sua visão doutrinária e seu programa catequético, daí a razão para a existência, segundo os historiadores, de mais de cinquenta evangelhos diferentes, na ocasião do Concílio de Nicéia, convocado pelo imperador Constantino, em 325 e.c., para tentar unificar o Cristianismo, tão fragmentado na época.
           

Obras consultadas


DECONIGK, April D. Conceiving Spirits: The Mystery of Valentinian Sex em Hidden Intercourse: Eros and Sexuality in the History of Western Esoterism. Wouter J. Hanegraaff (ed.). New York: Fordham University Press, 2011, p. 23-48.
EHRMAN, Bart D. Lost Scriptures: Books that Did Not Make It into the New Testament. London/New York: Oxford University Press, 2003, p. 38-44.  
GARDNER, David. Is This the Proof Jesus Wed Mary Magdalene? London: Daily Mail, September 20, 2012, p. 21.
GOODRICK-CLARKE, Nicholas. The Western Esoteric Tradition: A Historical Introduction. London/New York: Oxford University Press, 2008.
GRANT, Robert M. Gnostic Spirituality em Christian Spirituality: Origins to the Twelfth Century. Bernard McGinn et al. (eds.).New York: Crossroad, 1985, p. 44-60. 
ISENBERG, Wesley W. (tr.) O Evangelho de Felipe em A Biblioteca de Nag Hammadi, James M. Robinson (ed.). São Paulo: Madras Editora, 2007, p. 126-43.
KING, Karen L. The Gospel of Mary Magdalene em Searching the Scriptures, Elisabeth S. Fiorenza (ed.). New York: Crossroad, 1993, p. 601-34.
_____________ What Is Gnosticism? Cambridge: The Belknap Press of Harvard University Press, 2005.
LOGAN, Alastair H. B. Gnosticism em The Early Christian World, vol. 2. Philip F. Esler (ed.). London: Routledge, 2000, p. 907-28. 
MATTHEWS, Christopher R. Philip: Apostle and Evangelist. Boston/Leiden: Brill, 2002, p. 135-40.
SCHABERG, Jane. The Resurrection of Mary Magdalene: Legends, Apocrypha and the Christian Testament. New York: Continuum International Publishing Group, 2004, p. 151s.
STANFORD, Peter. Was Jesus Married? London: Daily Mail, September 21, 2012, p. 28.
TRIPOLITIS, Antonía. Religions of the Hellenistic-Roman Age. Grand Rapids: W. B. Eerdmans, 2002, p. 119-42.  
WILSON, R. McL. and George W. MacRae (trs.). O Evangelho de Maria em A Biblioteca de Nag Hammadi, James M. Robinson (ed.). São Paulo: Madras Editora, 2007, p. 441-4.





