quinta-feira, 8 de março de 2012

|ESTUDO| Misoginia, Discriminação e Submissão da Mulher nas Religiões Tradicionais

Octavio da Cunha Botelho

(Obs: Este estudo está disponível em uma versão mais atualizada em:


Transformações: hoje as mulheres ocupam posições
              de liderança, situações inimagináveis no passado

O artigo abaixo foi extraído de trechos do livro, que estou escrevendo no momento, sobre crítica da religião, disponibilizado neste blog em razão do Dia Internacional da Mulher, 08/03/2012. O material compõe a introdução e os trechos das reflexões finais da seção sobre uma das maiores injustiças na história: a discriminação e a submissão da mulher nas grandes religiões tradicionais. Coincidentemente, é o assunto que estou escrevendo no momento para este livro. Além dos trechos incluídos abaixo, o miolo da seção terá uma subseção para cada uma das cinco grandes religiões da atualidade, com a seleção das passagens das fontes literárias (o Manusmrti, o Talmude, o Alcorão, a Bíblia e os Sutras budistas), onde estas discriminações são mencionadas nestas grandes tradições. Algumas passagens são abomináveis e chocantes para a mentalidade atual das sociedades mais seculares. Já foram escritas as passagens do Manusmrti do Hinduísmo, as do Talmude do Judaísmo, as do Alcorão do Islamismo, estou escrevendo as da Bíblia do Cristianismo no momento, e em breve serão escritas as dos Sutras do Budismo.


