sexta-feira, 29 de junho de 2012

|ESTUDO| O Início do Papado por um Pescador Analfabeto


Octavio da Cunha Botelho






Pintura mostrando Jesus entregando a chave do céu a Pedro
Preparado para ser postado especialmente neste Dia de São Pedro, 29/06, o estudo abaixo mostra como é curioso saber que o papado da religião com o maior número de seguidores no mundo, o Cristianismo, que apesar da grandiosidade e da riqueza, teve a origem da sua tradição num pescador analfabeto, o apóstolo Pedro. Ademais, expõe que a sua liderança, nos primeiros anos da Igreja, tornou-se uma dúvida depois da descoberta de textos perdidos por muitos séculos. Alguns historiadores concluem que a ideia da liderança do apóstolo Pedro, desde o início do Cristianismo, foi uma manipulação ideológica arquitetada pela corrente dominante, que fez apagar a rivalidade com outros líderes, sobretudo Maria Madalena, e desaparecer os textos que apresentavam as ideias contrárias. Ademais, o estudo aponta o ambiente culturalmente precário da região onde surgiu o Cristianismo, bem como o posicionamento dos seus primeiros adeptos nas camadas culturais mais baixas da sociedade na época.
Parece que o primeiro papa alfabetizado, de quem se tem registro, foi Clemente I, que foi bispo em Roma de 91 a 101 e.c., sucedendo o apóstolo Pedro (morto em 64 e.c.), a Lino (68-78 e.c.) e a Anacleto (79-91 e.c.), portanto o quarto papa na sequência sucessória (Kelly, 1988: 05-8). A alfabetização de Clemente I é atestada, pois deixou documentos escritos (cartas e homilias).

O analfabetismo na Antiguidade

            Grande parte do que conhecemos sobre a Antiguidade é conhecida pela literatura registrada pelos escritores daquela época. Em vista da quantidade de textos e da beleza de muitos deles, muitos leitores atuais são levados a pensar que o letramento era um fato comum e disseminado entre a população antiga.  Nada mais enganoso. Pesquisas apontam que “no mundo antigo, a maioria das pessoas não sabia ler” (...) e “que aquilo que conhecemos por letramento universal é um fenômeno moderno que só surgiu com o advento da Revolução Industrial” (...) “até o período moderno, quase todas as sociedades apresentavam apenas uma pequena minoria da população capaz de ler e escrever” (Ehrman, 2006: 47). Bart D. Ehrman continua: “Isto se aplica até mesmo às sociedades antigas que estimulavam a leitura e a escrita – por exemplo, a Roma dos primeiros séculos cristãos, ou até mesmo a Grécia do período clássico” (Ehrman, 2006: 47). Em seguida ele aponta que: “o melhor e mais influente estudo sobre o letramento nos tempos antigos, feito pelo professor da Universidade de Columbia, William Harris, indica que nos tempos e lugares mais propícios – por exemplo, Atenas à altura do período clássico do século V a.e.c. – as taxas de alfabetização raramente atingiam de 10 a 15% da população. Transpondo os números, isto significa que, nas melhores condições, de 85 a 90% da população não podia ler ou escrever. No século I cristão, na época do Império Romano, as taxas de alfabetização podem ter sido mais irrisórias ainda” (Ehrman, 2006: 47-8).  Enfim, a alfabetização, e ainda bem mais a erudição, eram privilégios de muitos poucos na Antiguidade.