quinta-feira, 17 de outubro de 2013

|CRÍTICA| Não é Preciso Ser Religioso para Ser Caridoso


Octavio da Cunha Boteho



 
Surpreendentemente, os países mais religiosos não
são os mais caridosos, segundo pesquisa.
           Seria natural pensar que os países mais religiosos, sobretudo os mais cristãos, seriam aqueles com a população mais caridosa do mundo. Nada disto, portanto prepare-se para deletar esta ideia da sua cabeça. Resultado da última pesquisa do Instituto Gallup, em 2012, encomendada pela Charities Aid Foundation (CAF), divulgada através do Índice de Caridade Mundial (World Giving Index – WGI), revelou que os países no topo do ranking de maior caridade são alguns dos com a população majoritariamente  ateia, ou com o ateísmo em crescimento nas últimas décadas. A pesquisa leva em conta três atos da caridade:
a) doação em dinheiro a uma organização,
b) tempo de serviço voluntário em uma organização e
c) ajuda a um estranho necessitado.
O índice (WGI) é apresentado através de uma pontuação na forma de um score traduzido em porcentagem da população envolvida na caridade, de modo que, as populações com as maiores porcentagens são as mais caridosas do mundo. Então, o ranking ficou assim:
1º Austrália com o score de 60%,
2º Irlanda com o score de também 60%,
3º Canadá com 58%,
4º Nova Zelândia com 57%,
5º EUA com 57% e
6º Holanda com 53%.
O Brasil, a segunda maior população cristã e a maior população católica do mundo, amargurou um vergonhoso 83º lugar com o score de apenas 27%, confirmando que é um país com uma população com muita fé, mas com pouco espírito caridoso, mais um exemplo de que ter crença não é sinal de ter religiosidade, ou mesmo, de ter espírito generoso. Isto é, a maioria da população cristã aqui é religiosa apenas da boca para fora, enfim, são muitos os que se declaram cristãos, porém, em contrapartida, muitos poucos os que efetivamente praticam.
Se fosse correto o raciocínio de que as populações mais cristãs seriam as mais caridosas do mundo, então o topo deste ranking deveria ser ocupado pelos países mais cristãos, porém observe que, segundo esta pesquisa, a realidade não é assim. Veja abaixo uma relação dos países mais católicos e suas respectivas posições no ranking do Índice de Caridade Mundial (WGI):
- Honduras (97% católicos) posição no WGI: 31º lugar com o score de 40%
- Equador (95% católicos) posição no WGI: 128º lugar com o score de 17%
- Venezuela (95% católicos) posição no WGI: 123º lugar com o score de 19%
- Argentina (92% católicos) posição no WGI: 94º lugar com o score de 24%
- Colômbia (90% católicos) posição no WGI: 42º lugar com o score de 37%
- Itália (90% católicos) posição no WGI: 57º lugar com o score de 33%
- México (76% católicos) posição no WGI: 75º lugar com o score de 28%
- Brasil (64% católicos) posição no WGI: 83º lugar com score de 27%.
Austrália, onde o ateísmo é crescente, está no topo dos mais
caridosos
O resultado desta pesquisa nos leva a refletir sobre a razão porque países com o alto índice de ateísmo, ou com o ateísmo em crescimento nas últimas décadas, como a Austrália, a Irlanda, a Holanda e a Nova Zelândia praticarem a caridade mais que as nações majoritariamente cristãs. A resposta poderá ser que, nas sociedades de melhor qualidade de vida, onde o senso de egoísmo foi superado, em virtude da alta escolaridade, e a religião não tem mais utilidade cultural e social, as virtudes da religião, que ainda têm utilidades culturais e sociais, tais como a caridade e a generosidade, foram absorvidas pela cultura secular destes países, de modo que estas virtudes são percebidas não mais como uma prática religiosa, mas sim como uma responsabilidade social e uma sensatez humanística. Ou seja, o papel da religião foi substituído por outros órgãos sociais e instituições (ONG’s, Cruz Vermelha, grupos assistenciais, etc.). Enfim, o resultado desta pesquisa demarca claramente a divisão, no mundo atual, entre aquelas sociedades e pessoas que ainda precisam da religião e aquelas que já conseguiram substituir a religião por outros órgãos e instituições sociais de efetiva contribuição social para o bem estar da população, por isso estes países ocupam o topo do ranking dos índices de Desenvolvimento Humano (IDH) e de Felicidade da População (GHI).   
Em suma, o que o resultado desta pesquisa nos leva a concluir é que não é preciso estar embebido de crença cristã para ser um caridoso, basta superar o egoísmo e ter responsabilidade social, um trabalho educativo que foi feito pelas escolas nos países mais bem ranqueados, e não pelas igrejas.  



segunda-feira, 2 de setembro de 2013

|ESTUDO| Rajneesh-Osho e sua Trajetória Circular



 por Octavio da Cunha Botelho

(Obs: este estudo está disponível em versão mais atualizada em:


           
Rajneesh-Osho em seus habituais trajes luxuosos: por
trás desta serenidade escondia-se uma vida tumultuada,
que o levou até à prisão.
Ele se transformou no guru oriental mais popular do mundo na primeira metade dos anos 1980, superando em popularidade os então aclamados líderes de outros Novos Movimentos Religiosos, tais como Swami Prabhupada (líder dos Hare Krishnas), Maharishi Mahesh Yogi (fundador da Meditação Transcendental), Guru Maharaj (da Missão Luz Divina), Reverendo Moon (da Igreja da Unificação) e Sathya Sai Baba. No auge da fama, era comum encontrar livrarias com prateleiras abarrotadas de livros de Rajneesh. Caso deseje ter uma ideia da dimensão da sua produção literária, a edição digital de suas obras, pela Osho International Foundation, reúne 225 publicações, sendo muitas delas registros de suas palestras, quantidade esta que pode ser incompleta, pois alguns autores falam em mais de 500 escritos de sua autoria. O seu sucesso foi tanto que, entre os espiritualistas new agers daquela época, era vergonhoso alguém dizer que não tinha lido um livro de Rajneesh, ou seja, ler e admirar este guru tinha se transformado em uma referencia de espiritualidade, bem como passou a ser um modismo intelectual nos primeiros anos de 1980.
            A repercussão da sua celebridade podia ser medida pela enorme disponibilidade de livros, de sua autoria, nas prateleiras das livrarias. Ele foi o autor que mais vendia entre os espiritualistas new agers.  Quando orientalistas e esoteristas se encontravam, o assunto era sempre Rajneesh. A febre também alcançou o Brasil. Lembro-me de uma ocasião em 1983, quando estava em uma livraria de Brasília, aguardando a abertura da Embaixada da Índia para tirar o meu visto, ao lado das prateleiras de livros sobre esoterismo, então uma garota puxou assunto e iniciamos em seguida uma entusiasmada e reciprocamente confiante conversa, até o momento em que lhe disse que não aprovada as ideias de Rajneesh. Então, imediatamente, a expressão do seu rosto mudou e ela passou a transparecer que não acreditava mais no que eu dizia, consequentemente a conversa esfriou. Isto porque Rajneesh tinha alcançado tanto prestígio no circulo espiritual new age daquela época, que se tornou uma referência para se medir o grau de intelectualidade em assuntos espirituais de um buscador, isto é, para ser um new ager instruído, era preciso ter lido e ser um admirador de Rajneesh.