Misoginia, discriminação e submissão da mulher nas religiões tradicionais
 
Salvo em algumas poucas religiões do passado e em um número maior nos Novos Movimentos Religiosos, a mulher foi cruelmente discriminada, rebaixada, desprestigiada e subjugada nas grandes religiões tradicionais. A razão para tal discriminação ainda é motivo de debates entre os estudiosos, mas talvez seja explicada pelo fato de que, em muitas sociedades antigas, as mulheres eram excluídas das atividades culturais e religiosas em virtude da então prevalecente idéia de que a mulher está biologicamente mais próxima da natureza, enquanto o homem está intelectualmente mais próximo da cultura. Uma vez que a cultura era vista como superior à natureza nestas sociedades, foi dada ao homem uma posição social superior à mulher. Elas eram vistas assim em virtude das suas propriedades biológicas de menstruação, de procriação, de gravidez e de amamentação, daí então que o papel da mulher está na criação dos filhos, no lar; ou seja, o mundo da mulher é o mundo doméstico; enquanto que, as atividades externas e intelectuais cabem ao homem, o qual não está sujeito a tais funções biológicas, portanto, apropriado para as atividades externas do lar. Como exemplo, Ellen M. Umansky explicou assim este caso no Judaísmo: “Os rabinos do Talmude, aqueles responsáveis pela formulação da lei judaica, argumentavam que homens e mulheres, enquanto possuindo absoluta dignidade, igualdade e valor, foram criados como complementos de um para o outro. Eles alegavam que deus, empregando uma espécie de economia, projetou os homens e as mulheres de tal forma a ocuparem diferentes papéis sociais, de maneira que juntos eles poderiam alcançar a totalidade. Pensando nas mulheres essencialmente como esposas e mães, eles viam o lar como o domínio natural das mulheres, enquanto sustentavam que a esfera pública da vida religiosa, aquela do estudo e da adoração pública, era o domínio natural dos homens” (Umansky, 1985: 479).
Brahma Kumaris, uma organização espiritual
               formada majoritariamente por mulheres
Para alguns teóricos sociais, a chegada da Era Moderna agravou a dicotomia: mulher em casa e homem no trabalho externo. Pois, sobretudo a partir do século XIX, com a diversificação da sociedade em tantas novas atividades e em novas instituições, foram os homens, e não as mulheres, com sua já reconhecida vocação para o trabalho externo, que se ocuparam na crescente proliferação de profissões na educação, na indústria, no comércio, na saúde, no governo, na Justiça, na Política, no lazer, no funcionalismo público, etc., com isso confinando as mulheres ainda mais aos limites domésticos. Entretanto, o tempo, sobretudo a recentidade, não confirmou esta tese de algumas das sociedades antigas. A experiência histórica que mais apressou a mobilização da mulher da vida doméstica para a vida profissional e externa foi a ocorrência das duas grandes guerras no século XX, sobretudo a Segunda Guerra Mundial, quando as mulheres tiveram de ser apressadamente recrutadas para o trabalho como operárias em fábricas, como enfermeiras em hospitais, como funcionárias em empresas privadas e em repartições públicas, etc., em virtude da crescente escassez de mão de obra masculina, por estarem os homens sendo enviados para as frentes de combate. Foram nestes momentos que as mulheres puderam provar, numa dimensão nunca antes demonstrada, sua capacidade de substituir a mão de obra masculina com a mesma eficiência, daí aptas à prática profissional. Parece que, a primeira profissão externa, praticada em grande escala pelas mulheres, foi a Enfermagem, um desdobramento natural do antigo trabalho das parteiras. A Enfermagem moderna e científica foi estruturada no século XIX por Florence Nightingale (1820-1910), durante sua devotada assistência aos soldados na Guerra da Criméia.
Helena P. Blavatsky (1831-91), uma das
               fundadoras da Sociedade Teosófica
Por outro lado, diferente das antigas tradições religiosas, nos Novos Movimentos Religiosos, a mulher recebeu maior valorização e tratamento mais igualitário, com o rompimento de muitos antigos preconceitos, sob influência da ‘primeira onda’ do movimento feminista do século XIX. Um traço inovador nos Novos Movimentos Religiosos foi a ascensão da mulher à proeminência dentro do ofício religioso a partir do século XIX, até então uma tarefa predominantemente masculina, com o surgimento das primeiras fundadoras, líderes, pregadoras, instrutoras, intérpretes e até mesmo daquelas que se declaravam teólogas, o que representou o rompimento de um antigo e infundado tabu. Pois, antes deste período inicial de conquistas sociais, qualquer mulher que se atrevesse nestas atividades era considerada uma bruxa. Destacaram-se naquele e no início do século seguinte: Helena P. Blavatsky (1831-91), fundadora da Sociedade Teosófica, que depois foi presidida por Anna Kingsford (1846-88), em 1883, e em seguida por outra mulher, Annie Besant (1847-1933), de 1908 a 1933. Uma dissidente da Sociedade Teosófica, que depois se tornaria uma famosa líder e canalizadora de instruções religiosas, foi Alice Bailey (1878-1939), fundadora da Escola Arcana. O Movimento New Thought (Novo Pensamento) foi, até certo ponto, um movimento feminino, uma vez que muitos dos principais líderes foram mulheres, tais como: Emma Curtis Hopkins (1849-1925), uma das precursoras, juntamente com Phieas P. Quimby, do Movimento New Thought; Mary Baker Eddy (1821-1910) fundadora do movimento Christian Science (Ciência Cristã) e da Church of Christ, Scientist (Igreja de Cristo, Cientista) em 1894 na cidade de Boston; Myrtle Page Fillmore (1845-1931), co-fundadora com seu marido da Unity Church, em 1889, na cidade de Kansas; Malinda Elliott Cramer (1844-1906), fundadora da Church of Divine Science (Igreja da Ciência Divina) e Nona L. Brooks (1861-1945), fundadora de uma igreja da Divine Science em Denver, Colorado. Todas estas igrejas foram fundadas sob a influência do movimento New Thought. Esta onda de novas oportunidades para as mulheres também alcançou uma instituição indiana, a Brahma Kumaris (Filhas do Deus Brahma), a qual, apesar de ter sido fundada por um homem, Lekhraj Kripalani (1884-1969), em 1932, na cidade de Karachi, antes da formação do estado do Paquistão, é liderada majoritariamente por mulheres. Também conhecida como Brahma Kumaris World Spiritual University, (em sânscrito: Prajapita Brahma Kumaris Ishwariya Vishwa Vidyalaya), foi formada no contexto do Hinduísmo, porém com o compartilhamento de poucas interpretações em comum com esta tradição. O núcleo da sua prática é a Raja Yoga, mas, obviamente, com instruções e técnicas diferentes da yoga clássica de Patanjali. Esta ascensão feminina abalou mesmo as tradições até então de ofício exclusivamente masculino. A Maçonaria, por exemplo, começou a admitir mulheres a partir do século XIX, quando foram fundadas as primeiras ordens que admitiam tanto homens como mulheres para iniciação ou mesmo, só mulheres, as mais conhecidas foram: a Order of the Eastern Star (Ordem da Estrela Oriental), fundada por Rob Morris em 1850, na cidade de Boston (existe registro de que Anna Eleonor Roosevelt, esposa do ex-presidente Franklin D. Roosevelt, foi iniciada nesta ordem nos anos 1930); a Order of the Amaranth (a Ordem do Amaranto), fundada pela rainha Cristina da Suécia e depois importada para os EUA por Rob Macoy em 1873; o White Shrine of Jerusalem (o Santuário Branco de Jerusalém); a Social Order of Beauceant (a Ordem Social de Beauceant); as Daughters of the Nile (as Filhas do Nilo) e na França: a Loge Libre Penseurs (a Loja Livre Pensadores), onde Maria Deraimes foi a primeira iniciada em 1882. No início do século XX, foi marcante a publicação de The Compass and Square for Women Only (O Compasso e o Esquadro Só para Mulheres), de Harriet L. M. Handerson, o primeiro livro sobre Maçonaria direcionado para mulheres publicado em 1916 nos EUA.

