por Octavio da Cunha Botelho
(Obs: este estudo está disponível em versão mais atualizada em:
http://observadorcriticodasreligioes.wordpress.com/2014/01/05/sinodo-do-cadaver-o-julgamento-macabro-do-papa-defunto/)
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Pintura de Jean-Paul Laurens, 1870, reproduzindo o Sínodo do Cadáver, ocorrido em Janeiro de 897 e.c. |
Diante disto, é preciso esclarecer
que o estudo abaixo tratará de um evento chocante, outros o entendem como
cômico, na história papal, porém não deve ser entendido como que toda a
história do papado fosse marcada por líderes do passado com tão alto grau de insanidade.
Embora sejam muitos os casos de imoralidade e de loucura de alguns pontífices,
em certos momentos da história, alternando conforme a época, a ocorrência não é
constante, mas sim intermitente.
Exibição do triunfo e
dissimulação do erro
Uma ocorrência comum na história da cultura é
a tentativa de cada seguimento cultural de esconder os fracassos e, por outro
lado, divulgar os triunfos. As ciências, as filosofias, as artes, a política,
as religiões, etc., todas procedem assim, de modo que a história de cada
seguimento cultural é o relato dos seus triunfos e, ao mesmo tempo, o
encobrimento dos seus fracassos e dos seus erros. As culturas ideológicas
(política, religião, etc.) são as que melhor sabem fazer isto, e a religião
desenvolveu este artifício com muita maestria, pois ela só relata aos seus
seguidores o lado triunfante e glorioso da sua história.
Sendo assim, muitos católicos são
levados a pensar, a partir do que lhes informa a Igreja Católica, que a
história papal é um “mar de rosas”, pois apenas são divulgados os feitos santos
e gloriosos dos papas do passado. Enquanto papas recentes como João XXIII
(1881-1963) e João Paulo II (1920-2005) estão sendo canonizados, para se
tornarem santos, por outro lado, existiram outros pontífices, no passado, tão
diabólicos e insanos que, ao invés de santificados, deveriam ser canonicamente
“diabolizados” ou “insanizados”; isto é, do mesmo modo que existe o processo de
canonização de santos, se o Catolicismo atentasse para o seu lado imoral,
deveria existir também o processo de “diabolização” de papas, de maneira que,
então, existiriam os papas santos e os papas diabólicos concomitantemente, daí
a história papal estaria mais bem contada pela Igreja.
“Panelinha” italiana
Quando conhecemos a história papal, uma persistência
chama a atenção: o monopólio italiano. Dos 266 papas até hoje, 212 foram
italianos, restando apenas 54 papas para as outras nacionalidades (17 franceses),
portanto uma autêntica “panelinha” italiana (Kelly, 1988). Historicamente, sabemos que esta “panelinha”
nem sempre cozinhou uma macarronada de papas santos, pois alguns papas foram
cozidos com o forte tempero da imoralidade e da insanidade nesta panela, o que
resultou numa indigestão moral.
Bem, de todos os eventos paranoicos na
história papal, nenhum é mais inacreditável do que o julgamento do papa defunto
(Formoso), conhecido como Sínodo do Cadáver, realizado pelo papa Estevão VI (ou
VII) em Janeiro de 897 e.c. O episódio é tão bizarro que chega a ser cômico,
sendo assim apropriado para um roteiro de comédia. Walter Ullmann o denominou
“comédia do cadáver” (Ullmann, 2003: 112). O conhecimento deste evento leva
muitos a pensar que se trata de uma conspiração de seguimentos rivais do
Catolicismo, de tão absurdo. Alguns historiadores o apontam como o mais curioso
evento na história da Igreja Católica, porém eu acrescentaria, com base na
minha experiência em estudos comparativos entre as religiões, que este episódio
é o mais paranoico na história geral das religiões civilizadas, só é possível
encontrar eventos com este grau de bizarrice nas religiões indígenas.
A historicidade e as suas fontes
principais
Qualquer um que ler, pela primeira
vez, sobre este horrendo e inacreditável episódio, com muita possibilidade,
será levado a pensar que se trata de um boato criado por seguidores das
correntes rivais do Catolicismo ou de uma zombaria inventada por ateus
debochados, a fim de depreciar ou de zombar da dignidade papal respectivamente.