A precariedade cultural dos primeiros cristãos

             Se o índice de analfabetismo era alto, mesmo nos períodos e nos lugares favoráveis à cultura, tal como indicados acima, imagine na região da Palestina do século I, tão distante dos grandes centros culturais da época (Atenas, Roma, Alexandria e Pérgamo, bem como mais distante ainda dos centros culturais da Índia e da China – o grande centro cultural dos persas, Persépolis, já tinha sido destruído). Aquela era uma região situada na periferia cultural do Império Romano. Quando lemos sobre pessoa erudita daquela região e época, seu saber se restringia ao conhecimento religioso, enquanto que nos grandes centros culturais já se cultivada e ensinava a erudição filosófica, científica, artística, literária, poética, teatral, política e retórica. Portanto, naquela região, o pouco de saber que existia era o equivalente exclusivo ao saber religioso, enfim, a religião era a única erudição, ou seja, só existia educação religiosa, pois esta deve ser a razão de não se ter registro da existência de algum texto (oral ou escrito), que não seja religioso, naquela época e região.
Foto aérea do Vaticano
         Que o Cristianismo surgiu e se desenvolveu nos primeiros anos em comunidades formadas por cristão das classes culturais mais baixas, está confirmado em alguns dos primeiros documentos. Inicialmente era uma religião de incultos dirigida para os também incultos, até que, gradativamente, membros mais instruídos passaram a integrar suas comunidades. Uma das mais interessantes fontes que constata o baixo nível cultural dos primeiros cristãos é a obra Contra Celso (Adversus Celsus), do final do século II e.c., de autoria de Orígenes, um dos mais importantes teólogos dos primeiros séculos. Nela Orígenes contesta as críticas de Celso ao Cristianismo, numa obra perdida denominada A Palavra Verdadeira. “Uma das imputações era que os cristãos são pessoas ignorantes, de baixa extração. O que é impressionante é que, em sua réplica, Orígenes não nega isso” (Ehrman, 2006: 51). Veja as indicações da precariedade cultural dos cristãos por Celso: “Eis a palavra de ordem deles (os cristãos): para trás quem tem cultura, quem tem sabedoria, quem tem discernimento. (...) Mas se tiver algum ignorante, insensato, inculto, uma criança, que se aproxime com coragem” (Contra Celso, 3.44 – Ehrman, 2006: 51). Estes últimos eram os alvos preferidos dos cristãos para a conversão. Em seguida, ele prossegue dizendo que os cristãos “jamais se aproximam de uma assembleia de homens prudentes com a audácia de nela revelar seus mistérios. Mas, logo que percebem a presença de adolescentes, de um bando de escravos, de um ajuntamento de idiotas, para lá correm a se exibir” (Contra Celso, 3.50 – Ehrman, 2006: 51). Mais adiante aponta os ofícios braçais exercidos pelos cristãos: “cardadores, sapateiros, pisoeiros”, ou seja: “pessoas das mais incultas e rudes”. E o silêncio dos cristãos diante de pessoas cultas: “Diante de mestres cheios de experiência e discernimento não ousam abrir a boca. Mas é só surpreenderem seus filhos acompanhados de mulheres incultas e idiotas, que começam a falar coisas estranhas sem consideração com o pai ou com os preceptores... os outros não passam de impertinentes estúpidos. Eis aí com que palavras os persuadem” (Contra Celso, 3.55 – Ehrman, 2006: 51). Sobre esta passagem, Orígenes contesta que os cristãos “são sábios, mas são sábios no que refere a deus, não no que refere às coisas do mundo. Em outros termos, ele não nega que a comunidade cristã seja amplamente constituída de classes de baixa extração, pouco instruídas” (Ehman, 2006: 51). Concluindo, a única cultura existente naquela época e naquela região, afastada dos centros culturais, era a cultura religiosa, de modo que somente os religiosos eram cultos. Bem, como diz um ditado popular: “numa terra de cegos, quem tem apenas um olho é rei”, podemos imaginar como deveria ser o deslumbramento dos analfabetos e dos cristãos incultos diante dos poucos religiosos letrados da época.
            Outro exemplo da precariedade cultural dos primeiros cristãos está num texto cristão do século II e.c., o Pastor de Hermas, num episódio quando Hermas afirma não se recordar de todo um livro que lhe foi ditado, então ele pede para fazer uma cópia manuscrita: “Eu o tomei (o livro) e fui para outra parte do campo, onde copiei todo o conjunto, letra por letra, mesmo não sabendo distinguir as sílabas. E, no final, quando completei as letras do livro, ele foi...” (Pastor de Hermas, 5.4 – Ehrman, 2006: 58). Este texto foi muito estimado nos primeiros anos do Cristianismo, tanto que chegou a fazer parte do Novo Testamento em alguns dos primeiros códices cristãos (Ehrman, 2006: 57). O analfabetismo de Hermas é explícito: “copiei todo o conjunto, letra por letra, mesmo não sabendo distinguir as sílabas”, e representa a mais clara menção ao analfabetismo dos primeiros cristãos. Em vista desta precariedade, Bart D. Ehrman afirma que as transcrições dos primeiros manuscritos, por copistas cristãos, estão repletas de erros. Orígenes observou esta deficiência: “As diferenças entre os manuscritos se tornaram gritantes, ou pela negligência de alguns copistas ou pela audácia perversa de outros...” (Contra Celso, 2.27 – Ehrman, 2006: 62). Para solucionar isto, algumas primeiras comunidades cristãs contratavam copistas profissionais para copiarem seus manuscritos, até que copistas cristãos educados e bem treinados gradualmente ingressaram na Igreja. Em suma, estes são exemplos do primitivo ambiente cultural, no qual o Cristianismo surgiu, e da precariedade intelectual dos primeiros adeptos cristãos.
Mais um exemplo da ignorância dos primeiros compositores de textos cristãos, agora num texto apócrifo, aparece no trecho final do Evangelho de Pedro, quando este apóstolo estando em Jerusalém afirma: “Eu, Simão Pedro, de minha parte, e André, meu irmão, pegamos nossas redes e dirigimo-nos ao mar, indo em nossa companhia Levi, filho de Alfeu, quem o senhor...” (XIV.60 – Elliott, 1993: 158 e Ehrman, 2003: 34). A ignorância geográfica do autor deste evangelho é absurda, uma vez que Jerusalém não é banhada pelo mar, portanto não existe razão para a presença de redes de pesca naquela cidade.