Carreira inicial

            Rajneesh-Osho (1931-90) nasceu em uma família de doze filhos na vila de Kuchawada, estado de Madhya Pradesh, Índia, seu nome de nascimento era Mohan Chandra Rajneesh Jain, de modo que ele foi criado fora da dominante tradição hindu. Seus pais morreram enquanto era pequeno, então ele foi criado pelos avós, um rico casal jainista (religião fundada por Mahavira, contemporâneo de Buda). Desde cedo, Rajneesh relatou ter tido várias experiências de êxtases, finalmente alcançando a “plena iluminação” na idade de vinte e um anos. Ele se formou na Universidade de Saugar e logo em seguida conseguiu um emprego na Raipur Sanskrit College. Suas palestras criaram muitas controvérsias, por exemplo, ele chegou até a atacar heróis nacionais, tal como Mahatma Gandhi, quem ele ridicularizou chamando-o de “chauvinista pervertido e masoquista” (Urban, 2003: 237). Então,
Rajneesh-Osho fazendo a posição de saudação com
as mãos algemadas, dois agentes federais o escoltam
Rajneesh se transferiu para outra faculdade no ano seguinte, para a cidade de Jabalpur, onde ele sofreu um período traumático de depressão e anorexia, chegou até a tentar suicídio, depois de algum tempo e recuperado, ele recebeu uma promoção para professor em 1960.
Quando a faculdade estava em férias, ele costumava viajar pela Índia palestrando sobre política, sexualidade e espiritualidade. Com o tempo, suas cativantes palestras atraíram um número de comerciantes e empresários ricos. Estes clientes lhe davam doações por consultas sobre desenvolvimento espiritual e sobre vida diária. O rápido crescimento da sua clientela, contudo, foi algo fora do comum, mostrando que ele era um talentoso terapeuta espiritual. Em 1964, um grupo de banqueiros ricos formou um consórcio para sustentar Rajneesh, bem como os retiros de meditação que ele conduzia. Tal como muitos profissionais, cuja clientela cresce rapidamente, ele contratou uma gerente de negócios, ela era Lakshmi, uma mulher da classe alta, bem relacionada politicamente, a qual se tornou a sua primeira secretária particular e chefe administrativa.
            A carreira inicial de Rajneesh refletiu bem seus carismáticos atributos individuais de inteligência, de apelo emocional e de habilidade em comunicar-se diretamente com indivíduos, mesmo quando eles eram parte de uma grande plateia. Ele era altamente enfático, com uma fascinante volatilidade emocional, que atraía tanto os buscadores da Índia, como um pequeno, mas crescente número de europeus e de norte americanos. Atendendo a solicitação dos encarregados da universidade onde lecionava, Rajneesh afastou-se do seu cargo na Universidade de Jabalpur em 1966, e começou a usar o nome de Acharya Rajneesh (Mestre Rajneesh) anunciando que, a partir de então, sua ocupação principal seria a de um líder espiritual. Assim, ele passou a se sustentar de palestras, da realização de acampamentos de meditação e, individualmente, de aconselhamentos a influentes clientes indianos. Rajneesh criticava a política e as religiões institucionalizadas e, ao mesmo tempo, defendia uma sexualidade liberada e mais aberta.
            Sua popularidade aumentou fora da Índia, o que trouxe muitos ocidentais aos acampamentos de meditação sob sua direção, bem como ao seu apartamento em Mumbai (Bombaim), onde também aconteciam aulas de meditação. Então, ele enviou alguns de seus seguidores ocidentais de volta para casa, a fim de fundarem uma rede internacional de centros de meditação. Em 1971, seu séquito cresceu e diversificou, daí ele alterou, mais uma vez, seu nome para Bhagavan Sri Rajneesh, que significa Reverenciável Rajneesh, o Senhor Supremo.
            À medida que o movimento crescia nos anos 1970, uma nova estrutura organizacional surgia. Os seguidores passaram a receber novos nomes, geralmente de reverenciados deuses e deusas hindus, significando seu renascimento espiritual através do voto de renúncia (samnyasa), abrindo-se, cada vez mais, a Bhagavan Sri Rajneesh e renunciando ao seu passado. Ele também pediu aos seus seguidores que usassem uma vestimenta de cor alaranjada, tal como os santos ascetas (samnyasis) da Índia. No entanto, estes novos nomes e a sagrada vestimenta dos ascetas hindus, somados à disciplina sexual e à atitude libertina dos devotos, ofenderam profundamente a população local. Com o tempo, o número de seguidores ocidentais ultrapassou o de seguidores indianos, aumentando assim o auxílio financeiro, o que fez com que, em 1974, ele mudasse a sede de Mumbai para Pune (antiga Puna), ao sul de Mumbai (Goldman, 2004: 122-3).