Algumas reflexões

Rainha Cristina da Suécia, fundadora da
            Ordem do Amaranto da Maçonaria
Dois de tantos séculos de injustiça cultural e social com as mulheres, imposta pelas religiões tradicionais, o estrago foi tão grande que, em muitas sociedades, não serão em apenas poucas décadas que o defeito será reparado. Quando estudamos os inúmeros trabalhos publicados em livros, jornais, revistas, sites e blogs sobre os avanços alcançados nas áreas sociais, profissionais e políticas no último século, não deixamos de nos sentirmos obrigados a elogiar o trabalho de dedicadas feministas em favor da maior participação da mulher na sociedade, no trabalho, na política e na educação. No entanto, ao mesmo tempo, quando observamos o volume de esforço despendido recentemente, percebemos também que este esforço é tão grande por conta do imenso obstáculo colocado, pelas religiões tradicionais, na vida das mulheres no passado. Trata-se de uma privação de oportunidades que perdurou por séculos. Portanto, ver o triunfante trabalho das feministas nos últimos anos é aliviante, mas, por outro lado, quando conhecemos a longa duração do período de subjugação ao estudar a história das religiões, o que sentimos é revoltante. Todo este penoso esforço e esta gigantesca luta poderiam ser evitados se os enganos conceituais das tradições religiosas, responsáveis por estas injustiças, não tivessem sido concebidos ou, pelo menos, tivessem sido reparados logo no início pelos próprios religiosos. Mas não, a cultura da mulher discriminada e submissa, imposta pelas religiões tradicionais, perdurou por séculos, fazendo com que, por todo este longo período, as mulheres perdessem um número infinito de oportunidades na vida. Para nossa maior indignação, a rigor, não foram os religiosos, senão as pessoas inconformadas, sobretudo as feministas, de fora do meio religioso, as primeiras a levantarem a voz contra esta antiga injustiça. Apesar dos esforços e das lutas para melhorar o quadro em muitas partes do mundo nos últimos anos, há muito ainda por fazer em vista de tantas injustiças remanescentes, principalmente nas regiões onde o conservadorismo discriminatório da mulher ainda prevalece em face da influência do tradicionalismo. Estes avanços caminham em ritmo desigual em diferentes sociedades. O caminho está mais aberto para os países onde a laicidade é mais dominante na vida da população.
As recentes transformações aconteceram não só na maneira pela qual as mulheres passaram a ser vistas pela sociedade, mas também e, sobretudo, na maneira pela qual elas passaram a perceberem a si mesmas. Aconteceu um enorme aumento da auto-estima da mulher. Com isso, elas agora se sentem mais encorajadas em desenvolver seus talentos e suas habilidades. Enfim, quanto mais as mulheres são capazes de demonstrar suas capacidades e confirmar sua dignidade, por tantos séculos privadas, somos, cada vez mais, possibilitados de, proporcionalmente, mensurar a dimensão do prejuízo que as mulheres sofreram nas mãos injustas das religiões durante o longo período de privação.
Elizabeth Taylor no papel de Cleópatra,
              uma das mulheres mais influentes da Antiguidade
Alguns autores, sobretudo autoras, se deleitam em citar mulheres do passado que se destacaram na cultura, na religião, na política ou na sociedade (Nefertite, Cleópatra, Joana D’arc, etc.), com a intenção de demonstrar que a subjugação não era tão acentuada assim. De fato, não se pode discordar, os exemplos existem, mas o mais importante é ter em conta que estes exemplos representam raríssimas exceções, quando comparados com o número infinitamente maior da participação masculina nestas áreas. Parece que, o que leva estes autores e estas autoras a se entusiasmarem com estas citações são os papéis protagonistas de mulheres que, por representarem exceções, chamam a atenção dos observadores e dos historiadores, com isso são vivamente recordados em razão da excepcionalidade.  
            Uma vez que, estimativamente, a metade da população mundial sempre foi formada pelas mulheres, as feministas têm um argumento intrigante. Se as grandes religiões atuais, antes do reconhecimento da igualdade dos gêneros, conceberam suas idéias e regras no passado a partir de uma cultura e sociedade patriarcais - a rigor, com base na metade masculina da população mundial - todas as suas doutrinas e práticas teriam agora de serem revistas e refeitas, para incluir a outra metade da população mundial: as mulheres. Pois, a confirmação e o reconhecimento da igualdade intelectual e moral da mulher, com relação ao homem, no século passado, modificou todo o panorama cultural no qual os religiosos se basearam para construir suas visões de mundo, quando desprezaram a metade feminina da população mundial. Assim sendo, se a metade feminina é agora considerada tão importante quanto a metade masculina, então as idéias de fundo que formaram as doutrinas e as regras das religiões tradicionais precisam de revisão. Em outras palavras, o imenso edifício, no qual foram erguidas as inúmeras doutrinas e práticas religiosas durante séculos, terá de ser demolido para, então, se reerguer um novo edifício