quinta-feira, 14 de março de 2013

|ESTUDO| A Nova Imagem de Maria Madalena e a Rivalidade com o Apóstolo Pedro


Octavio da Cunha Botelho

Gravura reproduzindo o episódio da pecadora arrependida
           Ela foi identificada com a pecadora arrependida na passagem de Lucas 07:36-50, depois conjeturalmente interpretada como prostituta, ainda nos primeiros séculos do Cristianismo. A oficialização aconteceu através da Homilia XXIII do papa Gregório, o Grande, em Setembro de 591 e.c. (Schlumpf, 2000: 12). Entretanto, em nenhuma passagem dos evangelhos canônicos ela é explicitamente mencionada como uma prostituta. Mesmo assim, esta imagem equivocada perdurou por mais de 15 séculos, deixando, durante este período, uma definitiva influência na literatura, nas artes e até no cinema do século XX.  Filmes recentes como A Última Tentação de Cristo de Martin Scorsese e A Paixão de Cristo de Mel Gibson, o musical Jesus Superstar de Andrew Lloyd Webber e o livro O Evangelho Segundo Jesus Cristo de José Saramago ainda a representam como uma prostituta. Entretanto, como será visto mais adiante, esta identificação nunca foi uma unanimidade no Cristianismo. Em certas correntes, por exemplo, ela é elogiada como a “apóstola dos apóstolos” (apostola apostorum), em virtude da sua privilegiada tarefa de levar a mensagem da ressurreição de Jesus aos outros apóstolos (D’Angelo, 1999, 106).
            Karen L. King esclarece: “A redescoberta do Evangelho de Maria agora fornece direta evidência dos argumentos do Cristianismo inicial em favor da liderança de mulheres, e nos permite ver que as opiniões que excluíam mulheres eram nada menos que um lado de uma questão ardentemente debatida” (King, 1993: 601). De modo que, o breve estudo abaixo mostrará como a imagem de Maria Madalena vem sendo apagada e, simultaneamente, restaurada com outras formas e com outro colorido pelos historiadores, sobretudo após a descoberta da coleção de textos gnósticos em Nag Hammadi, em 1945, a qual lançou uma nova luz sobre a história inicial do Cristianismo, e a partir do mais cuidadoso exame dos próprios evangelhos canônicos.

O poder da descoberta
           
Dentre as incontáveis derrotas que a Religião sofreu, ao longo da história, em seu confronto com as inovadoras concepções científicas, a descoberta tem sido um dos fatos que golpeou mais fortemente as tradicionais doutrinas religiosas. Um achado, em virtude da concretude da prova, é capaz de calar, quando contradiz, dezenas de profecias, de inspirações, de teorias e de especulações. Assim, dentro do mundo da cultura cristã, a descoberta da coleção de códices de textos gnósticos, nos arredores da aldeia de Nag Hammadi, Egito, em 1945, convocou os historiadores a repensarem a história inicial do Cristianismo. Trata-se de uma coleção de escritos do século IV e.c., tão extensa que alguns autores a denominam de Biblioteca de Nag Hammadi (Robinson, 2007), de 13 códices (volumes encadernados), cuidadosamente encapados em couro, e mais 52 textos avulsos, muitos encontrados em bom estado de conservação, após cerca de 1.500 anos soterrados. Excluindo os tratados em duplicidade, são 45 trabalhos em língua copta, alguns até então desconhecidos, porém outros já conhecidos anteriormente, na íntegra ou em fragmentos, embora não inclua alguns importantes textos gnósticos, tais como o Pistis Sophia e o Evangelho de Judas.
Os códices de Nag Hammadi, Egito, uma das mais
fantásticas descobertas arqueológicas do século XX
Os efeitos culturais e históricos desta descoberta, apesar de ainda estarem em curso, já provocaram muitas alterações nas mentes dos historiadores. O primeiro efeito foi o reconhecimento do novo panorama de que, a partir da descoberta desta extensa coleção de textos, não é mais prudente estudar o Cristianismo sem levar em conta a imensa quantidade de textos apócrifos disponíveis na atualidade, uma vez que o número destes últimos é muito maior que o dos textos do Novo Testamento; confirmando, assim, a suposição dos historiadores de que, na época do Concílio de Nicéia, em 325 e.c., existiam mais de 50 evangelhos diferentes.

A versão conforme o interesse da comunidade

Outro efeito foi a confirmação de que, tal como alguns já supunham, os evangelhos, tanto canônicos como apócrifos, foram escritos, algumas décadas após a morte de Jesus por autores desconhecidos, com o determinado objetivo de atender às agendas e aos programas de doutrinação e de propaganda das diferentes comunidades cristãs, muitas delas ideologicamente rivais entre si, enfim, para atender as necessidades, os interesses e as preocupações da época e de certas localidades. Nas palavras de Mary R. D’Angelo: “a imagem de Jesus em si varia muito entre os evangelhos. Os escritores dos evangelhos procuraram reapresentar Jesus para fazê-lo novamente presente e ativo nas comunidades para quem eles escreviam. (...) Assim, o Jesus dos evangelhos atua e fala para as comunidades do fim do primeiro século e do início do segundo século. Os ditos de Jesus foram revisados para se ajustarem as suas necessidades, e as perguntas e as objeções, que são colocadas a ele, frequentemente articulam as questões que as comunidades estavam confrontando” (D’Angelo, 1999: 106).
O estudo seguinte mostrará uma ocorrência que é comum na composição dos textos religiosos, isto é, a de que os compositores e os compiladores destes escritos não são historiadores, mas sim adeptos e admiradores, portanto não se preocupam em narrar os fatos fielmente tal como eles acontecem na realidade. Com efeito, a prioridade da composição ou da compilação religiosas é transmitir o que a agenda ou o programa de doutrinação e de propagada de uma religião emergente deseja que o ouvinte ou o leitor acredite. Por isso, as composições estão sempre carregadas de pretensões persuasivas, exortativas e catequéticas, bem como as narrativas recheadas de mitos e de ficções. Enfim, o mais importante é a persuasão, isto é, para os religiosos em geral, a verdade é o convencimento e a crença, e não a realidade em si mesma. Em outras palavras: se convenceu, então basta, é verdade.