Rajneeshpuram

Vista aérea da comunidade de Rajneeshpuram
(Cidade de Rajneesh), durou apenas quatro anos.
            Esta nova sede altamente lucrativa, contudo, logo se envolveu em problemas legais e financeiros com o governo da Índia. Então, em 1981, Bhagavan e seus devotos foram forçados a fugir do país “rastreados por alguns milhões de dólares em dívidas, bem como por uma grande quantidade de cobradores de impostos e pela polícia” (Urban, 2003: 237). Anunciando-se como o “messias que a América estava aguardando”, Rajneesh refugiou-se nos EUA. Após uma breve permanência em uma mansão em New Jersey, ele e seu séquito compraram uma fazenda de 64 mil acres na pequena aldeia de Antelope, condado de Wasco, no estado de Oregon, a qual ele batizou com o nome de Rajneeshpuram (cidade de Rajneesh). Rapidamente, a cidade comunitária se transformou em um complexo financeiro notavelmente lucrativo, de modo que Rajneeshpuram acumulou US$ 120 milhões em renda durante os seus quatro anos de existência (Urban, 2003: 237 e Goldman, 2011: 309). Rajneeshpuram transformou-se em uma máquina de fazer dinheiro, lá “os preços se estendiam desde US$ 50 por um dia de introdução à meditação de Rajneesh, até US$ 7.500 por um completo programa de reequilíbrio de três meses” (Urban, 2003: 239). Enquanto isto, o séquito se espalhava pelos EUA, pela Europa, pela Índia, alcançando 25 mil membros iniciados em seu pico, daí transformando-se em um diversificado e internacionalizado complexo de negócios (Urban, 2003: 237-8). De Rajneeshpuram para o mundo, o ‘Rajneeshismo’ se transformou em um modismo internacional entre os espiritualistas na primeira metade dos anos 1980.
            Os objetivos dos seguidores, com a construção da cidade comunitária de Rajneeshpuram, eram, nas palavras de Marion Goldman, os seguintes: “Eles esperavam fundir espiritualidade e materialismo enquanto construíam uma comunidade internacional que pudesse servir também como um retiro e um centro luxuoso de peregrinação para samnyasis de todas as partes do mundo, suplantando o ashram anterior de Pune (Puna), Índia” (Goldman, 2011: 309).  Um fato que chamou a atenção em Rajneeshpuram foi a sua capacidade de atrair pessoas de alta escolaridade e de sucesso profissional, portanto era uma comunidade de intelectuais e não de fracassados, tal como em muitas outras comunidades religiosas. Segundo os resultados da minuciosa pesquisa de Marion Goldman, “a maioria dos samnyasis que viviam na cidade comunitária em Oregon, nos anos 1980, relataram que eles tinham diplomas de quatro anos de faculdade. Uma proporção substancial destes samnyasis representavam o melhor e o mais brilhante da geração babyboom, que tinha sobressaído na faculdade e em suas carreiras subsequentes” (Goldman, 2011: 309). Em seu auge, cerca de seis mil devotos (samnyasis) viviam em Rajneeshpuram (Usborne, 1995: 03).
Rajneesh-Osho durante o passeio diário em um dos seus
96 Rolls Royces em Rajneeshpuram
            Logo após o início das atividades da comunidade, Rajneesh decidiu manter voto de silêncio por três anos, no entanto ele aparecia diariamente, sempre à tarde, em um passeio com um dos seus 96 Rolls Royces, por um trajeto já pré-estabelecido, acenando para os samnyasis, os quais se alinhavam na lateral da rua, com as mãos juntas em posição de reverência, diante da passagem do guru. Excetos em seus passeios diários nos automóveis de luxo, Rajneesh não era mais visto em público, delegando a liderança administrativa à Ma Amand Sheela, sua secretária particular. Naturalmente, uma comunidade tão extravagante como esta não poderia deixar de causar aborrecimentos aos vizinhos pacatos, o que gerou oposição por toda a redondeza, criando um clima de animosidade. O mais escandaloso evento aconteceu no Outono de 1984, quando Sheela e seus auxiliares recolheram cerca de 3 mil moradores de rua, na maioria homens, trouxeram-nos para a comunidade, transformaram-nos em eleitores, em uma tentativa de controlar os resultados das eleições do condado de Wasco, porém o monitoramento estadual de eleitores e o partido de oposição impediram a concretização do plano (Usborne, 1995: 02 e Goldman, 2011: 309-10).