doutrinário que leve em conta a mulher com a sua nova dignidade alcançada a partir do século XX e afaste todos os sentimentos de misoginia. Enfim, no passado a religião era prioritariamente destinada para uma metade da população, mas agora, diferentemente, uma religião só é completa se destinada para as duas metades da população mundial. Em parte, este trabalho de reconstrução foi realizado pelos Novos Movimentos Religiosos nos últimos anos, ao conceder uma nova dignidade e um novo papel para a mulher dentro da religião, da família e da sociedade. A reforma foi inevitável, está sendo e continuará a ser no futuro, uma vez que a situação mudou tanto que, atualmente, encontramos exemplos nos quais as mulheres até exibem capacidades intelectuais e habilidades profissionais superiores aos homens em muitas tarefas.
Mira Bai (1498-1547), uma das santas
             mais adoradas do Hinduísmo
Das grandes religiões tradicionais, as que concederam mais oportunidades religiosas às mulheres foram o Cristianismo e o Movimento Bhakta do Hinduísmo. Mesmo assim, elas tiveram o direito apenas à santidade, ou seja, de se tornarem santas ou devotas exemplares, mas não o direito à ordenação ou à iniciação, portanto, nunca puderam se tornar sacerdotisas. Por isso ouvimos falar de santa Juliana de Norwich (1342-1416), de santa Teresa de Ávila (1515-1582), de santa Bernadette Soubirous (1844-1879) e de outras no Cristianismo. Também, de Andal (séculos VII e VIII e.c.), de Jana Bai (m.1350), de Mira Bai (1498-1547, de Sarada Devi (1853-1920) e de outras santas da tradição Sant Mat (Caminho dos Santos) na Índia. O sacerdócio sempre foi um ofício de predomínio dos homens, porém, as antigas religiões da Grécia e de Roma ordenavam mulheres como sacerdotisas, exemplos: as Pítias (Dillon, 2002: 73-106) e as Virgens Vestias (Staples, 1998: 129-56 e Takacs, 2008: passim) respectivamente. O Hinduísmo é um conjunto de tradições repleto de deusas. Além das mais comumente adoradas (Durga, Kali, Parvati, Lakshmi, Saraswati, Mahadevi, etc.), existe também uma quantidade de deusas de adoração apenas regional espalhada por toda a Índia que, se então acrescida, torna o panteão incalculável. Das grandes religiões vivas, é a que mais conserva cultos às deusas. Existe uma corrente especialmente voltada para a adoração do aspecto feminino da divindade (shakti), o Shaktismo da tradição tântrica (Kinsley, 1987 e Bhattacharyya, 1987: 315-69). Enfim, as devotas indianas compuseram poesias e canções devocionais (bhajans), praticaram austeridade e meditação, afirmaram terem alcançado experiências de transe místico, se tornaram santas e até deusas (exemplo: Andal), daí que hoje são adoradas por milhares de devotos, porém nenhuma foi ordenada como sacerdotisa. O mesmo acontece com o Catolicismo, as devotas podem até se tornarem santas ainda em vida, mas não são ordenadas como sacerdotisas.
Por outro lado, simultaneamente, algumas mulheres retrógadas percorrem um trajeto contrário procurando se submeterem, com cada vez mais zelo, às regras das tradições antigas. Elas abrem mão das conquistas culturais, profissionais e social alcançadas nos últimos anos para viver uma vida de privações e de subjugação, tal como no passado. Este fenômeno acontece, no momento, com mais freqüência entre as mulheres islâmicas.
Teresa de Ávila (1515-82), a mais mística
              das santas do Catolicismo
Alguns autores e autoras, feministas, religiosos e acadêmicos se contentam, e alguns até se vangloriam, das recentes conquistas de espaço e de funções das mulheres dentro das religiões. Isto é, mulheres que são ordenadas, que se tornam líderes, instrutoras, pregadoras, teólogas, etc. Estas novas oportunidades religiosas fazem com que as mulheres se sintam agora como que se tivessem encontrado a verdadeira religião. Tudo isto representa para estas pessoas um grande progresso da religião. Entretanto, do ponto de vista crítico, experimentar hoje novos papéis e cargos dentro de uma religião não significa tanto progresso assim, pois a pessoa, de qualquer forma, continua mantida no interior de um ambiente culturalmente obsoleto. De modo que, a rigor, o que deve ser mais aproveitada com o crescimento da autonomia das mulheres nos últimos anos, não é sua oportunidade dentro da religião, mas sim sua oportunidade fora do mundo religioso, ou seja, na sociedade laica, aproveitando-se da queda da influencia da religião na vida dos indivíduos e da sociedade, que resultou na abertura de muitas portas para as mulheres manifestarem seus talentos e suas habilidades nas profissões, na família, na política, na economia, no ensino, etc. A atual sociedade secular é capaz de oferecer oportunidades infinitamente maiores, em muitas atividades, para as mulheres, em comparação com o que pode oferecer a limitada vida religiosa. A vantagem está na diminuição do poder da religião e não na abertura de oportunidades às mulheres no interior da religião. Para resumir de uma maneira descontraída, este aproveitamento de novas oportunidades femininas dentro das religiões, representa, na verdade, um fato semelhante ao que expressa a frase popular: “fugir do espeto para cair na brasa”.