Entretanto, o mais surpreendente é que a historicidade deste episódio é
confirmada tanto por historiadores de dentro ou de fora da tradição católica. Em
um ou outro relato, é possível, encontrar acréscimos de autores sensacionalistas
que, a fim de aumentar a carga depreciativa, inserem em seus escritos fatos
indevidamente documentados sobre o episódio para comover o leitor, em regra
geral sem mencionar a fonte latina. Assim, o estudo abaixo procurará evitar
utilizar-se destes escritos suspeitos.
Uma página manuscrita do Antapodosis, de Liutprand de Cromona, século X e.c., uma importante fonte histórica. |
As principais fontes latinas, que relatam o
Sínodo do Cadáver, utilizadas pelos historiadores são:
-
A Antapodosis, editada no Corpus Christianorum pelo historiador do
século X, Liutprand de Cronoma.
-
Os Annales, descritos por Hincmar,
editados no Monumenta Germaniae Historica
Scriptores, vol. I, p. 507.
-
A Ata do Concílio de Ravena de 898
e.c., a qual revoga as decisões do Sínodo do Cadáver, traduzida ao francês e
publicada por Joseph Duhr, 1932.
-
O Auxilius und Vulgarius, texto
latino com uma introdução em alemão por Ernst Dummler e publicado em Leipzig,
1866.
-
A Invectiva (panfleto anônimo)
-
O Liber Pontificalis (The Book of the Popes), uma coleção de
biografias papais, desde o apóstolo Pedro até o papa Pio II (1464), compilada
no século VI, depois completada por outros autores, vol. II, p. 229.
A ata do Sínodo do Cadáver não
sobreviveu, no entanto, das fontes acima, o Auxlilius
und Vulgarius é uma compilação de obras contemporâneas, uma vez que Auxilius de Nápoles foi ordenado padre
em Roma pelo papa Formoso, transformando-se em seu fiel defensor. Outra fonte
contemporânea e também importante é a Ata do Concílio de Ravena de 898 e.c., reunião
ocorrida logo após o Sínodo do Cadáver de 897 e.c., traduzida e publicada por
Joseph Duhr em Le Concile de Ravenna, La
Réhabilitation du Pape Formose, 1932, onde as ocorrências do sínodo são
relatadas (Mann, 1910: 76-85 e Kelly, 1988: 116).
O contexto
O Sínodo do Cadáver aconteceu
durante um período de instabilidade política na Europa, o qual refletiu na estabilidade
da liderança da Igreja, em uma época quando o Sacro Império Romano do Ocidente
estava começando a desmoronar, isto é, fim do século IX e.c., dando lugar à
gradual formação dos feudos, conhecido como “período da anarquia feudal”,
portanto marcado por muita rivalidade política e os papas permaneciam no meio
do fogo cruzado das disputas de poder, bem como, em quase todos os casos, na
obrigação de se posicionarem de uma lado ou de outro. De modo que este foi um
século quando o papado foi ocupado por muitos papas, alguns por um curto
período de tempo, portanto uma fase de pontificados curtos. Assim, “não é sem
justificativa chamado de ‘o século negro’ do papado” (Ullmann, 2003: 112).
Formoso, o réu defunto
Papa Formoso (815-96 e.c.), o réu defunto no Sínodo do Cadáver |
Ele exerceu seu papado de 891 a 896,
nasceu em 815, provavelmente em Roma, dotado e bem educado, foi nomeado bispo
na cidade do Porto em 894, provou ser um brilhante missionário. Porém, ele
enfrentou difíceis problemas políticos na Itália, quando já eleito papa, pois
seu predecessor tinha coroado o duque Guido III de Spoleto como imperador. Em
Abril de 892, foi forçado a recoroar Guido em Ravena e, ao mesmo tempo, coroar
seu filho Lamberto como coimperador. No entanto, o domínio da dinastia de
Spoleto incomodava a Santa Sé, então, por volta do Outono de 893, ele apelou
para Arnulfo, o rei dos Francos Orientais, para que ele salvasse Roma da
tirania dos Spoletos. Após repetidos apelos, Arnulfo decidiu invadir a Itália e
em Fevereiro de 896, Roma foi tomada. Guido estando então morto, Formoso coroou
Arnulfo, o líder dos germânicos, em Fevereiro de 896. Mas, logo em seguida,
Arnulfo foi comedido de paralisia e teve de deixar Roma, para se dirigir à
Alemanha, logo após sua partida, Formoso estava morto. Em meio a toda esta
rivalidade política, Formoso atraiu amargos e implacáveis inimigos, que
incluíam Lamberto, filho de Guido III, uma vez mais governante de Roma e seu
sucessor Estevão VI (Kelly, 1988: 114).