            Logo após o fracasso do plano (1985), Sheela e seus auxiliares próximos fugiram para a Europa. Ela só foi presa em 1990, após extradição para os EUA (Usborne, 1995: 03). Então, assim que a comunidade desintegrou, Rajneesh voltou a falar publicamente acusando Sheela e sua turma de drogar samnyasis dissidentes, de grampo telefônico, de incêndio criminoso, de promover imigração ilegal, de tentativa de assassinato e de desfalque nas contas da comunidade. Ainda mais, em uma revelação chocante, Rajneesh publicamente afirmou que Sheela ordenou que alguns membros do círculo interno colocassem Salmonella (veneno) em uma dúzia de balcões de salada em restaurantes localizados no condado de Wasco, envenenando pelo menos 750 indivíduos. Este foi um teste para incapacitar um grande número de eleitores anti-Rajneesh no dia da eleição (Usborne, 1995: 02). Já, a cumplicidade de Rajneesh nestes crimes ainda não foi provada, logo sua culpa permanece uma dúvida (Goldman, 2011: 310). Em seguida ao colapso, Rajneesh também abandonou Rajneeshpuram e enfrentou uma experiência vergonhosa, pois viajou por mais de vinte países tentado refúgio, mas todos negaram seu visto, inclusive o Brasil, até que, finalmente, o governo da Índia aceitou recebê-lo. Então, ele se reestabeleceu no antigo ashram de Pune. Chegando lá, uma das primeiras iniciativas que fez foi, mais uma vez, alterar seu nome, desta vez para Osho, nome que manteve até sua morte em 1990. Em Janeiro de 1986, Rajneeshpuram foi colocada à venda, hoje o que funciona lá é o acampamento Young Life Camp, um retiro para jovens de propriedade de uma igreja cristã, algumas construções da época Rajneeshpuram foram aproveitadas, mas com alterações (Welch, 2003).
O espirito mercantil era dominante em Rajneeshpuram,
observe a mensagem da faixa ao fundo: "Não fique apenas
em pé aí, compre alguma coisa".
            Uma curiosidade no destino do movimento foi que, mesmo depois dos eventos criminosos nos EUA, inclusive com a prisão de Rajneesh-Osho e da sua secretária, Ma Amand Sheela, a organização continuou bem estabelecida e próspera em Pune, na Índia, onde, após algumas alterações estruturais, ela foi transformada em um retiro, magnificamente belo e luxuoso, que mistura centro espiritual com SPA para ricos, o Osho International Meditation Resort. O historiador da religião Hugh B. Urban analisa assim o destino do movimento: “Talvez o mais surpreendente aspecto do fenômeno Rajneesh não esteja tanto em sua carreira escandalosa na América, mas em sua notável apoteose e em seu renascimento após seu retorno à Índia. Um guru tântrico verdadeiramente global, Rajneesh fez a viagem da Índia à América e de volta à Índia novamente, para, finalmente, alcançar ainda mais sucesso na sua terra natal, em grande parte, por causa de seu status de figura que tinha um numeroso séquito nos EUA e na Europa. Mais incrível ainda foi que, os seus seguidores não foram capazes apenas de racionalizar o escândalo desastroso nos EUA, mas até mesmo de fazer de Rajneesh um mártir heroico, o qual tinha sido injustamente perseguido pelo governo imperialista e opressivo dos EUA” (Urban, 2003: 242). Enfim, por esta curta análise de H. Urban é possível se ter uma ideia do alto grau de fanatismo alcançado pelos seguidores de Rajneesh-Osho, ao ponto de não se incomodarem com os graves eventos criminosos ocorridos anteriormente. Mesmo assim, ele conseguiu renascer das cinzas após os escândalos, portanto é muito curioso notar como Rajneesh-Osho, ao longo da sua carreira, conseguiu atrair tantos seguidores ricos para seu séquito, ele parecia ser um imã de dinheiro.
            Marion Goldman, que esteve em Rajneeshpuram e se tornou hoje uma das principais pesquisadoras do Rajneeshismo, explica assim a sobrevivência e o posterior sucesso do movimento, mesmo após os escândalos nos EUA. “É possível distinguir o progresso no Movimento Osho e sua sobrevivência contínua, embora com uma diluída autoridade central e uma amorfa influência cultural. Primeiro, Rajneesh desprezou Sheela, atribuindo todos os crimes e dificuldades a ela e aos seus auxiliares. Segundo, o movimento desocupou o local da maior controvérsia, dispersou seus membros para outros centros e reivindicou suas sedes originais longe da cidade comunitária abandonada em Oregon. Terceiro, Rajneesh renomeou a si mesmo, o movimento, e as suas sedes. Quarto, ele criou um conselho para cuidar das obrigações organizacionais. Quinto, ele e o círculo interno, que governou após sua morte, redefiniu o movimento como um movimento de meditação e de desenvolvimento pessoal instruído pela filosofia de Osho, Finalmente, após a morte de Osho, o movimento reenfatizou e reforçou seu foco na difusão organizacional, inclusive espiritualidade” (Goldman, 2004: 134). Da explicação acima é possível perceber que, mais do um sincero instrutor espiritual, Rajneesh-Osho foi um esperto ‘empresário espiritual’, cuja esperteza foi passada para seus sucessores, daí o contínuo sucesso financeiro do movimento até hoje.