A disputa pela liderança entre o apóstolo Pedro e Maria Madalena

Pedro (morto em 64 e.c.) foi considerado pela Igreja como o príncipe dos apóstolos e o primeiro papa. Seu nome original era Simon, português Simão, depois recebeu o nome (talvez apelido) de Pedro (latim: Petrus), que é a forma masculinizada do substantivo feminino em latim petra (pedra), do aramaico cephas e do grego petros. Foi um dos primeiros seguidores de Jesus e lhe foi concedido o papel de líder e de porta-voz dos apóstolos conforme o Novo Testamento. Estava presente nos principais eventos na vida de Jesus segundo os Evangelhos Canônicos (Kelly, 1998: 05). Tanto o evangelho canônico de Mateus (4.18) como o apócrifo Evangelho de Pedro (XIV.60) concordam que ele era um pescador. Uma vez que seus atos são bem conhecidos dos leitores da Bíblia, não é necessária a repetição aqui.
            Curiosamente, a literatura apócrifa de Pedro, recuperada até hoje, é bem mais numerosa que a canônica. Se reunidos os textos mais completos e os fragmentos, existem os seguintes documentos:
a) Ministério:
- O Evangelho de Pedro (Elliott, 1993: 150-8 e Ehrman, 2003: 31-4)
- A Pregação de PedroKerigma Petrou (Elliott, 1993: 20-3 e Ehrman, 2003: 236-8)
b) Atos:
- Os Atos de Pedro (Elliott, 1993: 390-426 e Ehrman, 2003: 135-54)
- Os Atos de Pedro e dos Doze Apóstolos (Robinson, 2007: 248-54)
c) Apocalipse:
- O Apocalipse de Pedro (Elliot, 1993: 593-612 e Ehrman, 2003: 280-7)
- O Apocalipse Copta de Pedro (Ehrman, 2003: 78-81 e Robinson, 2007: 319-24)
d) Epistolas:
- A Carta de Pedro a Felipe (Ehrman, 2003: 195-200 e Robinson, 2007: 367-72)
- A Carta de Pedro a Tiago e sua Recepção (Ehrman, 2003: 191-4)
- e A Epistula Petri (Elliott, 1993: 433-9). 
            Agora, o que precisa ser informado e também discutido é que a aceitação da liderança de Pedro não era uma unanimidade nos primeiros anos do Cristianismo, tal como transmite o Novo Testamento e os relatos dos primeiros padres, conservados pela Igreja Católica. Após a descoberta dos manuscritos de Nag Hammadi, sobretudo a do Evangelho de Maria Madalena, os historiadores foram obrigados a repensar a posição de Pedro, tanto no tempo do ministério de Jesus, como também nos primeiros anos do Cristianismo (D’Angelo, 1999: 105-6). Maria Madalena é altamente estimada nos textos gnósticos, nalgumas passagens chega a aparecer como uma discípula predileta de Jesus, a qual recebia ensinamentos secretos que eram ocultados dos outros apóstolos. O Evangelho de Maria Madalena diz: “Maria disse: O que a vós está oculto eu vos proclamarei” (Ehrman, 2003: 36 e Wilson, 2007: 443). Ela é elogiada em alguns trechos: “Pedro disse a Maria: irmã, nós sabemos que o Salvador amava a ti mais que todas as mulheres” (Evangelho de Maria – Ehrman, 2003: 36 e Wilson, 2007: 443) e numa passagem do Pistis Sophia dos gnósticos: “Jesus, o compassivo, respondeu e disse à Maria: Maria, tu és abençoada, a quem eu ensinarei todos os mistérios das alturas (...) tu, cujo coração está elevado ao reino do céu mais que de teus irmãos” (Mead, 1921: 20).
Ela participa ativamente em alguns diálogos, deixando até transparecer um papel de liderança. Em razão disto, seu relacionamento com Pedro não parecia ser muito amistoso. Nas palavras de Karen L. King: “O confronto de Maria e Pedro, uma sequência também encontrada em O Evangelho de Tomé, Pistis Sophia e O Evangelho dos Egípcios, reflete algumas tensões do Cristianismo do século II. Pedro e André representam as posições ortodoxas que negam a validade da revelação esotérica e rejeita a autoridade da mulher no ensinamento. O Evangelho de Maria ataca ambas as posições de frente por meio da figura de Maria Madalena. Ela é a amada do Salvador, possuidora do conhecimento e do ensinamento superior àquelas da tradição apostólica pública” (King, 2007: 442).  Veja como Pedro discrimina Maria no Evangelho de Tomé: “Simão Pedro disse a ele (Jesus): Permite que Maria nos deixe, pois as mulheres não são dignas da vida”. Então a estranha resposta de Jesus: “Jesus disse: eu mesmo devo guiá-la para fazer dela um homem, para que ela possa se tornar um espírito vivo semelhante a vós homens. Pois, cada mulher que fizer dela mesma um homem, entrará no reino do céu” (Ehrman, 2003: 28 e Lambdin, 2007: 125). O diálogo se transforma em discussão hostil no Evangelho de Maria, quando Maria fala de alguns ensinamentos secretos que recebeu de Jesus. Ao terminar seu discurso, André a contesta com as seguintes palavras: “Eu pelo menos não acredito que o Salvador disse isto. Pois, certamente, esses ensinamentos são ideias estranhas”. Pedro então entra na coversa e questiona: “Ele (Jesus) realmente falou com uma mulher sem o nosso conhecimento e não abertamente conosco? Vamos todos mudar de posição e ouvi-la? Ele preferiu a ela a nós?” Então Maria responde a Pedro: “Meu irmão Pedro, o que pensas? Tu crês que eu mesma inventei estas coisas no meu coração, ou que estava mentindo sobre o Salvador?” Em seguida Levi entra na conversa e acalma o clima (Ehrman, 2003: 37 e Wilson, 2007: 444).