Este último não teve o menor
escrúpulo em sujeitar Formoso diante da mais macabra humilhação. Nove meses
(Janeiro de 897) após sua morte, o cadáver de Formoso foi exumado e colocado em
um trono com as completas vestimentas papais, foi então solenemente processado
em um tribunal simulado, presidido pelo próprio Estevão VI, e um diácono
permaneceu ao lado do “réu-cadáver” respondendo às acusações (Kelly, 1988:
114). Um episódio tão inacreditável que mais parece uma cena de filme de
comédia.
O Sínodo do Cadáver
Tal como brevemente descrito acima,
este é o nome dado ao simulado julgamento macabro ordenado e presidido pelo
papa Estevão VI (ou VII) em Janeiro de 897 e.c. Os relatos dos autores variam conforme
as fontes utilizadas, extraídos quer das fontes primárias (latinas) ou das
exposições de segunda mão de autores mais recentes. Dentre as obras
consultadas, o relato de Horace K. Mann, o mais extenso em língua inglesa, embora
antigo (1910), reproduz uma bem elaborada síntese do evento a partir dos
documentos latinos com abundante citação das fontes. Ele relata o episódio assim:
“O horrível sínodo que agora vamos descrever, felizmente único na história do
Cristianismo, aconteceu provavelmente no mês de Janeiro de 897. (...) Tão logo
Arnulfo deixou a Itália, sua autoridade aí chegou a um fim, Beregorio e
Lamberto imediatamente dominaram regiões da Itália e mataram os oficiais que se
opunham a eles. Ageltrudes e Lamberto fizeram-se senhores de Roma e fundaram
alí um instrumento de seu espírito de vingança contra o homem que tinha
favorecido seu rival Arnulfo.”
“O corpo do infeliz Formoso, ainda
mais ou menos inteiro, mas lógico, meio decomposto, foi desenterrado e trazido
ante uma assembleia. Vestido com as completas vestimentas papais, o cadáver foi
colocado numa cadeira e um diácono foi designado para defender o pontífice
acusado. Uma acusação formal foi feita contra ele: ‘Quando uma vez deposto, ele
não deveria ter exercido as funções de seu cargo, e se as exerceu, ele não
deveria ter se transferido de uma sé para outra’. Com estes enquadramentos,
Formoso foi condenado”.
O papa Estevão VI (ou VII), quem convocou e presidiu o Sínodo do Cadáver em 897 e.c. |
Outro relato bem documentado, embora
mais breve, é o de J. N. D. Kelly no The
Oxford Dictionary of Popes (1988),
ele descreve o sínodo assim: “O único evento importante de seu pontificado
(Estevão VI), que foi registrado, é o macabro ‘Sínodo do Cadáver’, o qual ele
presidiu em Janeiro de 897, e que foi instigado, em parte, por Lamberto e sua
mãe Ageltrudes, resentidos de Formoso, por ter coroado Arnulfo, mas também pelo
amargo ódio pessoal que ele e uma poderosa facção dos romanos alimentavam
contra o falecido pontífice (Formoso). Neste tribunal simulado, o cadáver de
Formoso foi desenterrado, vestido com as completas vestimentas papais e
colocado em um trono, foi solenemente acusado com as acusações de perjúrio, de
violar os cânones que proíbem a transferência de bispos e de cobiçar o papado.
Um diácono permaneceu ao seu lado e respondeu por ele. Formoso foi culpado, e
todos os seus atos foram declarados nulos e sem efeito, incluído as ordenações,
seu corpo foi finalmente lançado no rio Tibre”. (...)