Os ensinamentos

            Muitos samnyasis (renunciantes), seguidores de Rajneesh-Osho, o caracterizaram como uma mistura de louco, salvador, charlatão e santo (Goldman, 2004: 122). Estritamente falando, em si mesmos, os ensinamentos de Rajneesh-Osho não eram originais, melhor dizendo, eles foram extraídos de uma diversificada mistura de diferentes fontes, sobretudo, Tantra, Yoga, Zen, Sufismo, Budismo, Taoismo, Hassidismo, bem como de pensadores, de instrutores e de autores mais recentes: Nietzsche, Gurdjieff, Crowley, Krishnamurti e de ideias dos movimentos Contracultura e New Age. Hugh B. Urban resumiu assim: “Mais do que promover uma religião no sentido convencional, Rajneesh ensinou uma marca de espiritualidade radicalmente iconoclasta, uma filosofia antinomiana e um anarquismo moral.
Como uma religião ‘sem religião’, ou anti religião, a religião dele era o caminho além da moralidade convencional, além do bem e do mal, e fundada na explícita rejeição de todas as tradições, de todos os valores e de todas as doutrinas. ‘Moralidade é uma moeda falsa, ela engana as pessoas’ ele advertia. ‘Um homem de real compreensão não é nem bom nem mal.
A prática da Medição Dinâmica em Rajneeshpuram, os
praticantes foram instruídos a praticá-la com roupas, 
em razão da presença de fotógrafos, porém observe que 
alguns poucos estão nus.
Ele transcende ambos’. Para Rajneesh, a causa de todos os nossos sofrimentos é a deformante socialização ou o processo de programação de indivíduos pelas instituições culturais, tais como família, escola, religião e governo. Todas as metanarrativas e teorias predominantes sobre o universo são apenas ficções, criações imaginárias usadas por aqueles no poder para dominar as massas. A liberdade só pode ser alcançada através da desprogramação de tais narrativas, libertando-se das limitantes estruturas do passado. As pessoas devem ser desprogramadas e deshipnotizadas. ‘Vocês são programados pela família, pela educação e pelas instituições. Sua mente é como um quadro negro, no qual as regras estão escritas. Bhagavan escreve novas regras sobre o quadro negro. Ele diz a vocês uma coisa e em seguida o oposto que também é verdadeiro. Ele escreve e escreve no quadro negro da sua mente, até que ela se torne um quadro branco. Então, vocês não terão mais nenhum vestígio de programação nas suas mentes’” (Urban, 2003: 239). Ele tinha um estilo jocoso de criticar: “Vocês certamente sofreram uma lavagem cerebral, eu uso uma máquina de secar. E o que há de errado em sofrer uma lavagem cerebral? Lave seu cérebro todos os dias, mantenha-o limpo. Ele é apenas uma lavanderia religiosa de atualização” (Urban, 2003: 329).
Em razão de palestrar quase sempre e de escrever tanto, e tão afoitamente, os seus ensinamentos são flagrantemente contraditórios. Tanto que, até ele mesmo reconhecia e procurou se justificar: “Por que eu digo contradições? Eu não estou ensinando filosofia aqui. O filósofo precisa ser muito consistente, perfeito, lógico e racional. Eu não sou um filósofo. Eu não estou aqui dando para vocês um dogma consistente ao qual vocês podem se prender. Meu inteiro esforço é dar a vocês uma ‘não-mente’” (Urban, 2003: 241). Sendo assim, torna-se difícil sistematizar os ensinamentos de Rajneesh-Osho, ou seja, escrever um compêndio ou um manual sistematizado de suas doutrinas parece ser uma tarefa complicada. Ou como David G. Bromley e Susan J. Palmer explicam: “Rajneesh desenvolveu um complexo conjunto de ideias que desafia a elaboração de um simples resumo, porque Rajneesh acreditava na prioridade da experiência sobre as ideias e que o mundo incorpora inconsistência e um inter-relacionamento dinâmico de opostos” (Bromley, 2007: 140).
Enfim, ao mesmo tempo em que a sua sortida mistura de doutrinas religiosas atraiu muitos admiradores e seguidores, outros intérpretes a consideram uma deformação de todas estas doutrinas. Enquanto que, para os céticos, o Movimento Rajneesh-Osho foi mais um surto de religiosidade do século XX, com uma nova formatação e um novo arranjo, para atrair os crédulos, em uma época e para um público escolarizado que, cada vez mais, tornava-se secular, portanto na contra mão do sentido das sociedades com melhor qualidade de vida e dos indivíduos mais esclarecidos respectivamente.