A confusão de Marias nos Evangelhos Canônicos

            O nome Maria parece ter sido muito popular na época de Jesus. As Marias mencionadas nos evangelhos canônicos são:
- Maria de Nazaré, a mãe de Jesus
- Maria da Betânia, a irmã de Marta e Lázaro (Lucas 10:38-42 e João 12:03-11)
- Maria Madalena (Lucas 8:02; Marcos 15:40 e 47, e 16:01)
- Maria, a esposa de Cléofas (João 19:25)
- Maria, mãe de José (Marcos 15:47)
- Maria, mãe de Tiago (Marcos 16:01)
- Maria, mãe de Tiago e de José (Marcos 15:40), às vezes duvidosamente identificada com a Mãe de Jesus (Marcos 6:03)
- a outra Maria, mencionada em Mateus 28:01
- Salomé, depois conhecida como Maria Salomé nas lendas medievais (Marcos 15:40 e 16:01) e
- a pecadora arrependida, identificada depois no Cristianismo Ocidental com Maria Madalena (Lucas 7:36-50).
Maria da Betânia ungindo os pés de Jesus, ela
também foi confundida com Maria Madalena
            Excluindo Maria, mãe de Jesus, a identificação e a distinção de uma Maria com outra, nas passagens dos Evangelhos Canônicos, dependem, em muitos casos, de interpretações, muitas vezes conjeturais, em vista da imprecisão e da vagueza das citações. Ademais, as interpretações variam conforme as diferentes correntes do Cristianismo. Por exemplo, o Catolicismo Ocidental identificou Maria Madalena com a pecadora arrependida, a qual chorou aos pés de Jesus e enxugou-lhes com os seus cabelos, bem como os beijou e os ungiu com bálsamo, numa passagem que aparece apenas em Lucas 7:36. Esta identificação pode ter sido motivada pelo fato de que no capítulo seguinte, Maria Madalena, de quem Jesus expulsou sete demônios, é incluída, logo em seguida, como uma de suas companheiras (Lucas 8:02). Ela foi também vista como uma prostituta arrependida pelo Catolicismo Europeu. Identificou-se Maria Madalena também com Maria da Betânia, irmã de Marta e de Lázaro, que pode ser acontecido em razão da semelhança do episódio da pecadora arrependida (Lucas 7:36-50) com a passagem na qual Maria da Betânia, irmã de Marta e de Lázaro, durante um jantar em sua casa, tomou um vaso de bálsamo e “ungiu os pés de Jesus e os enxugou com os seus cabelos” (João 11:02 e 12:03). Em uma lenda denominada “O Nascimento da Abençoada Virgem Maria”, que circulou pela Idade Média, Maria Salomé é identificada com Maria, a mãe de Tiago e de José (De Voragine, 2012: 536). Outras intérpretes pensam que Maria Madalena foi uma espécie de ‘bode expiatório’, isto é, “ela é a essência composta de muitas outras mulheres que possuem o nome de Maria, e os atos e crimes de mais de uma Maria foram atribuídos a ela” (Rushing, 1994: 45).
            O Cristianismo Ortodoxo do Oriente nunca aceitou a identificação de Maria Madalena com a pecadora arrependida ou a prostituta penitente. Nesta vertente, ela sempre foi vista como uma virtuosa companheira de Jesus, a qual, juntamente com outras, lhe assistia em suas despesas e lhe acompanhava nas viagens (Lucas 8:01-04).