O analfabetismo do apóstolo Pedro

Imagem de S. Pedro
A clara referencia ao analfabetismo do apóstolo Pedro aparece em Atos dos Apóstolos 4.13: “Vendo eles a coragem de Pedro e de João, e considerando que eram homens sem instrução e idiotas, admiravam-se”. No original grego consultado, a expressão traduzida como “sem instrução” é agrammatoi, que Jerônimo na Vulgata traduziu para o Latim como sine litteris e a palavra “idiotas” no Grego é idiotai e no Latim idiotae. A tradução desta última palavra é especialmente curiosa nas Bíblias, uma vez que os tradutores e os editores procuram encobrir a carga pejorativa do seu significado etimológico (idiotai), utilizando de um artifício eufemístico, traduzindo-a então por outra palavra de menor carga humilhante (ex: sem estudos, sem conhecimentos, sem instrução, etc.), mas nunca como ‘idiotas’ ou ‘analfabetos’.
Uma discutida menção do analfabetismo de Pedro aparece na saudação final de sua Primeira Epístola, 5.12: “Por meio de Silvano, que estimo como um irmão fiel, vos escrevi resumidamente...”.  Intérpretes discutem se na frase “por meio de Silvano” (Grego: dia siluanou e Latim: per silvanum) o sentido é de que a carta foi escrita por Pedro e apenas enviada por Silvano, ou mesmo, escrita por outro escriba e enviada por Silvano ou, também, foi ditada por Pedro e redigida por Silvano. Para aqueles que levam em conta a passagem, na qual ele é mencionado como analfabeto nos Atos dos Apóstolos (4.13), as duas últimas hipóteses são as mais plausíveis. Para os que não acreditam que Pedro era analfabeto, o fundamento é a expressão “escrevi” (Grego: egrafa e Latim: scripsi), a qual é entendida referir-se à redação do próprio Pedro. Acontece que, segundo os historiadores, na Antiguidade, uma vez que o número de analfabetos era grande, era comum contratar o trabalho de redação de escribas que, quando estes últimos redigiam as cartas ou comunicados, escreviam como que se as cartas fossem escritas pelas pessoas que a ditavam, ou seja, os remetentes. De modo que, assim, parecia que quem tinha escrito a carta era a pessoa analfabeta, a qual, na verdade, tinha apenas ditado a carta para o escriba redigir. Agora, a passagem em Atos dos Apóstolos 4.13 é muito explícita quanto ao analfabetismo de Pedro, somada ao fato de ser um pescador, bem como aos altos índices de analfabetismo da Antiguidade, maior ainda naquela região afastada dos grandes centos culturais, são mais favoráveis à conclusão de que Pedro era analfabeto e que, certamente, teve de ditar a carta para a redação de Silvano.


Bibliografia

D’ANGELO, Mary Rose. The Case of Mary Magdalene em Women & Christian Origins. New York/Oxford: Oxford University Press, 1999, 105-28.
DONALDSON, James and Alexander Roberts (eds.). Early Church Fathers – Ante-Nicene Fathers, vols. I, II, III e IV. Edinburg: T&T Clark, 1885, reprint Grand Rapids: Wm. B. Eerdman Publishing Company.
EHRMAN, Bart D. Lost Scriptures: Books that did not make it into the New Testament. New York: Oxford University Press, 2003.
_______________O Que Jesus Disse? O Que Jesus Não Disse? Quem Mudou a Bíblia e Por Quê? Rio de Janeiro: Prestígio Editorial, 2006.
ELLIOTT, J. K. The Apocryphal New Testament: A Collection of Apocryphal Christian Literature in an English Translation. Oxford: Clarendon Press, 1993.
FARROW, John. The Pageant of the Popes. New York: Sheed & Ward, 1942.
KELLY, J. N. D. Oxford Dictionary of Popes. Oxford: Oxford University Press, 1988.
KING, Karen L. O Evangelho de Maria, Introdução em A Biblioteca de Nag Hammadi, James M. Robinson (ed.). São Paulo: Madras Editora, 2007, p. 442-3.
LAMBDIN, Thomas (tr.). O Evangelho de Tomé em A Biblioteca de Nag Hammadi, James M. Robinson (Ed.). São PAULO: Madras editora, 2007, p. 116-25.
MEAD, George R. S. (tr.) Pistis Sophia. London: J. M. Watkins, 1921.
ROBINSON, James M. (ed.).  The Nag Hammadi Library in English. Leiden: E. J. Brill, 1988. Edição brasileira: A Biblioteca de Nag Hammadi. São Paulo: Madras Editora, 2007.
WILSON, R. McL e James Brashler (trs.). Evangelho de Maria em A Biblioteca de Nag Hammadi, James M. Robinson (ed.). São Paulo: Madras Editora, 2007, p. 443-4.     