Bibliografia
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DILLON, Matthew. Girls and Women in Classical Greek Religion. London/New York: Routledge, 2002.
HADDAD, Ivonne Y. and Elison Banks Findly (eds.). Women, Religion and Social Change. Albany: State University of New York Press, 1985.
HEKMAT, Anwar. Women and the Koran: The Status of Women in Islam. Amherst: Prometheus Books, 1997.
HENDERSON, Harriet L. M. The Compass and Square for Women Only. Los Angeles: The Master Mind Press, 1916.
KING, Ursula (ed.). Women in the World’s Religions: Past and Present. New York: Paragon House Publishers, 1987.
KINSLEY, David. Hindu Goddesses: Visions of the Divine Feminine in the Hindu Religious Tradition. Delhi: Motilal Banarsidass, 1987.
SHARMA, Arvind (ed.). Today’s Woman in World Religions. Albany: State University of New York Press, 1994.
STAPLES, Ariadne, From Good Goddess to Vestal Virgins: Sex and Category in Roman Religion. London/New York: Routledge, 1998.
TAKACS, Sarolta A. Vestal Virgins, Sibyls and Matrons: Women in Roman Religion. Austin: University of Texas Press, 2008.
UMANSKY, Ellen M. Feminism and the Reevaluation of Women’s Role Within American Jewish Life em Women, Religion and Social Change. Yvonne Y. Haddad and Ellison B. Findly (eds.). Albany: State University of New York Press, 1985, p. 477-94.
WADUD, Amina. Quran and Woman: Rereading the Sacred Text from a Woman’s Perspertive. New York/Oxford: Oxford University Press, 1999.
WOODHEAD, Linda. Women and Religion em  Religions in the Modern World: Traditions and Transformations. London/New York: Routledge, 2002, p. 332-56.