Maria Madalena nos evangelhos canônicos

            Pouco mencionada nos trechos iniciais dos quatro evangelhos, apenas em Lucas 8:02, ela torna-se personagem proeminente nos episódios da crucificação, do sepultamento e da ressurreição de Jesus, bem como foi encarregada do anúncio da ressurreição aos apóstolos. Enquanto os apóstolos tinham se escondido, temendo serem aprisionados pelos soldados romanos, (Pedro negou Jesus três vezes de tanto medo), ela, por sua vez, estava corajosamente no pé da cruz de Jesus, acompanhada de outras mulheres, durante a crucificação (Mateus 27:56; Marcos 15:40 e João 19:25). Também, acompanhou o ato de sepultamento (Mateus 27:61 e Marcos 15:47). E, foi a primeira a testemunhar a tumba vazia e o evento da ressurreição (Mateus 28:01; Marcos 16:01 e João 20:01). Mais ainda, foi a primeira a ver Jesus ressuscitado (Mateus 28:09; Marcos 16:09 e João 20:11-17) e encarregada por ele de anunciar a sua ressurreição aos apóstolos (Mateus 28:08-10 e João 20:14-18). Depois destes episódios, os quatro evangelhos silenciam-se sobre Maria Madalena.
Maria Madalena reproduzida como
a prostituta arrependida 
            Aqui começa o tratamento das questões polêmicas deste estudo. O motivo para o silêncio é apontado pelos críticos, sobretudo as feministas, como uma tentativa de encobrir a proeminência de Maria Madalena entre os companheiros e companheiras de Jesus, por parte dos autores dos relatos e dos compiladores da corrente patriarcal, no momento da composição dos evangelhos que, no futuro, se tornariam canônicos. Segundo alguns intérpretes, as mulheres podem ter tido posição de destaque no ministério e sido apóstolas de Jesus (D’Angelo, 1999: 106). Em virtude do encobrimento e da manipulação textual, as pistas para tal condição são difíceis de serem percebidas nos evangelhos canônicos e um exemplo de manipulação, dentre tantos outros, é apontado pelas feministas nos doze versos finais do Evangelho de Marcos. Este é considerado pela maioria dos pesquisadores como o primeiro a ser composto, talvez logo após a queda do Segundo Templo, em 70 e.c., portanto cerca de 40 anos após a morte de Jesus (D’Angelo, 1999: 106), e serviu de base para a composição dos evangelhos de Mateus e de Lucas (Ehrman, 2006: 145-6). A pesquisa da Crítica Textual tem revelado que o Evangelho de Marcos, o mais antigo, originalmente terminava em 16:08, portanto os doze últimos versos (16:09-20) são acréscimos posteriores por copistas e por revisores dos manuscritos na Antiguidade. Segundo Bart D. Ehrman, estes “versículos estão ausentes em dois de nossos mais antigos e melhores manuscritos do Evangelho de Marcos, além de ausentes em outros importantes testemunhos; o estilo de escrita é diferente do estilo que encontramos em todo o restante de Marcos; a transição entre essa passagem e a anterior é de difícil entendimento (por exemplo, Maria Madalena é apresentada no versículo 9 como se ainda não tivesse sido mencionada, mesmo tendo sido discutida nos versículos anteriores; há mais um problema com o grego que faz a transição ainda  mais complicada); e há um grande número de palavras e frases na passagem que não são encontradas em nenhum outro lugar em Marcos. Em suma, as evidências são suficientes para convencer quase todos os pesquisadores textuais de que esses versículos são um acréscimo a Marcos” (Ehrman, 2006: 77).
            Ehrman aponta o motivo para o acréscimo deste apêndice sumário no Evangelho de Marcos (16:09-20) ao fato do seu final parecer abrupto demais e que o deixava sem conclusão, permanecendo as dúvidas se os discípulos nunca souberam da ressurreição, se Jesus nunca apareceu para eles, etc. Para resolver o problema os copistas acrescentaram um fim (Ehrman 2006: 77). Por outro lado, as intérpretes feministas atribuem o motivo da inclusão deste apêndice sumário ao fato de que, sem ele, ficaria para a posteridade a ideia de que o Jesus ressuscitado apareceu somente para as mulheres, deixando os apóstolos numa posição desprivilegiada, bem como favorecendo as comunidades rivais que apoiavam o apostolado feminino. Sandra M. Rushing vai mais longe ao afirmar que “a história de Maria Madalena foi distorcida, criando a maior falsificação histórica do Ocidente, em favor do patriarcalismo, a qual teve a maior influência no lugar da mulher na Igreja” (Rushing, 1994: 46).
Ela foi a primeira a encontrar a tumba vazia
             Feministas procuram encontrar passagens nos evangelhos canônicos que podem desvelar o fato de que mulheres exerceram papéis de apóstolas e até de líderes no círculo de Jesus (D’Angelo, 1999: 105-28). Porém, as pistas são muito imprecisas e problemáticas, sobretudo se, de fato, os autores dos evangelhos canônicos eram partidários da cultura patriarcal, daí procuram encobrir, o máximo possível, as posições proeminentes das mulheres, para então não favorecer as alegações rivais que proclamavam o ministério feminino no apostolado. Dentre as muitas pistas apontadas por Mary R. D’Angelo, está o significado da palavra grega diakoneo, geralmente traduzida como “tendo servido”, no sentido de assistir, ajudar ou servir, em Marcos 15;41; mas que feministas interpretam como uma tarefa de ministério (grego: diakonia, latim: ministerium), tal como em Lucas 10:40, alegando assim que mulheres foram apóstolas de Jesus, e não apenas o serviam e o suportavam em suas despesas Lucas 8:01-3). Esta autora vai mais longe ao afirmar que “é possível que João 20:19-31 foi acrescentado precisamente para eliminar a impressão de que a definitiva interpretação da partida de Jesus foi dada apenas através de uma mulher. Ainda mais notadamente, o apêndice ao evangelho, o qual foi provavelmente suprido por um membro tardio da comunidade, especificadamente para definir os relativos papéis de Pedro e o discípulo amado, não menciona Maria Madalena” (D’Angelo, 1999: 112).

Maria Madalena nos textos gnósticos

            Se nos evangelhos canônicos as referências ao apostolado feminino e a proeminência de Maria Madalena são omitidas, ou talvez muito vagas, nos evangelhos gnósticos estas menções são abundantes e explícitas. No Evangelho de Felipe, por exemplo, é mencionado que “a companheira de [Jesus é] Maria Madalena. [Ele] amava ela mais que a todos os discípulos...”. Logo em seguida os discípulos perguntam a Jesus: “Por que tu a amas mais do que a todos nós? O Salvador respondeu a eles: Por que eu não vos amo como ela? Quando um cego e aquele que vê estão juntos na escuridão, eles não são diferentes um do outro. Quando vem a luz, então aquele que vê verá a luz, e aquele que é cego permanecerá na escuridão” (Ehrman, 2003: 42 e Isenberg, 2007: 134).
Gravura reproduzindo Maria Madalena
pregando
            No Pistis Sophia, outro texto gnóstico em forma de diálogo entre Jesus e seus discípulos, das 64 perguntas, 39 foram feitas por mulheres, incluindo uma Maria e uma Marta (talvez a irmã de Maria da Betânia), que a maioria dos intérpretes identifica com Maria Madalena, demonstrando que as mulheres não eram apenas ajudantes e sustentadoras das despesas de Jesus, tal como nos evangelhos canônicos, mas também participavam ativamente no ensinamento e no apostolado. Dentre outras menções e elogios, Maria é assim elogiada por Jesus neste texto: “Maria, tu a abençoada, quem eu aperfeiçoei em todos os mistérios das alturas (...), tu, cujo coração ascendeu ao reino do céu mais que todos os teus irmãos” (Capítulo 17 – Mead, 1921: 20) e mais adiante: “Bem dito Maria, pois tu és abençoada ante todas as mulheres na Terra, porque tu deves ser a plenitude de todas as plenitudes e a perfeição de todas as perfeições” (Capítulo 19 – Mead, 1921: 22).



A proeminência de Maria Madalena e a rivalidade com Pedro

            Alguns textos gnósticos são transparentes quanto à proeminência de Maria Madalena e à resultante rivalidade com os apóstolos, sobretudo com Pedro. Daí que é possível conhecer as tensões ocorrentes nas comunidades emergentes. Um exemplo pode ser visto no parágrafo 114 do Evangelho de Tomé (encontrado em Nag Hammadi), onde Simão Pedro diz a Jesus: “Permite que Maria nos deixe, pois as mulheres não são dignas da vida”. Em seguida a estranha resposta de Jesus: “Eu mesmo devo guiá-la para fazer dela um homem, para que ela também possa se tornar um espírito vivo semelhante a vós homens. Pois, cada mulher que fizer dela mesma um homem, entrará no reino do céu” (Ehrman, 2003: 28 e Lambdin, 2007: 125). Neste mesmo evangelho, o qual é em forma de diálogo com os discípulos, Maria participa com uma pergunta no parágrafo 21 (Ehrman, 2003: 22 e Lambdin, 2007: 118). Sandra M. Rushing resume: “Dos relatos no Evangelho de Tomé, no Evangelho de Felipe e no Evangelho de Maria, torna-se evidente que Pedro, de todos os discípulos, foi o mais ofendido com o especial relacionamento de Maria Madalena com Jesus” (Rushing, 1994: 52).