O guru do sexo

Embora não fosse tudo, o elemento sexual era uma ênfase nas ideias e nas práticas do movimento, daí que Rajneesh-Osho ficou conhecido como o “guru do sexo” (Urban, 2003: 235s). Para o historiador H. Urban, quanto ao Tantra, “a versão de Rajneesh-Osho é a transformação em mercadoria e a comercialização da tradição” (Urban, 2003: 236). A prática da sua ‘meditação dinâmica’ é entendida, por muitos de fora do movimento, como uma orgia sexual.
A Meditação Dinâmica no ashram em Pune, Índia,
nos anos 1970, a desinibição fazia parte do
treinamento espiritual.
Para este pesquisador, Rajneesh-Osho “foi um dos primeiros indianos a viajar para a América e importar sua própria marca de ‘neo-tantrismo’, vendida para a cultura consumidora americana no final do século XX”. O que ele fez foi uma “transformação do sexo em mercadoria”, bem como uma “espécie de transformação do êxtase em mercadoria”. Para este historiador das religiões, ele foi “o mais notável guru do sexo do século XX”. E mais, “Rajneesh oferecia tudo que os ocidentais imaginavam que o Tantra fosse: um culto de amor livre que prometia a iluminação, uma excitante comunidade radical. Rajneesh encaminhou-se confortavelmente para o papel de Messias do Tantra. Em grande parte por causa de Rajneesh, o Tantra ressurgiu como um culto New Age nos anos 1970 e 1980” (Urban, 2003: 237).
Rajneesh definia e interpretada o Tantra assim: “O Tantra é a suprema ‘não religião’ ou ‘antireligião’, uma prática espiritual que não exige ritual e moralidade rigorosa, mas, ao invés disto, livra o indivíduo de tais repressões. O Tantra é liberdade – liberdade de todos os construtos mentais, de todos os jogos mentais, o Tantra é libertação. O Tantra não é religião. Religião é um jogo da mente. O Tantra descarta todas as disciplinas” (Urban, 2003: 239-40). Rajneesh dizia: “O Tantra é rebelde. Eu não o chamo de revolucionário, porque não existe nada de político nele. É uma rebelião individual. É uma escapulida individual das estruturas e da escravidão. O futuro é esperançoso. O Tantra se tornará cada vez mais importante...” (Urban, 2003: 240).
No mais forte contraste com as instituições sociais estabelecidas, o Tantra não nega a vida e o corpo, melhor dizendo, ele é a suprema afirmação da paixão, fisicamente, do prazer. Ele é a suprema religião ‘apenas faça-o’, que celebra a vida em toda sua transitoriedade e contingência: o Tantra aceita tudo, vive tudo. Rajneesh-Osho declarava: “Isto é o que o Tantra diz: o Caminho Majestoso – comporte-se como um rei, não como um soldado. O Tantra celebra a natureza humana em suas dimensões mais defeituosas, fracas e mesmo aparentemente perversas. Se você é ganancioso, seja ganancioso, não se importe com a ganância”. E mais; “a aceitação tântrica é total, ela não separa você. Todas as religiões do mundo, exceto o Tantra, têm criado personalidades divididas, têm criado esquizofrenia. Elas dizem que o bem tem que ser alcançado e o mal negado, e que o demônio tem de ser negado e deus aceito. O Tantra diz que uma transformação é possível. A transformação vem quando você aceita o seu ser total. O ódio é absorvido, a cobiça é absorvida” (Urban, 2003: 240).
Fotos policiais de Rajneesh-Osho e de sua secretária Ma
Anand Sheela
Sobretudo, o Tantra gira em torno do sexo, um poder que é, ao mesmo tempo, a mais intensa força na natureza humana e também a mais severamente distorcida pela sociedade ocidental. Porque o Ocidente Cristão Tradicional suprimiu a sexualidade, Rajneesh-Osho argumentava: “é a sexualidade que deve ser libertada se os discípulos modernos desejarem atualizar completamente seu eu interno. A repressão cristã tem criado muitos bloqueios no homem, onde a energia se tornou encolhida dentro de si mesma, se tornou estagnada, não é mais atuante. A sociedade é contra o sexo, ela criou um bloqueio...”.
Em oposição à atitude ocidental que nega a vida, o Tantra é o caminho que aceita tudo, sobretudo, o impulso sexual. Como o poder mais forte na natureza humana, o sexo torna-se a energia espiritual mais forte quando é plenamente integrada e absorvida. De modo que, muitas práticas ensinadas por Rajneesh-Osho envolviam sexo grupal. “Terapias intensivas”, tal como ele as chamava, as quais eram efetuadas para realizar uma catarse seguida pela transformação da consciência. Assim, o supremo objetivo das práticas tântricas é precisamente alcançar esta plena autoaceitação, amar a nós mesmos intensamente e completamente, com todos os nossos pecados, vícios, cobiças e desejos sexuais, e reconhecer que nós já somos perfeitos. Nas palavras de Rajneesh-Osho: “Esta é a coisa mais fundamental no Tantra, isto é, você já é perfeito... A perfeição não tem de ser alcançada. Ela simplesmente precisa ser percebida, uma vez que ela já está aí, O Tantra oferece a você a iluminação aqui e agora, sem prazo, sem adiamento...” (Urban, 2003: 240-41).
Antes de terminar este estudo, é preciso esclarecer que esta interpretação do Tantra de Rajneesh-Osho é extremamente controvertida. Nem todos os intérpretes admitem que o Tantra seja tão focado no sexo. Ademais, o Tantrismo é uma tradição multiplamente dividida em distintas correntes (hindu, budista, jainista, lamaísta, Shingon, etc.), a qual, mesmo dentro de cada uma destas correntes, desdobra-se em inúmeras subdivisões, portanto a versão deste extravagante e manipulador guru tântrico acima é mais uma dentre tantas muitas outras (Kaviraj, 1966; Waddell, 1972; Chattopadhyaya, 1978; Bhattacharyya, 1987; Urban, 2003 e Einoo, 2009).
           