quarta-feira, 20 de junho de 2012

|ESTUDO| A Maçonaria e sua Origem com os Pedreiros Analfabetos


Octavio da Cunha Botelho






Neste próximo Domingo irá se comemorar mais um Dia de São João Batista, apesar de ser mais conhecida pela comemoração dos cristãos, esta data (24 de Junho) é também importante para a história da Maçonaria, pois nela comemora-se o aniversário da reunião entre representantes de quatro lojas maçônicas de Londres, na taberna Goose and Gridiron, para a fundação da Grande Loja de Londres em 24 de Junho de 1717 (Mazet, 1992: 257; Cerinotti, 2004: 14 e Jacob, 2007: 11), depois reformulada como Grande Loja Unificada da Inglaterra em 1813, com a adesão da Loja de York, inicialmente descontente. A escolha desta data para a reunião não foi por acaso, mas em razão da afinidade com este santo cristão, admirado por outras sociedades esotéricas, sobretudo pelos Templários, as quais os maçons da época supunham serem fontes da Maçonaria (Cerinotti, 2004: 109). Mesmo não tendo jurisdição universal, pois a Maçonaria está fragmentada em incontáveis divisões (no Brasil, segue-se mais o Grande Oriente, de origem francesa), a multiplicidade aumenta ainda mais quando se leva em contas as lojas irregulares, este foi um marco importante na história da Maçonaria Moderna.
Agora, quem conhece os fascinantes símbolos e os pomposos rituais, bem como a suntuosidade dos templos (lojas) e a celebridade dos adeptos da atual Maçonaria, terá dificuldade em acreditar que esta faustosa sociedade secreta teve sua origem numa corporação (craft) de pedreiros analfabetos, a qual pode ser a razão da conservação de seus ensinamentos, durante a fase da Maçonaria Operativa, exclusivamente através de símbolos e de ritos, ao invés também de textos escritos.  
As pesquisas sobre a origem da Maçonaria estão envolvidas numa teia intricada de teorias controvertidas, desde as mais delirantes até as mais sóbrias (Cerinotti, 2004: 8-11). O assunto ainda carece de mais pesquisa acadêmica, quando comparado com a grande quantidade de estudos sobre outras tradições, pois o número de estudos acadêmicos é escasso, de modo que a quantidade de publicações pelas mais importantes universidades do mundo é muito pequena. Tentando contornar estes obstáculos, o estudo abaixo pretende apontar, em meio a um oceano de relatos fabulosos (para conhecer um exemplo, ver: Anderson, 1734: 07-45), a origem iletrada da corporação dos Pedreiros Livres (Free-masons), durante o período denominado pelos pesquisadores de Maçonaria Operativa, a partir dos poucos estudos crítico-históricos, independentes das interpretações da tradição e da propaganda maçônicas.

Etimologia da denominação Franco Maçonaria

            Do inglês Freemasonry e do francês Franc Maçonnerie, não existe consenso entres os pesquisadores quanto à origem do termo. Alguns apontam que significa que estes pedreiros (do francês: maçon) e construtores medievais, em virtude do ofício, tinham salvo-conduto das autoridades para transitarem livremente de uma região para outras, conforme as obras exigiam seu trabalho, portanto a denominação de pedreiros livres (free-masons). Outros acreditam que receberam esta denominação em razão do caráter mais especializado das suas habilidades de ofício, portanto eram profissionais livres, para diferenciá-los dos escravos que, no passado, eram a mão de obra majoritária nas edificações. Ainda, outra etimologia é apontada na palavra inglesa free stone (pedra de cantaria), aquela pedra particularmente adequada ao trabalho do entalhador (Cerinotti, 2004: 14-6).
            Qualquer que seja a etimologia, Franco Maçonaria é a denominação para a corporação de pedreiros e construtores que, a partir de certo momento, ainda desconhecido pelos historiadores, quando seus membros passaram a se reunirem nos alojamentos (lojas, do inglês: lodge e do francês: loge) nos canteiros das obras, além da prática habitual das refeições e do descanso, para trocarem informações sobre os simbolismos e os segredos por trás das artes e da arquitetura nas catedrais e nos mosteiros que edificavam, que os levaram, em seguida, com o acúmulo de informações secretas, a praticarem rituais iniciáticos nestes alojamentos (lojas), para a admissão de novatos e a transmissão secreta dos ensinamentos. Em outras palavras, uma corporação que combinava o ofício da construção com a construção do caráter de seus membros sob o véu do segredo. Parece que, segundo os manuscritos mais antigos, o segredo foi utilizado inicialmente apenas para a salvaguarda das técnicas do ofício da construção, depois se estendeu para o objetivo de velar os símbolos, as senhas e os rituais maçônicos (Mazet, 1992: 251), daí se desenvolveu o espírito corporativista, que até hoje marca tanto o caráter da Maçonaria.

Maçonaria e religião

             Os maçons são unânimes em afirmar que a Maçonaria não é uma religião, a definição clássica é: “um peculiar sistema de moralidade, velado em alegoria e ilustrado por símbolos” (Mazet, 1992: 248). Apesar da recusa, os maçons insistem que que todo candidato deve ser um religioso, pois não é possível ingressar na sociedade sem acreditar em deus (Anderson 1734: 48 e Cerinotti, 2004: 102). Os juramentos dos adeptos são feitos diante de um livro religioso (Bíblia, etc.), conforme o regulamento da jurisdição. Enfim, a Maçonaria é uma sociedade que não se considera religiosa, mas aos seus adeptos se solicita que sejam religiosos.
            Agora, o que leva os maçons a pensarem que a Maçonaria não é uma religião deve-se ao conceito circunscritamente cristão de religião, entretanto, quando se expande o conceito de religião para além dos limites do teísmo, a Maçonaria demonstra traços muito comuns com outras tradições não teístas. Por exemplo, o Hinduísmo também tem um sistema de moral (dharma shastra), grande parte das suas concepções estão veladas por símbolos, concede iniciações e, ademais, pratica uma quantidade de ritos muito maior que a Maçonaria. Os maçons não são teístas, mas sim deístas, a realidade suprema é o Grande Arquiteto do Universo (GADU), de maneira que, na Maçonaria, não existe cultos de louvor, adoração ao senhor, orações, súplicas pela graça divina, romaria, bem como sacramentos de batismo, de casamento, etc. Em suma, o conceito de religião é controvertido, porém, conforme a abrangência, a Maçonaria apresenta elementos tão comuns com as religiões em geral, que se torna difícil excluí-la do rol das religiões, sobretudo quando se tem em mente que religião não é só teísmo, fé e devoção. Para resumir, a Maçonaria não se considera uma religião, mas, paradoxalmente, tudo nela tem origem e natureza religiosas.