O Evangelho de Maria

            Estritamente falando, o Evangelho de Maria já era conhecido antes da descoberta do manuscrito copta em Nag Hammadi, no ano de 1945, através de dois fragmentos de manuscritos em grego do terceiro século e.c., com apenas uma página cada um (Ehrman, 2003: 35). Karen L. King fala de outro fragmento copta que foi comprado no Cairo por Carl Schmidt e trazido para Berlim em 1896, depois publicado por Walter Till em 1955. Ela observa também que existem consideráveis diferenças entre as versões grega e copta deste evangelho (King, 1993: 602 e 2007: 442). O manuscrito encontrado na coleção de Nag Hammadi também está fragmentado, das 18 páginas, apenas 8 estão preservadas, estão faltando as páginas 01-06 e 11-14. Pesquisadores afirmam que a versão copta é uma tradução de um texto originalmente composto em grego no século II e.c. (Ehrman, 2003: 35 e King, 2007: 442).
Apesar da falta, o restante do texto é intrigante, uma vez que mostra Maria, que a maioria dos pesquisadores aponta ser Maria Madalena (em nenhum trecho o nome Madalena é mencionado), numa posição de destaque e até mesmo de liderança entre os apóstolos, a quem Jesus revelou ensinamentos secretos que foram ocultados dos outros discípulos. Por isso, na página 10, Pedro solicita à Maria “Irmã, nós sabemos que o Salvador amava a ti mais que a todas as mulheres. Diga-nos as palavras do Salvador que mais te recordas – as quais tu sabes, mas nós não sabemos, nem ouvimos falar delas”. Em seguida Maria responde: “O que a vós está oculto, eu vos proclamarei”. Então, ela passa a descrever uma visão que teve de Jesus. (King, 1993: 611-2; MacRae, 2007: 443, Erhman, 2003: 36). A prática de transmitir ensinamentos secretos é habitual no Gnosticismo, por exemplo, no Evangelho de Judas, outro texto gnóstico, mas que não foi encontrado em Nag Hammadi, Judas é um discípulo de confiança de Jesus que recebe instruções secretas, por isso é encarregado de entregá-lo às autoridades. Este evangelho termina neste episódio, portanto os episódios da prisão, do julgamento, da crucificação, do sepultamento e da ressurreição são omitidos (Meyer, 2006).
A atriz Monica Bellucci no papel de Maria
Madalena em cena de A Paixão de Cristo
Como mencionado na página 9, o Evangelho de Maria é um dialogo pós-ressurreição de Jesus com seus discípulos, ou seja, mais uma aparição aos apóstolos. Mais do que em qualquer outro texto cristão, neste a proeminência e o privilégio de Maria Madalena são explícitos. No entanto, estas prerrogativas não eram aceitas e recebidas com simpatia por todos os apóstolos, de modo que este evangelho reproduz as tensões e os conflitos da época. O clima se agrava a partir da página 17 quando, logo após o relato de Maria da sua visão e dos ensinamentos recebidos de Jesus, André a contesta da seguinte maneira: “Dizei o que desejeis dizer sobre o que ela disse. Eu pelo menos não acredito que o Salvador disse isto. Pois, certamente, esses ensinamentos são ideias estranhas”. Em seguida, Pedro entra na discussão e questiona: “Ele realmente falou com uma mulher sem o nosso conhecimento e não abertamente conosco? Vamos todos mudar de posição e ouvi-la? Ele preferiu a ela a nós?” Então Maria lamentou e disse a Pedro “Meu irmão Pedro, o que pensas? Tu crês que eu mesma inventei essas coisas no meu coração, ou que esteja mentindo sobre o Salvador?” Daí Levi interfere para acalmar o clima: “Pedro, tu sempre foste o exaltado. Agora eu te vejo opondo a uma mulher como adversários. Mas se o Salvador a fez digna, quem és tu de fato para rejeitá-la? Certamente o Salvador a conhece muito bem. Por isso ele a amava mais do a nós” (King, 1993: 613-7; Ehrman, 2003: 37 e MacRae, 2007: 444).
Bem, o bate boca acima reflete algumas das tensões do Cristianismo do século II, no qual Pedro e André representam as posições ortodoxas que negam a validade da revelação esotérica e rejeitam a autoridade da mulher no ensinamento. O Evangelho de Maria ataca ambas as posições de frente por meio da figura de Maria Madalena. Ela é a amada do Salvador, possuidora do conhecimento secreto e do ensinamento superior àqueles da tradição apostólica pública.

Reflexão final

            Enquanto os cristãos, os teólogos e as feministas discutem qual posição dever ser a verdadeira, ou seja, se Maria Madalena realmente teve uma posição de liderança no apostolado ou não, para o pesquisador é difícil tomar uma decisão quanto a qual lado se inclinar. O que é possível dizer com absoluta certeza é apenas que os textos cristãos, tanto canônicos como apócrifos, foram compostos cercados de um clima de rivalidade e de conflito ideológico, que influenciou determinantemente nas escolhas dos relatos e dos ensinamentos de Jesus, para atender à agenda doutrinária da comunidade a qual pertencia o compositor ou o compilador do texto. Enfim, não é prudente confiar totalmente em nenhum dos lados, tal como os cristãos têm feito por cerca de dois mil anos, os quais suportam o lado tradicional; tampouco aprovar o entusiasmo dos esoteristas contemporâneos, os quais enxergam nos textos gnósticos a redescoberta do verdadeiro Cristianismo. 
Portanto, a tarefa de identificar o que é histórico e o que é manipulação é difícil e está ainda em andamento, com alguns sucessos já alcançados. Assim como existe o projeto “Em Busca do Jesus Histórico”, alguns pesquisadores já iniciaram o projeto “Em Busca da Madalena Histórica” e os resultados iniciais já são esclarecedores. Em suma, quanto mais confirmação histórica e crítica, e menos crença e especulação, nos resultados das pesquisas, melhor serão para o público interessado no assunto.