Obras consultadas

BHATTACHARYYA Benoytosh. An Introduction to Buddhist Esoterism. Delhi: Motilal Banarsidass Publishers, 1989.
BHATTACHARYYA, N. N. History of the Tantric Religion. New Delhi: Manohar Publications, 1987.
BROMLEY, David G. (ed.). Teaching New Religious Movements. London/New York: Oxford University Press, 2007, 140s.
BRUCE, Steve. Religion in the Modern World: From Cathedrals to Cults. Oxford: Oxford University Press, 1996, p. 178s.
CHATTOPADHYAYA, Sudhakar. Reflections on the Tantras. Delhi: Motilal Banarsidass Publishers, 1978.
EINOO, Shingo (ed.). Genesis and Development of Tantrism. Tokyo: University of Tokyo, 2009.
GOLDMAN, Marion. When Leaders Dissolve: Considering Controversy and Stagnation in the Osho Rajneesh Movement em Controversial New Religions. James R. Lewis (ed.). London/New York: Oxford University Press, 2004, p. 119-37.
_________________ Cultural Capital, Social Networks and Collective Violence at Rajneeshpuram em Violence and New Religious Movements. James R. Lewis (ed.). London/New York: Oxford University Press, 2011, p. 307-23.
KAVIRAJ, Gopinath. Aspects of Indian Thought. Burdwan: The University of Burdwan, 1966, p. 175-240.
KING, Richard and Jeremy Carrette. Selling Spirituality: The Silent Takeover of Religion. London/New York: Routledge, 2004, p. 153-8.
NAGARAJ, Anil Kumar. Osho, Insights on Sex em Indian Journal of Psychiatry, vol. 55, issue 06, January 2013, p. 268s.
OSHO. Tantra: The Supreme Understanding. Osho International Foundation, 1st edition 1975; online edition 2010a
______ Tantric Transformation. Osho International Foundation, 1st edition 1977; online edition 2010b.
----------- Christianity: The Deadliest Poison and Zen, The Antidote to all Poisons. Osho International Foundation. 1st edition 1989; online edition 2010c.   
SALIBA, John A. Psychology and the New Religious Movements em The Oxford Handbook of New Religious Movements. James R. Lewis (ed.). London/New York: Oxford University Press, 2004, p. 323-32.
SANDERSON, Alexis. The Saiva Age em Genesis and Development of Tantrism, Shingo Einoo (ed.). Tokyo: Unversity of Tokyo, 2009, p. 41-349.
URBAN, Hugh B. Tantra: Sex, Secrecy Politics and Power in the Study of Religion. Berkeley: University of California Press, 2003.
USBORNE, David. Strange Days When the Guru Came to Town em The Independent, London: July 27, 1995, p. 2-3.
WADDELL, L. Austine. Tibetan Buddhism, With Its Mystic Cults, Symbolism and Mythology. New York: Dover Publications, 1972.
WELCH, Bob. Rajneeshees’ Ranch Still a Spiritual Mecca. Eugene (Oregon): The Register Guard, May 29, 2003, p. D-1.


Websites:
Osho International Institute: www.osho.com
Osho International Meditation Resort: http://www.osho.com/Main.cfm?Area=medresort
Osho talks: http://osho.tv/