Maçonaria Operativa e Maçonaria Especulativa (Moderna)

            A história da Maçonaria possui um crucial turning point, a transição de Maçonaria Operativa (composta exclusivamente de pedreiros e construtores) para a de Maçonaria Especulativa (composta de adeptos que não são mais pedreiros e construtores, portanto denominados de “maçons aceitos”). Esta transição aconteceu nos séculos XV, XVI e XVII e.c., quando houve uma redução drástica no número de construções de catedrais, de fortalezas e de mosteiros, bem como a expansão da Reforma Protestante, as quais resultaram em prejudicais consequências na corporação dos maçons. Consequentemente, perderam o elo com os padres da Igreja, que patrocinavam as construções, para então, buscarem trabalho em outras fontes, a fim de que a corporação sobrevivesse (Mazet, 1992: 253 e Jacob 2007: 12). Foi nestas circunstâncias que a Maçonaria, de uma corporação exclusivamente constituída por pedreiros e mestres de obra, abriu as portas para a entrada de membros de fora da profissão.
            Estes novos adeptos, os quais eram intelectuais, pessoas da nobreza, profissionais de outras áreas, portanto candidatos bem mais instruídos, ficaram fascinados com a descoberta de que os maçons guardavam muitos segredos antigos. Entretanto, ao mesmo tempo, por serem cultos, perceberam que os antigos maçons não guardaram, ou já tinham perdido, o significado por trás daqueles símbolos e ritos, daí que estes novos interessados sentiram a necessidade de especular e pesquisar sobre a origem dos mesmos. Foi então, a partir daí, que se iniciou o que é conhecido como Maçonaria Especulativa, quando elementos de outras tradições tais como a Cabala, a Rosa Cruz, a Alquimia, as Lendas de Cavaleiros Medievais e o Hermetismo foram infiltrados na Maçonaria, por obra destes novos membros aceitos. Especulação que resultou numa prolífera criação de novos graus, além dos antigos dois graus do período operativo (o grau de Aprendiz e o de Companheiro, já o grau de Mestre Maçom só se tem registro a partir do ano de 1770 – conhecidos como os três graus simbólicos), numa sucessão na qual os graus superiores tentam explicar, também através de símbolos e ritos, os graus anteriores, de modo que o candidato permanece na contínua expectativa de conseguir a explicação do simbolismo do seu grau no grau seguinte. Assim, com o tempo, a Maçonaria se transformou numa sociedade na qual o significado encoberto pelos seus símbolos e ritos é sempre explicado por outro símbolo e rito, de maneira que nunca se alcança uma explicação discursiva e exegética. Como interpretam alguns críticos, “um poço sem fundo onde nunca se encontra a água para saciar a sede”.
            Este processo de busca do significado da simbologia e de criação de novos graus continua até hoje, cujo resultado foi o surgimento de incontáveis lojas e ordens irregulares (aquelas não reconhecidas por uma Grande Loja ou por um Grande Oriente). Mas este critério de reconhecimento é vago, pois se os próprios fundadores da Maçonaria Moderna (Especulativa) tiveram de especular sobre o significado e a origem da Maçonaria que herdaram dos maçons operativos, nos séculos XVI e XVII, os quais eles julgaram como perdidos, não significa que a busca está concluída, pois eles mesmo herdaram uma tradição desprovida de exegese.

O fascínio pelo segredo

            As religiões têm início e crescem em razão da admiração e da fascinação de um grupo de seguidores pela mensagem, pelo carisma, pela santidade ou pelos milagres de um líder religioso, bem como por mitos e mistérios de relatos antigos, depois estes primeiros discípulos sobrevalorizam a mensagem, ao ponto de então criar um significado que é organizado em doutrinas e práticas, as quais só fazem sentido dentro da sua própria lógica, transformando este conjunto de doutrinas e práticas num sistema, para enfim organizar-se em instituição social. Com o surgimento da Maçonaria Moderna (Especulativa) não foi tão diferente, os novos candidatos ficaram fascinados, no período da transição, com a tradição dos maçons operativos, que eles atribuíam guardarem segredos antigos, e deste fascínio pelo segredo, a Maçonaria prosperou e diversificou-se, atualmente com milhares de adeptos pelo mundo (Cerinotti, 2004: 96-101).