Bibliografia

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segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

|ESTUDO| O Festival Purna Kumbha Mela e o Banho Ritual no Rio Ganges Poluído


por Octavio C. Botelho e Gabriel S. Bassi





Vista aérea do Purna Kumbha Mela de 2001, o maior festival religioso do
mundo, que acontece uma vez a cada 12 anos em Allahabad, Índia.
O estudo abaixo é outro resultado da parceria com Gabriel S. Bassi, dirigente da Sociedade Racionalista da USP. Tal como o estudo sobre a Hajj (Peregrinação Islâmica), postado neste blog em 31/10/2012, eu escrevi a primeira parte sobre o festival e ele a segunda parte sobre o grau de poluição do rio Ganges, o rio sagrado mais adorado do mundo, visto que o momento culminante deste evento religioso é o banho e o ato ritual de beber a água deste rio sagrado que, paradoxalmente, se transformou, com o tempo, em um rio muito poluído. Enfim, a sujeira da água do Ganges se tornou proporcional a sua sacralidade. Mais uma vez, agradeço ao Gabriel Bassi pela sua contribuição.
As datas oficiais do festival Purna Kumbha Mela deste ano são anunciadas com divergência, algumas fontes anunciam que iniciou em 14 de Janeiro, em uma data conhecida na Índia como Makar Sankranti (Festival da Colheita) e terminará em 10 de Março na Maha Shivaratri (a Grande Noite de Shiva). Outras informam que iniciou em 27 de Janeiro, na lua cheia deste mês (Pushya Purnima), e terminará em 25 de Fevereiro, na próxima lua cheia.  Quase tudo na Índia tem divergência, em virtude da multiplicidade de seitas. Os organizadores do evento aguardam a participação de 85 a 100 milhões de devotos desta vez.

O que é o Purna Kumbha Mela

            Este é o maior festival religioso do mundo. O número de participantes é tão grande que aparece no Livro dos Recordes como a maior aglomeração de pessoas do planeta. O último Purna Kumbha Mela aconteceu em 2001, na cidade de Allahabad, Índia, na junção dos rios Ganges e Yamuna, com a participação estimada de cerca de 70 milhões de peregrinos, o que corresponde aproximadamente à população da Alemanha (Scott, 2001: 08). Estritamente falando, o festival acontece na junção destes dois rios e do rio mitológico Saraswati, o qual é mencionado nos livros sagrados do Hinduísmo como localizado naquela região, porém, geograficamente, não está lá, portanto trata-se de um rio fictício. A junção destes três rios é conhecida como Triveni Sangam na cultura hindu. A palavra Kumbha (sânscrito), que significa pote, às vezes aparece escrita como Kumbh, conforme a grafia da língua híndi.

O desfile das Adharas (Comunidades), um dos momentos
atrativos do festival
Em geral, o festival, que tem a duração de um mês, acontece revezando-se em quatro cidades: Nashik, nas margens do rio Godavari; Ujjain, nas margens do rio Shipra; Haridwar nas margens do rio Ganges e Allahabad (também conhecida como Prayag) na confluência dos rios Ganges e Yamuna. Os Kumbha Melas mais importantes (o Purna e o Maha) acontecem sempre em Allahabad. A escolha destas cidades não foi por acaso, pois, segundo uma tradição mitológica dos hindus, foram nestes locais onde caíram as gotas de néctar (amrita) do pote (kumbha) durante a luta entre os devas (deuses) e os asuras (demônios) pela sua posse, tal como será descrita abaixo. O momento culminante do festival é o banho (snana) no rio, uma vez que os devotos acreditam que esta prática apressa a conquista da Libertação (Moksha) do ciclo de nascimentos e mortes. O principal dia de banho (snana) será em 10 de Fevereiro (Domingo), o Mauni Amasvasya Snana.
Sectariamente, o Kumbha Mela é um festival da tradição vaishnava (vishnuista) do Hinduísmo, no entanto, seguidores de outros cultos hindus (Shaiva, Shakta, Ganapatya, etc.) também participam do evento.

A periodicidade do festival

Originalmente, o festival denomina-se Kumbha (pote) Mela (festival), ou seja, Festival do Pote (Mehta, 2010: 42). Entretanto, conforme a regularidade, outros nomes são acrescidos para determinar a periodicidade, sendo que, quanto maior o intervalo, mais importante o festival:
- o Magha Kumbha Mela: acontece todo ano, geralmente em Janeiro (Magha)
- o Kumbha Mela: acontece uma vez a cada quatro anos
- o Ardha (meio) Kumbha Mela: uma vez a cada seis anos
- o Purna (completo) Kumbha Mela: uma vez a cada doze anos e
- o Maha (grande) Kumbha Mela: uma vez a cada 144 anos, ou seja, após doze Purna Kumbha Melas.
Os Naga Sadhus (ascetas nus) comparecem em grande
 número no festival
            Os últimos Purna Kumbha e Maha Kumbha Melas aconteceram em 2001, ocasião na qual os dois coincidiram, portanto uma data importantíssima para a religiosidade hindu. Tão importante que reuniu cerca de 70 milhões de peregrinos (Scott, 2001: 08). O Purna Kumbha Mela anterior a este foi em 1989 e o Maha Kumbha Mela antecedente caiu em 1857, mas permanece dúvida se o festival realmente aconteceu, uma vez que não existe registro.  A suspeita é de que não tenha ocorrido, uma vez que na ocasião acontecia uma revolta na Índia, quando soldados indianos se rebelaram contra as indignidades religiosas e sociais. Daí que civis descontentes deflagraram a Grande Rebelião, a qual só foi suprimida pelo exército britânico em 1859 (Keay, 2000: 436-47). Em razão deste tumulto, é provável que o festival não tenha acontecido.