“Nos meses seguintes, Estevão exigiu
que os clérigos ordenados por Formoso emitissem cartas reconhecendo suas ordenações
como inválidas. Sua pavorosa conduta, contudo, não permaneceu por muito tempo
impune. Poucos meses depois, houve uma reação popular e os ultrajados aliados
de Formoso, encorajados pelos relatos de milagres efetuados pelo cadáver
humilhado, talvez também pela interpretação do súbito desmoronamento da
Basílica de Latrão, como um julgamento divino, se levantaram em rebelião,
depuseram Estevão, despiram-no de sua insígnia papal e o lançaram numa cela,
onde ele, logo em seguida, foi estrangulado” (Kelly, 1988, 115-6; para outros
relatos resumidos, ver: Platina, 1479: 237; Herbermann, 1913: 289-90; McCabe,
1939: 211; Farrow, 1942: 85; Ullmann, 2003: 112 e para um relato poético:
Browing, 1872: vol. IV, 2s).
Entretanto, após a publicação da Ata
do Concílio de Ravena (Duhr, 1932: 541), convocado pelo papa João IX, sucessor
de Estevão VI, para revogar as decisões do Sínodo do Cadáver, alguns
historiadores começaram a contestar a hipótese de que foi Lamberto de Spoleto quem
instigou a realização do Sínodo do Cadáver, uma vez que neste documento é
mencionada a presença deste governante de Roma no concílio. De acordo com a Ata
do Concílio, Lamberto explicitamente aprovou a anulação, então se fosse
Lamberto o arquiteto da humilhação de Formoso, certamente não poderia estar
presente e, menos ainda, consentir com a decisão do Concílio de Ravena. No
entanto, esta contestação não é unanime entre os historiadores e as opiniões
continuam divididas sobre quem foram os verdadeiros instigadores da realização
do Sínodo do Cadáver.
As consequências
Em Dezembro de 897, o papa Teodoro
II convocou um sínodo que anulou o Sínodo do Cadáver, reabilitou Formoso e
ordenou que seu corpo, que tinha sido recuperado do rio Tibre, fosse enterrado na
Basílica de São Pedro com as vestimentas papais. Em 898, o papa João IX também
anulou o Sínodo do Cadáver ao convocar dois sínodos, um em Roma e outro em
Ravena (mencionado acima), os quais confirmaram as decisões de Teodoro II, ele
também ordenou que a ata do Sínodo do Cadáver fosse destruída e proibiu
qualquer sínodo de pessoa morta.
Entretanto, o papa Sergio III
(904-11) que, como bispo também participou do Sínodo do Cadáver como juiz auxiliar,
derrubou as decisões de Teodoro II e de João IX, com isso aprovando a condenação
de Formoso.
Bem, daí é possível perceber o grau
de tumulto que vivia o papado naquela época.
Obras consultadas
BROWING,
Robert. The Ring and the Book.
London: Smith, Elder and Co., 1872, vol. IV, p. 2s.
DUHR,
Joseph. Le Concile de Ravenne in 898: La Réhabilitation
du pape Formose em Recherches de
Science Religieuse, nr. 22, 1932, p. 541.
DUMMLER,
Ernst (tr.). Auxilius und Vulgarius.
Leipzig: Verlag Von S. Hirzel, 1866.
FARROW,
John. Pageant of the Popes. New York:
Sheed & Ward, 1942.
HERBERMANN,
Charles G. (ed.). The Catholic
Encyclopedia, vol. XIV. New York: The Encyclopedia Press, Inc, 1913, p.
289-90.
KELLY,
J. N. D. The Oxford Dictionary of Popes.
Oxford: Oxford University Pess, 1988.
LOGAN,
F. Donald. A History of the Church in the
Middle Ages. London: Routledge, 2002.
MANN,
Horace K. The Lives of the Popes in the
Early Middle Ages, vol. IV. London: Kegan Paul, Trench, Trubner & Co.,
1910.
McCABE,
Joseph. Crises in the History of the
Papacy. New York: G. P. Putnam’s Son, 1916.
_______________
A History of the Popes. London: Watts
& Co., 1939.
PLATINA,
Bartolomeo. The Lives of the Popes (english
edition by W. Benhan). London: Griffith Farran & Co., 1st latin edition
1479.
ULLMANN,
Walter. A Short History of the Papacy in the Middle Ages. London: Routledge,
2003.