A modalidade de analfabetismo da Maçonaria Operativa

            Os historiadores são unânimes em afirmarem que, durante a Antiguidade e a Idade Média, de 80% a 90% da população destas épocas era analfabeta. O alfabetismo era um privilégio de poucos, pois não existia o imenso sistema de educação em grande escala, aberto para todos, como atualmente. Porém, dentro desta grande população analfabeta, existiam os que eram apenas analfabetos funcionais (aqueles que só conseguiam ler ou escrever os assuntos dentro de sua ocupação funcional), bem como os que só eram treinados na sua profissão, através de um processo de treinamento, geralmente passado de pai para filho, o qual os historiadores da educação denominam, para diferenciar da educação priopriamente, de “aprendizagem do trabalho” ou de “tecnização do conhecimento” (Manacorda, 2006: 70-2, 106-10; 138-9 e 161-7). Este processo consistia inicialmente da aprendizagem das técnicas da profissão (artesãos, lavradores, carpinteiros, etc.) transmitida pelos pais aos filhos, sem a necessidade da alfabetização, até a formação das primeiras corporações de aprendizagem na Europa (Manacorda, 2006: 161-7).
            A corporação (craft) dos maçons operativos pode ter sido uma das primeiras corporações de aprendizagem a surgir, cuja transmissão não era aquela de pai para filho, mas de uma maçom para outro. Com isso os maçons operativos superavam em suas habilidades profissionais os outros trabalhadores do mesmo ofício, os escravos, daí a suposta origem da denominação “pedreiros livres” (free masons). Que os maçons operativos eram hábeis nas técnicas da construção, pois conheciam até Aritmética e Geometria que eram aplicadas nas construções, está bem confirmado, no entanto, fortes indícios levam a supor que eram despreparados, quanto à capacidade de ler ou de escrever textos. As principais pistas para tal suspeita estão na inexistência de escritos, de autoria de maçons, durante o período medieval, bem como a conclusão de Edmond Mazet de que: “... não é difícil adivinhar qual deve ter sido o conteúdo da Maçonaria Operativa na Idade Média. Ele só pode ter sido inteiramente cristão e certamente refletiu os ensinamentos dos padres; que é, foi fundado na Bíblia e na exegese bíblica, que os maçons não conheciam de ler o livro ou os comentários sobre ele, mas de ouvir os sermões dos padres sobre eles e de esculpir cenas históricas e simbólicas extraídas deles” (Mazet, 1992: 252).
Os escassos conhecimentos que temos da Maçonaria operativa da Idade Média são extraídos dos Old Charges (Antigos Deveres), sobretudo os dois textos mais antigos: o manuscrito Regius (1390 e.c.) e o manuscrito Crook (1450 e.c.), sendo que, curiosamente, ambos foram escritos por padres (Haywood, 1923b e Mazet, 1992: 251). Segundo E. Mazet, “eles contem (especialmente o Regius) um conjunto de instruções religiosas e morais que expressam o interesse dos padres em moralizar e catequizar os maçons” (Mazet, 1992: 251). Os Old Charges seguintes, que só aparecem a partir de 1583 e.c. (Mazet, 1992: 253), podem ter sido escritos por maçons. Portanto, mais uma evidência de que, quanto mais antiga a referência aos maçons operativos, maior a confirmação do seu analfabetismo. Enfim, sendo analfabetos, eles só podiam registrar através de símbolos e de ritos, o que aprendiam com os padres cristãos e com as esculturas que esculpiam nas catedrais, nas fortalezas e nos mosteiros.

Bibliografia

ANDERSON, James. The Constitutions of the Free-Masons. Printed London: 1723, reprinted Philadelphia: 1734; Online Eletronic Edition, Loncoln: University of Nebraska.
CERINOTTI, Angela. Maçonaria, São Paulo: Editora Globo, 2004.
HAYWOOD, H. L. Symbolical Masonry: An Interpretation of the Three Degrees. New York: George H. Doran Company, 1923a.
________________ The Old Charges of Freemasonry em The Builder. September, 1923b.
JACOB, Margaret C. Living the Enlightenment: Freemasonry and Politics in Eighteenth-Century Europe. New York/Oxford: Oxford University Press, 1991.
__________________The Origins of Freemasonry: Facts and Fictions. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2007.
MANACORDA, Mario A. História da Educação: da Antiguidade aos nossos dias. São Paulo: Cortez Editora, 2006.
MAZET, Edmond. Freemasonry and Esotericism em Modern Esoteric Spirituality. Antoine Faivre and Jacob Needleman (eds.). New York: Crossroad, 1992, p. 248-76.
PIKE, Albert. Moral and Dogma of the Ancient and Accept Scottish Rite of Freemasonry. Charleston: Supreme Council of the Thirty-Third Degree, 1871.
STEVENSON, David. The Origins of Freemasonry: Scotland's Century 1590 to 1710. Cambridge: Cambridge University Press, 2005.
WILMSHURS, W. L. The Meaning of Masonry. London: P. Lund, Humphries & Co, 1922.


sexta-feira, 15 de junho de 2012

|ESTUDO| Abelardo e Heloísa: o Poder da Igreja Passou e o Romance Permanece



Octavio da Cunha Botelho

(Obs: este estudo está disponível em versão mais atualizada em: 


Pintura retratando Abelardo e Heloísa
Este artigo deveria ter sido postado no Dia dos Namorados (12/06/2012), mas em virtude da ocupação com outras tarefas, não foi possível prepará-lo até aquela data comemorativa. Embora com atraso, não é inconveniente sua postagem intempestiva, sobretudo por conta da comoção que esta história é capaz de provocar nos amantes. Pois, trata-se de um dos mais famosos casos de romance entre religiosos: o relacionamento romântico entre Pedro Abelardo (um padre, depois monge) e Heloísa (educada num convento, depois freira). O caso foi reproduzido na poesia, na música, na literatura, no teatro e no cinema.

Pedro Abelardo (1079-1142)

            Pierre Abélard (Pedro Abelardo) foi o mais notável teólogo de sua época. Nascido numa família de cavaleiros em uma cidade perto de Mantes, França, ele recusou a carreira de soldado para se dedicar aos estudos. Seu ardente interesse pelo debate o levou a Paris, onde logo se destacou por sua habilidade no uso da Lógica. Chegando lá, tornou-se aluno de Guilherme de Champeaux, o mais afamado dentre os mestres daquela época. Porém, “a simpatia inicial de Guilherme pelo jovem discípulo não tardou em converter-se em profunda antipatia, pois não contente de lhe criticar certas doutrinas, Abelardo ocasionalmente o derrotava nos debates escolares” (Gilson, 1995: 296). Assim, seu temperamento impetuoso o manteve em permanente conflito com a Igreja, por muitas vezes foi obrigado a alterar suas afirmações e a queimar seus escritos, mesmo assim sua produção literária é relativamente volumosa (Historia Calamitatum, caps. I e II; Gilson, 1995: 296-7 e 306-8).