A escolha do momento e do local

            O revezamento do festival em cada uma destas cidades (Allahabad, Haridwar, Ujjain e Nashik), bem como a escolha do momento, dependem das posições astrológicas do sol, da lua e do planeta Júpiter, previamente calculadas por astrólogos hindus. Então, quando Júpiter está no signo de Aquários (Kumbha Rashi) e o sol e a lua estão em Capricórnio (Makara Rashi), o festival acontece em Allahabad (Prayag) no mês de Magha (Janeiro/Fevereiro). Quando o sol está em Aires (Mesha Rashi), a lua em Sagitário (Dhanus Rashi) e Júpiter em Aquários (Kumbha Rashi), o festival acontece em Haridwar nos meses de Phalguna e Chaitra (Fevereiro/Março/Abril). Quando Júpiter está em Leão (Simha Rashi), o sol e a lua em Aires (Mesha Rashi), acontece em Ujjain no mês de Vaishakha (Maio). E quando o sol e a lua estão em Câncer (Kataka Rashi) e Júpiter em Escorpião (Vrischika Rashi), acontece em Nashik no mês de Shravana (Julho).

A origem mitológica do festival

Tal como quase todos os outros festivais religiosos pelo mundo afora, o Kumbha Mela também tem sua origem em um mito. Trata-se do mito da Samudra Manthan (Batedura do Oceano de Leite) narrado nos épicos Ramayana (Book I, Canto XLV) e Mahabharata (Adiparva, Astikaparva, Seções XVII-IXX), no Vishnu Purana (Book I, cap. IX), no Shiva Purana (Shatarudrasamhita cap. XXII) e, mais extensamente, no Bhagavata Purana (Skanda VIII, caps. 7-12). As narrativas nestes diferentes textos variam em detalhes, mas o que envolve o Kumbha Mela pode ser resumido da seguinte maneira.
A Triveni Sangam, a junção dos rios sagrados
Ganges (Gangá), Yamuna e o mítico Saraswati
Num passado remoto, deuses (devas) e demônios (asuras) selaram um acordo de ambos trabalharem na tentativa de produzirem néctar (amrita) através da Batedura do Oceano de Leite (Samudra Manthan). Após alguns obstáculos e desentendimentos, iniciou-se o trabalho. Quando o Pote de Néctar (Amrita Kumbha) surgiu do Oceano de Leite, deflagrou-se uma disputa por sua posse entre os deuses o os demônios, a qual se transformou, em seguida, numa sangrenta guerra. Até aqui a narrativa deste mito aparece nos textos escritos (Ramayana, Mahabharata, Vishnu Purana e Bhagavata Purana), porém a narrativa seguinte foi conservada apenas através da tradição oral. Esta afirma que a guerra durou doze dias e doze noites celestiais, correspondentes à dose anos no mundo terrestre. Ademais, durante a guerra entre os devas e os asuras, quatro gotas do Néctar (Amrita) caíram do pote (Kumbha) nas localidades de Ujjain, Nashik, Haridwar e Allahabad (Prayag), daí que o festival Kumbha Mela é realizado nestas cidades (Mehta, 2010: 42).

A origem histórica

A documentação para se conhecer a história dos Kumbha Melas é muito escassa e os autores que se aventuram a esboçá-la se contradizem frequentemente, quando não confundem mito com história. O primeiro registro da ocorrência de festivais, com a participação numerosa de devotos, aparece nos relatos escritos pelo visitante chinês Hwang Tsang (602-64 e.c.), o qual visitou a Índia nos anos 629-45 e.c., durante o reinado do rei Harshavardhana. No entanto, não é mencionado o nome Kumbha Mela. De modo que, Kama Maclean, no livro Pilgrimage and Power: The Kumbh Mela in Allahabad, 1760-1954, afirma que os festivais anteriores a 1760 eram importantes peregrinações, mas ainda não eram um Kumbha Mela, no sentido atual. Segundo a autora, o primeiro Kumbha Mela em Allahabad aconteceu em 1870 (Maclean, 2008: 99). O Kumbha Mela de 1894, em Allahabad, foi mencionado por Paramahansa Yogananda, em seu livro Autobiography of a Yogi (capítulo 36). Já o Imperial Gazetteer of India (vol. 13, p. 52) menciona e fornece os números de participantes dos Kumbha Melas, em Haridwar, de 1796 (2,5 milhões) e de 1808 (2 milhões).
O banho ritual no rio Ganges, o momento culminante do festival
O Purna Kumbha Mela de 2001 teve uma ampla cobertura da imprensa (TV´s, rádios, internet, jornais e revistas), daí que muitos líderes políticos da Índia se interessaram em participar, a fim de se mostrarem (Scott, 2001: 08), inclusive, a então presidente do Congresso, Sonia Gandhi, realizou um “mergulho simbólico” no rio Ganges (Maha Kumbh Mela concludes, The Hindu, online edition, February 22, 2001).

Tragédias

            O Imperial Gazetteer of India registrou que no Kumbha Mela de 1819, em Haridwar, 430 pessoas, incluindo soldados e guardas, perderam a vida em um acidente (vol. 13, p. 52). Também que, uma epidemia de colega ocorreu durante o Kumbha Mela de 1892, nesta mesma cidade, o que levou a formação da Haridwar Improvement Society (vol. 13, p. 52-3).
            No Kumbha Mela de 1954, em Allahabad, ocorreu o acidente mais trágico dos festivais, que provocou um estouro de pânico, no dia principal do banho (Mauni Amavasya). Os números da tragédia variam conforme as fontes. O The Guardian informou que mais de 800 pessoas morreram e 100 ficaram feridas (The Guardian, online edition, August 28, 2003), a revista Time anunciou que não menos de 350 pessoas foram pisoteadas e afogadas até a morte, 200 foram consideradas desaparecidas e mais de 2000 ficaram feridas (Religion: The Urn Festival, Time Magazine, February 08, 1960). Já o livro Law and Order in India, mais de 500 pessoas foram mortas (Saksena, 1987: 81 e 164).
            Outra tragédia aconteceu no Kumbha Mela de 2003, na cidade de Nashik, nas margens do rio Godavari, quando o lançamento de uma moeda, por um asceta, desencadeou um estouro de pânico que resultou na morte de 39 pessoas e feriu 150. (The Guardian, online edition, August 28, 2003).