|ESTUDO| O Apóstolo Paulo e sua Condescendência com a Escravidão

Octavio da Cunha Botelho


(Obs: este estudo está disponível em uma versão mais atualizada em:
http://observadorcriticodasreligioes.wordpress.com/2014/01/02/o-apostolo-paulo-e-sua-condescendencia-com-a-escravidao/)

Lendo recentemente um site de matérias sobre ateísmo, encontrei uma notícia sobre a publicação de outdoors, por uma associação de ateus da Pensilvânia nos EUA, em protesto contra a aprovação, pelos deputados daquele estado, da oficialização de 2012 como o “Ano da Bíblia”. O outdoor diz: “Slaves, obey your masters” (Escravos, obedecei a seus senhores), um trecho extraído da Epístola de Paulo aos Colossenses 3: 22.  Esta peça de publicidade é ilustrada com a figura de um escravo negro acorrentado pelo pescoço.
Aproveito este incidente para analisar a passagem desta epístola que menciona os escravos no Novo Testamento e a condescendência do apóstolo Paulo com a escravidão. Reproduzo abaixo o trecho que será analisado:
“Escravos, obedecei em tudo a vossos senhores terrenos, não servindo só na presença, como quem busca agradar a homens, mas com sinceridade de coração, temendo a Deus. Tudo o que fizerdes, fazei-o do bom coração, como para o Senhor e não para os homens. Sabeis que recebereis como recompensa, a herança das mãos do Senhor. Servi ao senhor Jesus Cristo. Quem fizer injustiça receberá o pagamento do que fez injustamente, porque em Deus não há distinção de pessoas” (Epístola aos Colossenses, 3: 22-5).
“Senhores, daí aos escravos o que é justo e equitativo, considerando que também vós tendes um Senhor no céu” (idem, 4: 01).
Para analisar esta passagem, consultei um texto grego, a Vulgata latina, uma versão inglesa da Bíblia de King James, outras versões em inglês e algumas versões em português. Na comparação, a primeira coisa que chama a atenção é a tentativa eufemística de alguns tradutores de suavizar a palavra “escravos” (grego: douloi e latim: servi) na tradução, para outro termo com menor impacto repulsivo sobre o leitor. Na versão de King James e outras consultadas, por exemplo, a palavra douloi (latim: servi - escravos) foi traduzida como ‘servant’ para o inglês, que não tem o mesmo significado de escravos, mas sim de criado e servente. Algumas versões em português procuram traduzi-la como ‘servos’, um termo menos impactante que escravos. De maneira que, isto mostra, desde já, o senso de remorso no fundo das mentes de alguns tradutores bíblicos.  A palavra ‘escravos’ transmite um sentido de repúdio para muitas pessoas que reconhecem a dimensão desta injustiça cometida por séculos por muitas sociedades do passado, diante dos olhos condescendentes das religiões, por isso estes tradutores procuram suavizar seu impacto, sobre os leitores, trocando por outra que produza menor efeito repulsivo. Ou seja, a palavra servos tem menor carga abominável. Porém, a palavra no original grego é douloi (escravos – singular: doulos) que foi traduzida para a Vulgata latina como servi (escravos – singular: servus).
Escravos acorrentados
Sabemos que a escravidão era uma prática aceitável e comum nas sociedades antigas e medievais. Mais do que simplesmente aceitável, era uma prática amparada por lei, cujo senhor tinha o direito de propriedade sobre seus escravos, bem como era uma atividade comercial milionária. Os escravos eram considerados mercadorias, daí o surgimento dos mercadores de escravos. Muitos cidadãos se enriqueceram com o negócio de escravos. Na época de Cristo não era diferente, os hebreus, os gregos, os romanos (veja o Título III “Do Direito das Pessoas” do Edito Institutas de 23/11/533 do imperador Justiniano) e outros povos mantinham e desfrutavam do trabalho escravo. Existem registros na história de escravos que conseguiram se emancipar e se tornarem cidadãos livres.