Heloisa de Argenteuil (1101-1164)

Héloise (Heloísa) foi uma brilhante erudita, educada num convento, com conhecimento de Latim, de Grego e de Hebraico. Sabe-se que pertencia a uma família de status social inferior ao de Abelardo.  Ela foi uma protegida de seu tio Fulbert, um cônego de Paris. Em algum momento de sua vida, ainda na adolescência, ela tornou-se aluna de Abelardo, o qual já tinha se transformado em um dos mais populares professores e filósofos de Paris. Durante a convivência, os dois se apaixonaram e consequentemente iniciaram um romance secreto, ela era cerca de vinte anos mais nova, o qual resultou no nascimento de um filho, a quem deram o nome exótico de Astrolabius (astrolábio), instrumento de navegação utilizado para medir a altura das estrelas e dos astros acima do horizonte.

O romance com fim trágico

Abelardo e Heloísa sendo surpreendidos por Fulbert;
pintura de Jean Vignaud, 1819
            Eles se casaram em segredo, mas apesar da tentativa de encobrir os fatos, para não atrapalhar a carreira de Abelardo, o romance secreto foi descoberto pelo tio de Heloísa, Fulbert, o qual contratou alguns capangas para surpreender Abelardo, enquanto dormia, para então, em seguida, castrá-lo. Com a castração, Abelardo se tornou monge e Heloisa foi enviada como freira para o convento de Argenteuil, onde, em virtude de sua capacidade e de sua erudição, ocupou o cargo de abadessa, depois de alguns anos da sua chegada. Mesmo depois de separados, os dois amantes mantiveram uma apaixonada e erudita correspondência, escrita durante os quase quinze anos após a separação. Assim, Heloísa incentivou Abelardo em seu trabalho filosófico e ele dedicou sua profissão de fé a ela.
A leitura destas cartas, bem como da história deste trágico romance, comovem muitos amantes. Trata-se de uma das mais emocionantes histórias de amor que temos conhecimento, sobretudo nos angustiantes anos da separação. Esta dramática história foi reproduzida na poesia, na literatura, na música, no teatro e no cinema. O livro mais popular é o da escritora Marion Meade, Stealing Heaven, adaptado para o cinema num filme homônimo, mas lançado no Brasil com o título de Em Nome de Deus, de 1988, dirigido por Clive Donner, estrelado por Derek de Lint (Abelardo), Kim Thomson (Heloísa) e Denholm Elliot (Fulbert). O filme fez muito sucesso nas locadoras nos anos do boom do VHS. Na poesia, ficou conhecida a frase do poeta Alexander Pope atribuída à Heloísa “eternal sunshine of the spotless mind” (brilho eterno da mente pura), a qual foi recentemente utilizada no título de um filme de Michel Gondry, estrelado por Jim Carrey, Kate Winslet e Kirsten Dunst, lançado no Brasil com o título de “Brilho Eterno de uma Mente sem Lembrança”.  O poema “Eloisa to Abelard” de Alexander Pope foi incluído num apêndice na edição inglesa de Israel Gollancz das cartas de Abelardo e Heloísa, de 1901 (p. 96-109).

Algumas reflexões

            Numa época quando ouvimos tão frequentemente sobre casos de pedofilia e de homossexualismo no meio religioso, sem punição, nos indignamos ao saber de um casal que tentou o amor, em sua forma mais natural, mas foi tão duramente punido. Se transpusermos o rigor da punição recebida pelo casal medieval para os casos de pedofilia e de homossexualismo, qual será a punição proporcional e equivalente para estes últimos casos? Será que estes casos também não aconteciam na Idade Média? Se Abelardo foi castrado, que punição mereceria um pedófilo naquela época? 
O mausoléu de Abelardo e Heloísa
A punição de Abelardo com a castração retrata a mentalidade obsessiva da época medieval na Europa, quando a religião (Cristianismo) dominava a vida das pessoas em tudo e para sempre, desde o nascimento ao funeral, com isso o rigorismo moral regia a vida da sociedade. Não existia outro tribunal de apelação, senão o da Igreja.
A lição que permanece deste trágico caso medieval é que Abelardo e Heloísa, apesar das punições e do sofrimento, aos quais foram submetidos, deixaram uma mensagem de triunfo sobre a religião, pois o relacionamento que procuraram cultivar, o romance, continua vivo e florescente até os dias de hoje, tanto nas vidas dos casais, como na poesia, na literatura, no teatro, na música e no cinema; enquanto que o relacionamento com deus, de lá para cá, só acumulou decadência, ou seja, a religião, de poder regente e cultura dominante nas vidas das pessoas, transformou-se em subalterna assistente e mera consoladora para os desamparados e desinformados respectivamente. De modo que, o que encontramos nos dias de hoje não é mais a religião dos tempos gloriosos, mas sim o resto da religião.

Bibliografia

BELLOWS, Henry A. (tr.) Historia Calamitatum: The Story of My Misfortunes. New York: Macmillan, 1972.
GILSON, Etienne e Philotheus Boehner. História da Filosofia Cristã. Petrópolis: Vozes, 1995, p. 295s.
GOLLANCZ, Israel (ed.). The Love Letters of Abelard and Heloise. London: J.M. Dent and Co., 1901.

MEADE, Marion. Stealing Heaven: The Love Story of Heloise and Abelard. New York: E-rights/E-reads Ltd Publishers, 2010.