Sacralidade e poluição

            O momento culminante do Purna Kumbha Mela é o banho (snana) no rio Ganges (chamado também de rio Gangá pelos hindus, em virtude da deusa Gangá), bem como o ato ritual de beber a sua água, no entanto, sabemos que este rio sagrado e seus afluentes, com o tempo, se transformaram em rios muito poluídos. Enquanto que, para a maioria das pessoas sensatas poluição é incompatível com sacralidade, milhares de hindus ainda veneram estas águas imundas, na esperança de apressar a conquista da Liberação (Moksha). Agora, é interessante refletir sobre a insensatez de continuar atribuindo sacralidade a um rio tão poluído, tal como insistem os hindus devotados, depois de tomar conhecimento das informações do estudo abaixo, sobretudo pelo fato de que esta imundice é frequentemente noticiada pela imprensa e alertada pelos órgãos de defesa do meio ambiente na Índia.

A poluição do rio Ganges


Crianças no meio de uma imundice no rio Ganges
A sacralidade do rio Ganges contrasta assustadoramente com a sujeira da sua água. Para os hindus, banhar-se e beber a água do rio Ganges (Gangá) significa purificar o corpo dos pecados passados e curar as doenças do corpo e da alma. Inclusive muitos de seus veios são desviados para casas como fonte de água “potável” e para a irrigação na agricultura. Porém, muito dessa água não corrobora com seus poderes sobrenaturais de cura e de purificação. Ao contrário, o rio Ganges, como um todo, é considerado uma fonte impressiva de xenobióticos potencialmente letais, além de compostos cancerígenos e teratogênicos. Mas, esse problema não ocorre somente na Índia, tal problema se origina muito além das fronteiras indianas, acumulando-se até chegarmos ao calamitoso delta do Ganges onde deságua no Golfo de Bengala.

Como os países vizinhos contribuem para o aumento da poluição

Apesar de grande parte das nascentes localizar ao longo do Himalaia, um dos afluentes do rio Ganges se localiza em Bangladesh. Este país está localizado ao leste da Índia, sendo considerado um dos países mais pobres do mundo, o que acarreta em seu despejo em afluentes do Ganges e na sua presença nos cereais irrigados por esses afluentes (e em concentrações excepcionalmente altas, principalmente no arroz polido (Alam et al., 2002).
Devoto observa a passagem de um cadáver boiando no rio Ganges
Sabe-se que entre 40 a 60% do arsênico ingerido pela água é retido no organismo (Farmer e Johnson, 1990), levando-se de 8 a 14 anos de sua ingestão contínua para se alcançar um real impacto na saúde (Rehana et al., 1995). Estudos mostram que o arsênico pode inibir a síntese de DNA, levando a aberrações cromossômicas (Nataranja et al., 1996). Na pele, inicialmente há um efeito eritematoso, levando à melanose, hipercertose e descamação, podendo chegar, ao longo do tempo, ao desenvolvimento de carcinomas (Masholz, 1983). Um dos seus possíveis mecanismos carcinogênicos é a ativação de vírus oncogênicos, tais como o HPV (papiloma virus) (Stohrer, 1991). Além disso, a exposição crônica ao arsênico pode levar à anemia por destruição das hemácias (Kyle e Pearse, 1965), podendo também interferir no metabolismo do folato e do DNA, sendo potencialmente teratogênico (Westhoff et al., 1975).