Agora, o intrigante é a deferência, a condescendência e até mesmo o usufruto dos religiosos diante da escravidão.  Sabemos que muitos padres e bispos tinham escravos. O Antigo Testamento aprova a prática da escravidão e a regulamenta em algumas passagens (Êxodo 20: 17; 21: 08; Deuteronômio 05: 14 e 15; 21: 14; 23: 16,17; Levítico 25:39 e 53), mas nunca a condena. A Igreja Católica só começou a se manifestar contra a escravidão a partir do século XV, o primeiro documento foi a bula papal Sicut Dudum (1435) do papa Eugênio IV, o qual ordenou a libertação dos escravos negros das Ilhas Canárias.  Em seguida sucedeu uma série de bulas que proibiam a escravidão, mas sem muito efeito prático. Veja o exemplo do Brasil, onde estas bulas não tiveram efeito nenhum, que foi um dos últimos países a abolir a escravatura. Os resultados só começaram a aparecer com o surgimento do Abolicionismo, o movimento político, conseqüente do Iluminismo secular e não do meio religioso, que visou abolir a escravidão e o tráfego de escravos, cujo início aconteceu no século XVIII. O Alcorão também está repleto de referências aos escravos e às escravas, Maomé, por exemplo, tinha escravos e escravas, chegou até a desposar algumas delas.
 Agora, o curioso é o seguinte, mesmo com toda a vidência dos profetas, com toda a iluminação dos místicos e com toda a sabedoria dos sábios do passado, a escravidão só começou a ser contestada a partir do final da Idade Média, e só se transformou em um movimento efetivo a partir do século XVIII. Por que nenhum profeta, místico ou sábio não condenou e desaprovou esta injusta prática, hoje considerada abominável e criminosa, desde o início da sua prática? Por que demoraram tantos séculos para os religiosos, na esteira dos abolicionistas, reconhecerem que a prática era injusta? Estas são respostas que necessitam de uma exposição bem mais longa que o espaço limitado do presente artigo.
Página de uma das Epístolas de Paulo em grego
Bem, voltando à análise da passagem da epístola mencionada acima. Serão analisados abaixo os trechos intrigantes da mesma.
“Escravos, obedecei em tudo a vossos senhores terrenos...” Desta frase se conclui que Paulo, autor desta epístola, tal como a cultura vigente na época, aceitava e apoiava a escravidão. Em momento nenhum lhe parece ser uma prática indigna e injusta, chega até a solicitar que “obedecei em tudo (gr: panta; la: omnia) a vossos senhores terrenos (gr: sarka kuriois; la: dominis carnalibus)”, não fazendo restrição alguma em favor dos escravos, pois para ele os escravos devem obedecer em tudo aos seus senhores. Em seguida, “não servindo só na presença (...) mas com sinceridade de coração, temendo a Deus” (gr: phobeomenoi thon; la: timentes deum). Bem, se Paulo orienta que os escravos devem servir a seus senhores com sinceridade, temendo a Deus, está afirmando que, se não o fizerem assim, serão castigados por Deus, de modo que está querendo dizer que Deus aprova a pratica da escravidão e também castiga o escravo que desobedece a seu senhor terreno. Agora, que deus é este que é condescendente com a escravidão e castiga o escravo desobediente?! Mais adiante, “Quem fizer injustiça receberá o pagamento do que fez injustamente, porque em Deus não há distinção de pessoas”. Existe injustiça maior do que a própria escravidão? Aqui ele reafirma que deus aprova e regula a prática e o relacionamento entre senhores e escravos, portanto deus aprova e ainda castiga quem viola suas regras sobre o trabalho escravo. Que deus é esse que aprova e regula uma prática vigente na época, a qual depois de séculos se transformou numa prática abominável e até criminosa em quase todos os países do planeta? Parece que o deus de Paulo não é onisciente, pois não consegue enxergar além da cultura humana da época, bem como não é capaz de prever que a escravidão um dia seria abolida e considerada uma prática criminosa e discriminativa por toda a sociedade. Se para Deus não há distinção de pessoas, por que então aprova a escravidão e até castiga quem transgride as regras do relacionamento escravo? Existe discriminação maior do que a escravidão, a qual divide as pessoas em cidadãos livres de um lado e em mercadorias de outro? Finalmente, “Senhores, daí aos escravos o que é justo e equitativo...” Ora, o que de mais justo que os senhores podem dar para os escravos é a liberdade da escravidão, a sua dignidade e a igualdade de direitos com os outros cidadãos livres.
Um pouco antes deste trecho recém analisado, Paulo diz: “Mulheres, sede submissas a vossos maridos, como convém segundo o Senhor” (3: 18), mas o tema da discriminação e da submissão da mulher nas religiões tradicionais será o assunto de um próximo artigo, que será postado neste blog no dia 08/03/2012, o Dia Internacional da Mulher. Bem... então deu para sentir o que vem por aí!