Despejo de pesticidas e metais pesados

Existem inúmeras indústrias que despejam esgoto industrial diretamente no rio Ganges, contribuindo com até 25% do total de esgotos despejados (AIC, 1994). Saxena et al (1966) já havia concluído, ainda na década de 1960, que 5 curtumes, 10 indústrias têxteis e muitas outras indústrias ao longo do Ganges despejam 37,15 milhões de galões por dia de contaminantes, como metais pesados e lixo industrial. Em especial, curtumes localizados em Kampur despejam inúmeros compostos químicos, principalmente o cromo, excedendo em até 70% os níveis máximos recomendados para os seres humanos (nível que se mantém desde 1995) (AFP, 2010). Gupta et al. (2009) mostraram que duas espécies de peixes comuns no rio Ganges estão contaminadas por metais pesados, tais como zinco, chumbo, cádmio, cobre e cromo, excedendo números até 100 vezes o permitido. Em amostras de água em Saligarh e Sahampur, os níveis de cádmio, ferro, cobre e cromo estavam tão altos e fora dos padrões máximos de segurança, que a sua administração a bactérias causou mutações e aberrações cromossômicas (Tabrez e Ahmad, 2011; 2009).
Despejo de esgoto não tratado no rio Ganges
O uso de pesticidas é comumente usado em todo o vale do Ganges, especialmente na agricultura do arroz. É, sem dúvidas, um dos poluentes mais difíceis de se controlar, visto ser despejado em vários afluentes do Ganges, incluindo grande parte provindo de Bangladesh (Datta et al., 2009). O problema dos pesticidas (principalmente dos organoclorados, como o DDT e o aldrin) é a sua alta resistência à degradação ambiental (Hung e Thieman, 2002). Esses compostos podem ser bioacumulados ao longo do tempo, podendo levar à ações tóxicas sobre o sistema reprodutor (teratogenia) e nervoso (Danzo, 1998; Hellawell, 1988), distúrbios do sistema endócrino (Hileman, 1994), cânceres de mama, fígado, testículos e esterilidade (Davies e Bradlow, 1995; Coco et al., 1997) e atividade carcinogênica (UNEP, 2003).
Estudos mostram que o lençol freático de Bangladesh está contaminado com arsênico em doses 60 a 1000 vezes o permitido, devido ao uso em pesticidas e pelas características geológicas da região (Datta et al., 2009; Alam et al., 2002). No rio Gomti, afluente do Ganges, estudos mostraram níveis altíssimos de contaminação por pesticidas de vários tipos, tais como DDT, heptacloros, lindane e eldrin provindos do uso principalmente na agricultura (Malik et al., 2009). Rehana et al. (1995) coletaram 36 amostras de água ao longo do estreito superior do rio Ganges (em Kachla, Fatehgarh e Kanauj), detectando níveis de pesticidas, tais como DDT e organosfosforados, até 5000 vezes mais alto que o permitido (Agencia de Proteção Ambiental dos EUA, 1980). E esse tipo de contaminação aparenta ser endêmica, pois há níveis também altíssimos de pesticidas nos rios de cidades como Naroda (Rehana et al., 1996), Okhla (Asleem e Malik, 2005), Mathura (Asleem e Malik, 2003), Lucknow (Tripathi et al., 2009), Farrukhabad (Agnihotri et al., 1994), Ramnagar e Rjaghat (Varanasi) (Nayak et al., 1995). Talvez um dado ainda mais alarmante é que o próprio lençol freático em volta do Ganges também está contaminado por pesticidas (Sankararamakrishnan et al., 2005).
Devotos bebendo a água do rio Ganges
Com níveis de pesticidas tão altos nas águas dos rios, não é surpresa encontrar esses contaminantes em animais aquáticos pelo rio Ganges. Vários estudos mostraram que há também alto nível de contaminação de peixes e outros animais aquáticos (que são consumidos e vendidos pela população local, inclusive aos turistas) por esses mesmos pesticidas tanto no Ganges como em seus afluentes (Das et al., 2002; Jabber et al., 2001; Guzella et al., 2005). O grau de contaminação da água do rio Ganges é tão alto que uma pesquisa de 2002 revelou que até os golfinhos de água doce localizados em Patna estavam contaminados com altos níveis de DDT, aldrin e endosulfan (Kumar et al., 2002)
Obviamente que a contaminação da água e dos animais aquáticos pode levar à contaminação humana. Kumar e colaboradores (2001) mostraram que os indianos em torno do Ganges também estão contaminados por pesticidas em níveis acumulados muito acima do seguro. Em 2001, Shukla e colaboradores analisaram o conteúdo de carcinomas de vesículas biliares de 30 pacientes das regiões de Bihar e Uttar Pradesh, encontrando altos níveis dos pesticidas BHC, DDT, aldrin e endosulfano. Pessoas que vivem ao longo das margens do Ganges nas cidades de Uttar Pradesh, Bihar e Bengala têm maior propensão de desenvolver câncer que o resto do país, tendo-se a incidência de câncer de bexiga como o segundo mais alto do mundo e a incidência de câncer prostático como o maior de toda a Índia (Gosh, 2012). Curiosamente, as maiores incidências de cânceres de língua, boca, nasofaringe, estômago, vesícula biliar e útero na Índia ocorrem justamente em torno do delta do Ganges (Nadakumar et al., 2005).

Esgotos

Talvez o primeiro artigo mostrando a qualidade da água veio de Lakshminarayana em 1965, mostrando que a qualidade da água do rio Ganges em Varanasi (Benares) diminui nos períodos de chuva (monções, que ocorrem de Junho a Agosto), sem variar durante o inverno e o verão. Porém, o maior contribuinte para a contaminação do rio Ganges talvez seja o despejo de esgoto sem tratamento. Em Benares, ao menos 32 esgotos provindos da cidade deságuam no rio Ganges, entre eles plástico, animais e corpos humanos podem ser vistos flutuando no rio, e em Kampur são as unidades industriais, especialmente os curtumes, que descarregam produtos químicos e metais pesados na água (Ramachandran, 2011).
Cães comendo um cadáver na margem do rio Ganges
Um estudo de 1976 mostrou que o despejo de esgoto diretamente no Ganges, na cidade de Benares, é o responsável pela presença de organismos patogênicos na água (Agarwal et al., 1976). Dados estatais afirmam que todos os dias são despejados 2,9 milhões de litros de esgoto não tratado somente no Ganges, sendo que o sistema de tratamento comporta somente 1,1 milhão de litros/dia. Em Benares, o tratamento de esgoto depende de estações de bombeamento, porém a cidade ainda sofre com blecautes que podem durar até 12 horas. Em tempos de monções, essas estações são desligadas por um período de 3 a 5 meses por ano (Hamner et al., 2006). Além disso, o rio Ganges fornece até 40% da água consumida em 11 estados indianos (Hindustan Times, 2012). Os níveis de coliformes são tão altos que o uso de sua água até para a agricultura não é indicado (Daftuar, 2011).
Água do rio Ganges engarrafada
para comercialização
A Índia é um local endêmico para contaminação por cólera, principalmente em sua parte oriental (Sur et al., 2007; Hamner et al., 2006). Bilgrami e Kumar (1998) encontraram índices alarmantes de coliformes até 800% acima do permitido, além de níveis altíssimos de E. coli e C. perfringens no Ganges. De at al. (1993) não recomendam o uso da água do rio Ganges para beber ou tomar banho devido ao alto nível de contaminação do rio Ganges por bactérias potencialmente nocivas, tais como aeromonas, coléricas, salmonelas e shiguela. A contagem de coliformes da água em Benares alcança 60 mil organismos por 10 ml de água (Ramachandran, 2011) (os níveis seguros para locais de recreação é de 235 organismos por 10mL de água - algo em torno de 25 mil vezes acima do recomendado), rio abaixo a Benares, essa contagem chega a 1 milhão por 10 ml de água (Ramachandran, 2011).
A área em torno do rio Ganges é considerada local epidêmico de distúrbios gastrointestinais causados pelo V. cholera (Organização Mundial da Saúde; Levine et al., 2006). Annapurna e Sanyal (1977) mostraram que os indivíduos em torno do rio Ganges estão em constante exposição à bactéria Aeromonas hydrophila, causadora de diarreia, que se acumula nas fontes de água não tratada (provindas principalmente do rio Ganges ou do lençol freático). Padey e colaboradores (2005) mostraram que um dos principais causadores de doenças entéricas em Benares é a contaminação da água do Ganges, além da estratificação socioeconômica. E aparentemente casos de epidemias de cólera associadas ao uso de água não tratada não são raras nessa região (Das et al., 2009; Mukherjee et al., 2011).

Bibliografia

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